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A arte de justificar privilégios e incompetência
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Imagine se fosse possível justificar publicamente uma série de privilégios indevidos fingindo que se devem ao mérito que você não tem. Nesse mundo, mesmo que você não tivesse competência para fazer o que faz, haveria uma forma muito técnica de mostrar a toda sociedade que o prejuízo causado pelas suas ações não é culpa da sua incompetência, é uma casualidade. Claro que se trata apenas de ficção.

É um livro inglês de 1958 chamado "The rise of Meritocracy", uma distopia em forma de ficção política de autoria do sociólogo e político inglês Michael Young. No universo criado por ele, foi encontrada uma solução para justificar de forma técnica privilégios indevidos e favorecimento de pessoas incompetentes que fazem parte do grupo que tem poder político ou econômico. Há um limite para o quanto se pode ser cínico com favorecimentos, então criaram um sistema chamado "Meritocracy", um neologismo usado pela primeira vez no livro.

Nessa obra de ficção, foi criado um método eficiente para convencer todo mundo de que pessoas que ganharam tudo na vida de mão beijada chegaram lá por mérito. E era tão eficiente que até os próprios privilegiados acreditavam no tal do método chamado, de forma jocosa, de "meritocracia". Ainda bem que é ficção.

Simplificando bastante o método dessa obra de ficção, os postos de trabalho, remunerações e privilégios eram definidos por testes periódicos. Mas as coisas que caíam no teste só eram ensinadas aos que eram amigos dos donos do poder. Ou seja, ele continuavam ganhando tudo de mão beijada mas agora tinham um resultado técnico para comprovar o merecimento, a nota do teste. E, depois de um tempo, eles próprios acreditavam que mereciam a nota do teste e davam dicas de como se esforçar para chegar lá.

No livro, essa estrutura vai chegando a um limite. Mas eu sempre penso se não poderia ir além. Imagine que, hipoteticamente, houvesse uma pandemia dessas de filme e, além da tragédia humana, ela devastasse a economia, deixasse mais da metade da população sem emprego. Suponha que essa ficção seja num lugar em que algumas carreiras do funcionalismo público colocam jovens inexperientes para sempre no 1% mais rico da população do país. E que esses jovens, caso cometam erros gravíssimos, tenham como maior pena ficar em casa recebendo esse salário para sempre. Além disso, eles têm o poder de decidir sobre a liberdade, a privacidade e a vida econômica dos demais, os 99%. Ficção, ok?

Pense que nessa peça de ficção existe uma corte chamada Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, cujos integrantes já são remunerados pelos 99% com muito mais do que os coloca nos 1% mais ricos da população e ele tenha resolvido dar bonificações por trabalho extra durante a pandemia. São bonificações que chegariam a, por exemplo, R$ 100 mil por mês para desembargadores, o equivalente a 4 anos de salário da maioria das famílias do país. Devem estar operando milagres para receber tamanha recompensa.

Realmente, nessa ficção, muitos deles fazem um bom trabalho, alguns fazem um trabalho medíocre e outros jamais deveriam ter aquele emprego. Mas todos acreditam fazer algo muito melhor do que fazem, já que internalizaram o tal esquema distópico da "meritocracia". Como a grande maioria chegou onde está por falta de concorrência, já que não se oferece as mesmas oportunidades de educação a todos, acabam acreditando que venceram. Na verdade, jamais saberão como seria caso tivessem de competir por mérito. Mas isso dói demais na alma pensar, então melhor se agarrar aos resultados dos concursos e justificar sua pertinência com uma ou duas exceções que, apesar de todas as barreiras impostas, conseguiram furar o bloqueio.

Do alto de seus salários nababescos, garantidos até o final da vida, esses juízes decidem a vida de todos no meio de uma pandemia. Eles sabem que a maioria das pessoas do país não tem emprego e que muitos daqueles nomes que estão nos processos podem estar passando dramas terríveis. Mas continuam decidindo despejar pessoas de casa, congelar contas bancárias, confiscar bens, confiscar valores pessoais no banco. Poderiam, claro, considerar que é período de exceção absoluta e promover uma união nacional em torno de como ajudar o povo, já que são funcionários públicos e estão ali para servir o povo. Não, nessa ficção, eles querem saber quanto vão receber a mais para julgar a mais, sendo que não trabalham por carga de trabalho.

Na minha ficção, a justificativa dos privilégios e da incompetência acontece também na esfera privada, onde os Golden Boys do capitalismo de compadrio realmente acreditam ter os bens e o status social que têm por mérito, não pelo compadrio. Unidos, dedicam-se a autoelogios e promessas de melhorar a vida de todos os demais, que só não chegaram lá ainda por falta de esforço. São celebrados.

Saem da redoma de proteção do capitalismo de compadrio, em que sua incompetência é mascarada pelas amizades. Os que carregam o piano estão acostumados a bater palma para os Golden Boys mesmo que eles não tenham colaborado em nada ou tenham dificultado, afinal, a proximidade com eles é mais chance de ascensão do que o trabalho duro, jamais reconhecido. De alguma forma, todos acabam participando de um teatro em que os Golden Boys realmente crêem que são bons no que fazem e sabem o que fazer. E daí eles têm uma chance de colocar isso em prática. Tudo ficção, lembrem sempre.

Empolgado com a possibilidade de ter uma vida melhor e o mérito finalmente reconhecido, o povo dá uma chance para que os Golden Boys ensinem a todos como chegar lá. Infelizmente, o fato é que eles já nasceram lá e não dá para fazer todo mundo nascer de novo em família influente.

Sem ter o séquito que carregue o piano do trabalho duro enquanto bradam autoelogios e capacidade de inovação, os Golden Boys bradam muito e não entregam nada do que prometeram ao governante que lhes deu a chance. Alegam que tem muita gente contra, todos emperram, é tudo um grande jogo de interesses políticos, pessoas desonestas, muita burocracia. Ocorre que o trabalho era exatamente esse, vencer as dificuldades para entregar o prometido. O governante e o povo ficam sem saber qual é a palavra que eles menos entendem: trabalho ou dificuldade. Lembrem que, nessa ficção, esse cada um por si se dá durante uma pandemia.

O espírito público de primeira e a teoria de que o serviço público precisa de bons gestores são sepultados diante do primeiro não. Nessa distopia, a casta protegida jamais ouve um não, desde a mais tenra infância. Misturada aos 99% que ouvem mais não do que sim na vida, fica paralisada e muito contrariada por não poder fazer tudo o que quer. Então não quer mais nada, não entrega nada, coloca a culpa nos outros, abandona o barco. E, como é ficção, eles realmente acreditam que estão certos e o mundo não estava preparado para tanta genialidade.

Imaginação é bicho que voa longe, principalmente quando a gente se põe a pensar qual o cenário mais distorcido que uma sociedade poderia suportar. Obviamente, na vida real, seria quase impossível que um pudim de incompetência e privilégios desse tamanho fosse justificado diante de toda uma sociedade.

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