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Ultimamente, tenho pensado com frequência que as pessoas se dividem entre aquelas que vivem no mundo como ele é e aquelas que vivem no mundo como elas acham que deveria ser. Quem vive no mundo como ele é geralmente tem que pagar boletos, trabalhar, produzir, se empenhar pelo conforto bem-estar e segurança de sua família etc. Em outras palavras, são adultos, indivíduos que reconhecem seus deveres e assumem a responsabilidade por suas vidas. Não cobram dos outros a própria felicidade, vão atrás dela.

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Já quem vive no mundo como ele deveria ser costuma usar as imperfeições da sociedade como pretexto para se fazer de vítima. Não reconhecem nenhum dever, mas exigem todos os direitos e jogam o tempo inteiro nas costas dos outros – e do Estado – a culpa por todos os seus problemas, derrotas e fracassos.

No passado, essa escolha por viver no mundo como ele deveria ser era prerrogativa dos adolescentes: fazia parte do processo de formação passar por um período de rebeldia improdutiva contra as injustiças da sociedade, período que acabava passando naturalmente. Hoje, a adolescência parece ter sido prorrogada até os 40, 50 anos ou mais: não existem mais adultos, as pessoas passam diretamente da adolescência para a velhice.

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Esse contraste entre uma visão positiva do mundo (que aceita os fatos, o que não significa se conformar com eles) e uma visão normativa (que nega os fatos em nome de um modelo abstrato de sociedade) tem raízes profundas no debate sobre a natureza da política. Entre diversas outras maneiras de se delimitar esse debate, uma bastante interessante é estabelecer uma distinção entre o moralismo político e o realismo político.

A visão moralista da política remonta a Platão e Aristóteles. Para os pensadores moralistas, a reflexão sobre política se confunde com a filosofia moral e a ética, isso é, trata de determinar os objetivos que devem ser perseguidos pela atividade política – como a liberdade, a justiça, a igualdade etc. É uma reflexão prescritiva, na qual valores abstratos e postulados morais prevalecem sobre a dinâmica real da sociedade.

A História demonstra que é em nome das bandeiras mais nobres que as piores barbaridades são cometidas contra o indivíduo e a liberdade

Ao longo dos séculos, esse tipo de pensamento engendrou diferentes modelos de sociedade ideal, que se tornaram um norte e uma referência para a ação – cabendo lembrar aqui que o modelo ideal desenhado por Aristóteles excluía os escravos, as mulheres e os estrangeiros de qualquer atividade política: eram cidadãos de segunda classe, privados de qualquer possibilidade de interferir no governo (ou mesmo de governar a si mesmos). Ou seja, o conceito do que seria uma sociedade ideal (utópica) pode variar bastante.

Etimologicamente, como se sabe, “utopia” – termo criado pelo filósofo inglês Thomas More em 1516 – se refere a um lugar inexistente, um “não-lugar”. Ao escolher esse título para sua obra mais famosa, o conselheiro do rei Henrique VIII (que acabou mandando encarcerá-lo e decapitá-lo, quando More se opôs ao seu divórcio) parecia sinalizar ter consciência de que o mundo perfeito simplesmente não existe: o máximo a que podemos aspirar é trabalhar para diminuir as imperfeições do mundo real, inevitavelmente injusto e frequentemente cruel.

Segundo pensadores como Robert Nozick, autor do clássico “Anarquia, Estado e utopia”, a adesão a projetos políticos utópicos já justificou a adoção da violência de Estado, da censura e de consolidação de uma mentalidade totalitária – e aí mora o perigo do moralismo na política. Nesses casos, a suposta luta por uma sociedade melhor serviu como justificativa para partidos e ditadores se perpetuarem no poder. Nada impede que isso volte a acontecer no futuro, o que dá razão à visão da política alternativa ao moralismo: o realismo político.

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Se o moralismo vê a política como missão, a pretensão do realismo é bem mais modesta: pensadores realistas rejeitam a ideia de que a função da política é promover valores morais ou éticos, como a liberdade, a igualdade ou a felicidade. Política, para eles, não tem nada de nobre: é tão somente a luta pelo poder, o meio pelo qual diferentes grupos de interesse se empenham em derrotar seus inimigos e conquistar o (ou se manter no) poder.

Os pensadores dessa linhagem – que remonta a Maquiavel e Thomas Hobbes – costumam ser percebidos como cínicos e céticos em relação às motivações humanas, quando, na verdade, são apenas... realistas. O que importa na reflexão política, para eles, é analisar as fontes do poder e entender como ele é exercido, de forma a tentar manter a sociedade funcionando da maneira mais eficaz e harmônica possível – e evitar o retorno ao estado de natureza, no qual as leis não são respeitadas, os direitos não são iguais e se vive um cotidiano de guerra de todos contra todos. É mais ou menos este o buraco para onde estamos caminhando hoje.

Viver no mundo como ele deveria ser é, seguramente, mais fácil e prazeroso. É onde vivem, por exemplo, os progressistas lacradores, que se atribuem o monopólio da virtude, a superioridade moral e o pode de impor suas próprias regras ao restante da sociedade - tudo em nome das bandeiras mais nobres. Mas a História demonstra que é em nome das bandeiras mais nobres que as piores barbaridades são cometidas contra o indivíduo e a liberdade.