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Na teoria, a coisa é simples. A dosimetria existe para que o juiz não decida uma pena na base do “olhômetro”. Existem critérios a serem seguidos: circunstâncias atenuantes ou agravantes, antecedentes e conduta social do réu, gravidade das consequências do crime cometido – além de um pouco de bom senso.
Para quem não está familiarizado com o termo, dosimetria é um mecanismo criado para evitar arbitrariedades, para que a pena do ladrão de galinhas ou da mulher que rabisca uma estátua com batom não seja maior que a do assassino, traficante ou corrupto contumaz.
A ideia de dosimetria sugere que a justiça é uma ciência exata, mas no Brasil a balança da justiça não é uma balança de precisão: parece mais uma daquelas balanças de quitanda, que o vendedor ajusta com um leve toque de dedo para engabelar o freguês. A sentença depende de variáveis intangíveis: o réu sorriu durante o julgamento? O advogado usou uma gravata cafona? O juiz dormiu mal por causa do vizinho que insistiu em ouvir música sertaneja às duas da manhã?
Tudo isso parece contar mais que qualquer tabela de agravantes e atenuantes. A pena aplicada não é o resultado de um cálculo frio, mas uma performance estética, um gesto simbólico. Nessa loteria jurídica, mesmo sendo inocente o réu nunca sabe se vai sair com uma tornozeleira eletrônica ou com uma passagem só de ida para o presídio mais próximo.
Kafka se sentiria em casa. Processos sigilosos e intermináveis. Penas que surgem do nada. Delações premiadas que mudam ao sabor do vento
Antigamente, diziam que no Brasil a Justiça tinha dois pesos e duas medidas. Agora não: temos onze pesos e nenhuma medida. Se um réu inocente é condenado a 20 anos, isso não é um erro: é uma expressão artística. Se outro réu é absolvido contra todas as evidências de que é culpado, não se trata de injustiça, mas de é liberdade criativa. O STF, nesse sentido, não seria um tribunal, mas uma bienal de arte conceitual, onde cada voto é uma instalação efêmera, um happening transmitido ao vivo pelo Youtube, para deleite dos progressistas.
O empresário que compartilha um “joinha” em grupo de WhatsApp pode ser condenado como se fosse um terrorista internacional. Já o político poderoso, flagrado em um esquema para desviar milhões de reais em dinheiro público, recebe uma canetada salvadora, um habeas corpus mágico, uma interpretação criativa que transforma o preto em branco. É a arte de julgar no feeling, de decidir com o coração – ou o fígado – quantos anos alguém vai passar atrás das grades.
E não me venha com essa história de igualdade perante a lei. Igualdade é para os fracos! No Brasil, a lei é como um elástico: estica para um lado, encolhe para outro, às vezes arrebenta. Um mesmo crime pode render uma pena de 30 anos para um, liberdade condicional para outro e uma multa simbólica para aquele cara que conhece o primo do cunhado do juiz.
Imagine a cena: o réu, nervoso, suando em seu terno alugado, espera a sentença. O juiz folheia o processo como quem lê o cardápio de um restaurante. O promotor, distraído, rabisca algo que parece ser a lista de compras do supermercado.
Então acontece o momento mágico: o juiz ergue os olhos, suspira e proclama a pena: 30 anos de cadeia. Como ele chegou a esse número? Mistério. Talvez tenha sido inspirado pelo horóscopo, pelo placar do jogo de ontem ou pelo volume de café que sobrou na garrafa térmica. O importante é que a decisão foi tomada.
O advogado de defesa ainda ousa perguntar:
— Meritíssimo, mas e a aplicação das circunstâncias atenuantes?
E o juiz responde:
— Cale a boca, doutor. Aqui é sem dosimetria! Não ouse me questionar.
O mais interessante é o efeito pedagógico dessa doutrina revolucionária. Durante anos, ensinaram aos estudantes de Direito que o devido processo legal e a imparcialidade eram os pilares do Estado de Direito. Pobres iludidos. Agora descobrimos que a verdadeira chave é a dosimetria seletiva.
Um estudante poderia, com razão, perguntar ao professor:
— Mas, mestre, e se um juiz decidir dar 30 anos a alguém que merecia 5?
— Ora, meu caro, é simples: sem dosimetria!
Outro aluno, mais ousado, questionaria:
— E se o juiz absolver um criminoso claramente culpado, só porque simpatiza com suas ideias políticas?
— Você ainda não entendeu? O segredo está na ausência de cálculo, na beleza da arbitrariedade.
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Kafka se sentiria em casa. Processos sigilosos e intermináveis. Penas que surgem do nada. Delações premiadas que mudam ao sabor do vento. Réus que se transformam em vítimas, e vítimas que viram culpados. Tudo sob a batuta de togados que, em vez de aplicar a lei, parecem disputar quem dá o voto mais lacrador. O público acompanha, perplexo. Alguns vibram, outros se revoltam, mas todos percebem: a balança da Justiça já não pesa, só balança.
E se, em vez de criticar, abraçássemos o "sem dosimetria" como um movimento cultural? Vamos julgar com paixão, com emoção, com aquele jeitinho brasileiro que transforma qualquer problema em uma gambiarra. Imagine um tribunal onde os juízes, em vez de consultar o Código Penal, consultam o próprio coração. "Sinto que este réu merece uma chance", diria um juiz, enquanto outro, em um dia ruim, sentenciaria: "Você me lembrou minha ex, sete anos de cadeia!"
Talvez devêssemos oficializar logo a coisa. Criar um novo Código Penal, com seu artigo inaugural dizendo o seguinte:
Art. 1º — A pena será aplicada conforme a conveniência, sem necessidade de cálculo, proporcionalidade ou coerência.
Parágrafo único — Aos amigos, tudo; aos inimigos, sem dosimetria.
Talvez seja adequado um treinamento intensivo para os juízes desenvolverem sua intuição artística. Matérias como "Como Sentenciar com Base no Humor do Dia" ou "A Arte de Ignorar o Código Penal" seriam obrigatórias nas graduações de Direito. Também cairia bem um novo sistema de recursos, no qual os advogados poderiam apelar com base em argumentos do tipo "o juiz estava com fome" ou "a audiência foi marcada no mesmo dia do jogo do Flamengo".
No fim das contas, o "sem dosimetria" é mais do que uma prática judicial; é uma filosofia de vida. É a celebração do improviso, da subjetividade, do jeitinho que só o Brasil sabe oferecer. Por que se prender as regras, quando podemos navegar pelo caos com um sorriso sádico no rosto e um processo fajuto na mão?




