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Bandeira antifascista
FBI lança nova diretiva sobre Terrorismo Doméstico e admite que há investigados entre os Antifas e vários outros grupos com causas legítimas.| Foto: BigStock

Uma nova diretiva do FBI sobre terrorismo doméstico tem causado polêmica nos Estados Unidos. Liberado agora para o público e já submetido aos comitês de Judiciário, Inteligência e Segurança Doméstica da Câmara e do Senado, o documento chama-se "Strategic Intelligence Assessment and Data on Domestic Terrorism". Os dados levantados indicam que pode haver uso das teorias de grupos legítimos para radicalização que embasa atentados terroristas.

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Congressistas e movimentos de Direitos Humanos preocupam-se com a subjetividade. Os progressistas temem que as novas diretrizes possibilitem uma perseguição do governo Biden a ativistas que se tornaram famosos como, por exemplo, os Antifas. Mas também há outros grupos elencados que, num primeiro momento, jamais relacionaríamos a terrorismo.

As leis dos Estados Unidos sobre terrorismo não têm um foco na causa da ação, como as brasileiras, são concentradas nos métodos, independentemente da causa defendida. As atividades definidas como Terrorismo Doméstico são as que:

• Envolvem atos perigosos para a vida humana que são uma violação das leis criminais dos Estados Unidos, Estados ou de qualquer Estado;
• Aparentemente destinada a:
o Intimidar ou coagir uma população civil;
o Influenciar a política do governo por meio de intimidação ou coerção; ou
o Afeta a conduta de um governo por destruição em massa, assassinato ou
sequestro; e
• Ocorrendo principalmente dentro da jurisdição territorial dos Estados Unidos
.

No início do relatório, o FBI esclarece que não são consideradas ameaças de terrorismo doméstico aquelas baseadas simplesmente em discurso, mesmo que seja um discurso forte ou violento, inclusive nos casos em que se dá apoio genérico a estratégias e táticas violentas de militância. É necessário haver pelo menos indício de planejamento de uma ação entre as elencadas como Terrorismo Doméstico.

A radicalização de pessoas via internet é uma preocupação central. A maioria dos atentados nos Estados Unidos desde 2017 é cometida pelos chamados "lone wolves", lobos solitários. Eles matam e explodem em nome de uma causa mas não necessariamente foram recrutados por um grupo ou fazem parte de um movimento. Envolvem-se com o tema pelas redes sociais e tomam a decisão de agir de forma radical sozinhos.

O psicólogo social Jonathan Haidt, professor da NYU, diz que sua principal lição de vida é que personalidades perversas encontram desculpas morais para exercer perversidades. Não é raro que encontrem um grupo que as apóie por identificar-se com a causa que dizem defender. Numa sociedade hiperconectada, é um processo muito mais fácil de ocorrer.

Dar apoio envolve muito menos esforço, pode ser feito por redes sociais. Além disso, rende mais sensação de reconhecimento e superioridade moral, pois ela vem de likes, repostagens e comentários. Além disso, a responsabilidade se dilui e há menos culpa. Como é só pela internet e um grupo grande age da mesma forma, ninguém sente que é individualmente responsável. Ninguém é responsável, trata-se cada ato de terrorismo doméstico como um acidente, ato de insanidade ou caso isolado.

Desde o primeiro relatório do tipo feito pelo FBI em 2017, o número de causas usadas como desculpas por terroristas domésticos cresceu muito. E algo que dificulta as investigações é a tendência de grupos unidos informalmente, sem recrutamento. Não há um grupo terrorista que recruta, radicaliza e instrui quem fará os atentados. Dentro de grupos de todo tipo de militância tradicional e lícita estão surgindo radicais sem laços formais e dispostos a executar atos de terrorismo doméstico.

Nós aprendemos a entender o terrorismo num conceito de grupo ou associação. Para o FBI, é necessário enxergar um novo fenômeno que surge com as redes sociais. Não existem líderes, grupos ou organizações, mas movimentos ou ideologias aos quais qualquer um pode aderir. Algumas pessoas, no entanto, fazem disso sua identidade social. Misturado a frustração e ressentimento, este fenômeno produz os lobos solitários. Nesse grupo, há os que identificam-se como Antifas também.

“A Antifa é uma coisa real. Não é um grupo ou uma organização, é um movimento ou uma ideologia, talvez uma forma de pensar sobre isso, e temos um bom número - e eu tenho dito isso consistentemente desde minha primeira vez perante este comitê - temos um número de investigações devidamente fundamentadas sobre o que descreveríamos como extremistas anarquistas violentos. Alguns desses indivíduos se identificam com a Antifa.”, declarou o diretor do FBI Christopher Wray em audiência na Câmara dos Estados Unidos, trecho citado pela última edição da revista Politico.

Também há investigações em andamento sobre radicais infiltrados em protestos antirracistas nos Estados Unidos, com potencial para atos de terrorismo doméstico. “Embora a maioria dos manifestantes tenha sido pacífica, abrimos investigações sobre indivíduos envolvidos em atividades criminosas nesses protestos, alguns dos quais aderem a agendas extremistas violentas destinadas a semear discórdia e levante”, declarou o diretor do FBI.

Não é difícil compreender a nova dinâmica social da hiperinformação, em que a defesa de ideias não necessariamente reúne grupos organizados e está mais sujeita à infiltração de radicais, personalidades perversas e potenciais terroristas. O difícil é traçar regras na vida real para o combate ao terrorismo doméstico que preservem os direitos civis e direitos humanos.

O FBI fez uma espécie de powerpoint do Deltan elencando as principais ideias defendidas por pessoas que cometeram atos de terrorismo doméstico nos últimos anos. É mais fácil compreender quando são relacionados a algo ilícito, como defesa de supremacia branca, já que fazemos também o julgamento moral. O complicado é como diferenciar quem são os radicais dentro de movimentos legítimos, como anarquistas, Antifa, defensores de animais, protetores do meio ambiente e até militantes pró-vida.

A grande preocupação de congressistas e entidades de direitos humanos é a necessidade de confiar no julgamento subjetivo de agentes do FBI e do governo para cumprir a política de prevenção e enfrentamento do Terrorismo Doméstico. Elas podem funcionar bem dentro de políticas democráticas e contando com a boa fé de cada agente público. Mas, e se tiver alguém de má-fé ou empenhado em perseguições ideológicas ou vingança?

Nesses casos, a regra cria uma abertura para que se legitime um processo de perseguição individual ou a um grupo específico. É uma brecha perigosíssima. Como terrorismo é algo gravíssimo e distante do mundo imaginário do cidadão comum, logo pensamos em como regimes totalitários ou grandes maquinações podem usar essa brecha. São exceções absolutas das quais temos muito medo.

Ocorre que o perigo de brechas em regras para investigação e classificação de Terrorismo Doméstico está nos casos mais triviais, que parecem inocentes mas podem destruir vidas da mesma forma que grandes complôs. Imagine que alguém não consiga dormir sem vingar-se de um desafeto pessoal. Pense em um agente que tem sido cobrado pela baixa eficácia na identificação de suspeitos. Ou ainda alguém que precisa de uma promoção para acalmar problemas familiares e vê uma oportunidade de criar um caso midiático.

Não se sabe a motivação, mas já ocorreu acusação falsa em que agentes do FBI admitiram ter mentido sobre as ligações de uma pessoa com terrorismo. O professor Anming Hu, da Universidade do Tenessee, foi acusado de espionar para o governo da China. Sem aviso prévio ou saber que era investigado, teve o passaporte confiscado e foi proibido de entrar em aviões. Todas as comunicações dele e do filho foram interceptadas e vigiadas durante 2 anos. Imagine o que uma informação como esta faria na sua vida pessoal e profissional.

Em junho deste ano, o agente do FBI Kujtim Sadiku admitiu na corte de Knoxville que mentiu na investigação. Aliás, nem sei se podemos chamar de investigação. Ele havia informado que confirmou os laços terroristas do professor universitário por meio de investigação em bancos de dados abertos. Era uma pesquisa no Google. Seria cômico se não fosse trágico. O processo ainda não acabou, será decidido em júri popular.

Por um lado, é necessário compreender as mudanças que a Cidadania Digital trouxe para a sociedade e utilizar essa informação para preservar vidas e instituições, combatendo o terrorismo. Não há dúvidas sobre isso. A questão com que os Estados Unidos deparam-se agora é como fazer isso sem confiar em decisões subjetivas, sentimentos pessoais e dados que possam ser fraudados. A defesa da democracia não pode virar a implosão da democracia.

O Comitê do Judiciário do Senado norte-americano enviou uma série de perguntas sobre a nova diretiva ao Procurador-Geral. Para quem trabalha todos os dias com terrorismo e foca exclusivamente no combate a essa prática horrenda, faz sentido sair investigando e prendendo todo mundo. Na cabeça da gente, também faz muito sentido num primeiro momento. Quanto mais se investiga mais se encontra e quem não deve não teme, certo? É certo até ser com a gente ou alguém que a gente ama.

Há casos em que a investigação ou o processo contra um inocente punem mais do que a pena sobre um criminoso culpado. Como assim? Imagine que, durante 2 anos, você tenha restrições de deslocamento e seja investigado por terrorismo. Ninguém disse que você é culpado, mas toda a sua rede de contatos profissionais, sua família e seus amigos sabem da investigação. Para um cidadão honesto, esta situação é uma pena mais pesada do que a prisão é para um criminoso.

Outro dia estava lendo um processo de investigação de formação de quadrilhas digitais. A maioria age usando perfis anônimos ou pseudônimos. Digamos que 99% tenham sido rastreados para que se descobrisse o indivíduo responsável. Em mais de mil e duzentas páginas de investigação houve um pequeno deslize. Um perfil envolvido usava um pseudônimo que vem a ser o nome exato de uma única pessoa no Brasil. Esta pessoa, que não tem nada com o assunto, teve de depor, acompanhada de advogado. Teve seu nome vazado para alguns jornalistas. E se fosse você?

Saímos da era em que extremismo político e religioso sempre estavam por trás de atentados terroristas domésticos ou internacionais. Hoje, qualquer tema que gere sinalização de virtude nas redes sociais pode ser utilizado como justificativa para atos perversos de indivíduos que nem fazem parte de grupos organizados. Nosso desafio é criar regras para combater o terrorismo sem provocar o que os terroristas pretendem, o medo generalizado e a desconfiança nas instituições.

Não haverá lei nem polícia que possam dar conta da radicalização e do extremismo enquanto forem tolerados socialmente. Para todos nós, é muito fácil e rápido detectar os radicais e extremistas nos grupos sociais e políticos opostos ao nosso. Eles atacam pessoas que respeitamos de formas muito baixas e violentas, fica cristalino. O grande desafio dos grupos políticos, ideológicos e de militância no século XXI é reconhecer e saber como lidar com seus próprios radicais.

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