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Gal Gadot como a Mulher Maravilha e Elizabeth Taylor no papel de Cleópatra: vítimas da lacração
Gal Gadot como a Mulher Maravilha e Elizabeth Taylor no papel de Cleópatra: vítimas da lacração| Foto: Divulgação

Está ficando ridículo já. Gal Gadot, a atriz israelense que ficou famosa no papel da Mulher Maravilha, foi escalada para interpretar Cleópatra no cinema, na nova versão que será produzida pela Paramount. O filme será dirigido por uma mulher, Patty Jenkins, e a própria atriz revelou no Twitter que a proposta é “recontar a História pela primeira vez através dos olhos das mulheres, tanto atrás quanto na frente das câmeras". Perfeito. Mas nem pagando esse pedágio para as feministas Gadot se protegeu contra a cultura do cancelamento que domina o Ocidente.

Gal Gadot no papel de Cleópatra? Não pode. Um exército de ativistas identitários está acusando Hollywood de “whitewashing” – expressão que denuncia o “embranquecimento” de personagens de outras etnias. "Hollywood sempre escala atrizes americanas brancas como a Rainha do Nilo. Pelo menos uma vez, eles não conseguem encontrar uma atriz africana?", postou, por exemplo, o ator James Hall no Twitter. "Gal Gadot é linda, mas escolhê-la para interpretar Cleópatra no cinema não ajuda a informar que a grande Rainha do Egito era uma mulher negra", escreveu uma internauta. Milhares de outros posts foram bem mais raivosos.

Em 1963, Cleópatra foi interpretada por Elizabeth Taylor, no épico que se tornou um clássico do cinema – o filme também ficou famoso por estourar de tal forma o orçamento que acabou causando prejuízo, apesar do sucesso internacional. Na época, um momento particularmente intenso da luta por direitos e liberdades civis, as minorias estavam preocupadas com coisas mais importantes: a lei que acabou com a segregação racial nos Estados Unidos seria assinada no ano seguinte, 1964, pelo presidente Lyndon Johnson. Hoje Elizabeth Taylor seria cancelada.

Não é a primeira vez, aliás, que Gal Gadot é vítima da lacração. Em março de 2017, a atriz foi alvo de violentos ataques nas redes sociais porque apareceu em uma cena do trailer de “Mulher Maravilha” com... as axilas depiladas. Os lacradores ficaram revoltados. Afinal de contas, a Mulher-Maravilha é um símbolo pop do feminismo e da mitologia das amazonas, mulheres que viviam isoladas e não correspondiam aos padrões de beleza da sociedade capitalista heteronormativa e machocrática. Ou seja, queriam que a Mulher Maravilha aparecesse no filme com o sovaco cabeludo. É sério: “Por que a Mulher Maravilha não tem axilas peludas? Estou farto desse feminismo falso”, escreveu uma fã da personagem.

Não parou aí: em março deste ano, a atriz israelense sofreu diversas críticas por ter aparecido em um vídeo com outras celebridades do cinema e da música cantando “Imagine”, de John Lennon, em suas casas. A intenção do vídeo era distrair e alegrar a vida das pessoas confinadas em seus lares, no início da pandemia, mas a iniciativa foi considerada ofensiva, por estar “desconectada da vida das pessoas comuns”. Ser bonita, rica e famosa passou a ser considerado algo ofensivo.

É claro que não se pode descartar um componente antissemita nesses ataques e na reação histérica à escalação de Gadot como Cleópatra. A atriz cumpriu o serviço militar obrigatório nas forças armadas de Israel – o que já seria motivo suficiente para despertar a ira dos progressistas que adoram os palestinos e odeiam os judeus (mas nazistas são os outros).

Houve um tempo em que somente ditaduras tentavam controlar escolhas artísticas. Mas, no "novo normal" da cultura da lacração, a censura virou ferramenta de luta pela democracia

Não que isso seja importante, mas o episódio de Cleópatra serviu ao menos para trazer à tona um antigo debate sobre a ancestralidade da rainha do Egito. Em 2009, pesquisadores austríacos publicaram um estudo que concluía que Cleópatra tinha origem étnica mista, na qual prevalecia a ascendência grega: ela seria descendente de Ptolomeu, general macedônio de Alexandre, o Grande, e portanto pode ter sido branca, o que joga por terra toda a indignação dos ativistas de redes sociais com a escalação de Gal Gadot para o papel.

Outro estudo, publicado pela revista “Nature” em 2017, afirmou que evidências arqueológicas (baseadas na análise do DNA de 90 múmias) indicavam um parentesco mais próximo dos egípcios da época de Cleópatra com a população do Oriente Médio, da Turquia e do Mediterrâneo do que com os africanos ao sul do deserto do Saara.

Além disso, o território que hoje corresponde ao Estado de Israel, onde Gadot nasceu, também fazia parte do Egito antigo. A Cleópatra histórica poderia muito bem se parecer com a atriz israelense. Ou seja, os protestos não fazem sentido. (Mas, acreditem, já tem gente reclamando porque Gal Gadot é alta, e Cleópatra seria baixinha: a escolha da atriz seria, portanto, uma manifestação evidente de baixinhofobia).

Mas por que eu disse que isso não é importante? Porque um filme é uma forma de manifestação artística, e um artista é livre para escalar quem ele quiser para interpretar qualquer personagem. Se a diretora do filme quiser escalar um homem para interpretar o papel de Cleópatra e uma mulher para o papel de Marco Antônio, é um direito dela. Se ela quiser representar Cleópatra como uma tartaruga e Júlio Cesar como um aspirador de pó, é um direito dela. A arte é livre. Um filme não é um ensaio acadêmico comprometido com a verdade histórica.

Vinte anos atrás, o diretor de teatro Antônio Abujamra encenou três versões de “Hamlet”:  uma só com atores homens, inclusive nos papéis femininos, outra só com atrizes mulheres, inclusive nos papéis masculinos, outra com um elenco inteiramente negro. Ninguém reclamou. Naquele tempo, somente nas ditaduras se tentava controlar escolhas artísticas. Mas, no "novo normal" da cultura da lacração, a censura virou ferramenta de luta pela democracia.

Aliás, uma das interpretações mais impressionantes que já vi de “Hamlet” foi a de um ator negro, o francês William Nadylam, em uma montagem dirigida por Peter Brook em 2002. Por óbvio, não foi o que Shakespeare imaginou ao escrever a peça sobre o príncipe da Dinamarca, mas e daí? Nadylan foi mais convincente no papel do que muitos atores brancos. Ele deveria ser proibido de interpretar Hamlet? Pela lógica dos lacradores que se dizem tão preocupados com o rigor histórico, sim. O papel estaria reservado a atores com exame de DNA comprovando ancestrais dinamarqueses.

A verdade é que o mundo está ficando cada vez mais chato, com uma minoria barulhenta determinando o que a maioria pode pensar, dizer ou mesmo assistir. Basta lembrar que, a partir do ano que vem, para concorrer ao Oscar um filme terá que cumprir várias regras de “representação equitativa”, independentemente da história contada. Em outras palavras, a indústria do cinema decretou o fim da liberdade artística, e todo mundo está achando bonito. O planeta está doente, mas não é só de Covid-19: a epidemia de chatice é ainda mais contagiosa.

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