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Patrulha
| Foto: Pixabay

O meio jornalístico está em polvorosa desde a publicação de um artigo do antropólogo Antonio Risério na Folha. Nessas horas, dou graças a Deus porque meu filho diz aos amigos que eu sou YouTubber, não jornalista. Eu compreendo as motivações de quem assina cartas contra o próprio empregador e pretendendo calar outras pessoas. Só não sei onde exatamente esse pessoal coloca o próprio senso de sobrevivência.

Entre os jornalistas é tabu não atacar Risério da maneira mais vil possível neste momento. Quem não entra na onda vira o próximo fascista. Por outro lado, é bem tentador aderir ao linchamento do Clube dos Moralmente Superiores e com Lugar de Fala. Repetir como um papagaio, inclusive aos gritos, os bordões, distorções e verdades alternativas dá dinheiro e abre portas no mercado da comunicação. No meu artigo de ontem, contei a vocês que estamos falando de bilhões de dólares.

O professor de jornalismo da Universidade Federal da Bahia e colunista da Revista Cult Wilson Gomes cometeu um pecado mortal. Foi se meter a dizer no Twitter que jamais imaginou ver um coletivo de jornalistas assinar publicamente uma carta defendendo interdição de discursos. Avaliem o carinho e a honestidade da argumentação contrária. Ele resolveu fazer um manual mostrando como a patrulha identitária cala críticos. Eu resolvi copiar e convido você a compartilhar.

Começo pelas bases do "identitarismo" para além das teorias específicas de racismo, machismo, homofobia e gordofobia. O primeiro ponto da espinha dorsal é a inexistência de verdade objetiva. Não há uma oposição entre mentira e verdade, fora de questão. Cada um tem sua verdade e há regras morais sobre qual das verdades deve prevalecer. A dualidade entre mentira x verdade é substituída por outra, o ofensivo x seguro.

Essa visão relativista de mundo é também atrelada à hierarquia moral entre opressores e oprimidos. Como a verdade é relativa, o opressor não é quem oprime nem o oprimido é quem foi oprimido. A sociedade é dividida em categorias morais iniciando por quem faz parte do grupo historicamente mais oprimido até chegar no homem branco cis. Isso divide o mundo entre bons que estão sempre certos e maus que estão sempre errados.

Volto desse conceito da divisão entre bons e maus para o primeiro, da verdade relativa. A justificativa dessa divisão entre quem é oprimido e opressor também não precisa ser fundada em verdade histórica. Se sua opinião contraria fatos históricos, basta reescrever a história. Um bom exemplo é a Etimologia Freestyle, a criação de falsas histórias sobre termos que seriam racistas, machistas ou homofóbicos. (Nesse artigo, trago exemplos de quando uma agência de checagem se prestou a isso.)

A versão oficial sobre termos ofensivos e "microagressões" é de que precisam ser suprimidos para proteger as minorias. A teoria pode até fazer sentido mas é mais uma verdade alternativa. A segurança emocional das pessoas e da sociedade depende de espaços seguros e sem ofensas. Já aplicaram isso e o efeito é o contrário. Patrulhar o uso de palavras ofensivas piora a saúde mental, inclusive das minorias. Fiz um vídeo explicando o tema.

Criar um idioma próprio e alterar o significado de palavras de uso corrente é algo muito comum em seitas religiosas. É útil para controlar pessoas e silenciar dissonantes, já que identifica pelo vocabulário quem é ou não membro do grupo. A adesão ao grupo significa que a pessoa está sempre certa e também que não pode contrariar as lideranças. Questionamentos não são permitidos jamais, significam virar a casaca ou fazer parte da conspiração da extrema-direita.

Para colocar toda essa teoria em prática, o primeiro passo é passar a exercer o oposto do Princípio da Boa Fé nas relações interpessoais. Tudo o que alguém de fora do grupo disser precisa ser lido da pior forma possível, se necessário distorcendo completamente. Alguém que faz parte de um grupo opressor - brancos, por exemplo - só consegue pensar e agir fortalecendo a opressão. Quer dizer, menos quem adere à patrulha identitária, que daí ganha a beatificação e pode tudo.

Um ponto importante do comportamento do grupo é o patrulhamento, que alguns estudiosos norte-americanos chamam de "Call Out Culture". Para receber a beatificação identitária não basta usar todas as palavras e concordar cegamente com tudo, é preciso apontar quem não se agacha. Problemas entre pessoas não são resolvidos e não há a possibilidade de ação na vida real. A atuação deve ser passar o dia todo apontando quem falou um absurdo e exigindo boicote até que se desculpe publicamente.

Suponhamos que a pessoa ceda e peça desculpas publicamente pelo que nem fez. É aí que se faz necessário dobrar a aposta. Como o opressor é inerentemente mau e não aderiu à patrulha identitária, apenas pediu desculpas, será insuficiente. O grupo não vai dizer claramente o que pretende nem que tipo de reparação espera. Tudo o que for feito pela pessoa será criticado.

Acompanhando o caso específico de Antonio Risério, você percebe como todas essas técnicas foram colocadas simultaneamente em ação. A palavra racismo só surge no século XX, na França, "racisme". Em inglês, "racism" surge para descrever as políticas de Hitler contra os judeus. No dicionário e na cabeça da maioria das pessoas, racismo é discriminar alguém pela raça, qualquer uma. Nas ciências sociais, se pondera que só um grupo dominante socialmente pode ser racista. Na patrulha identitária, questionar ou ignorar essa teoria equivale a ser supremacista branco.

Quem questionar o método deve ser atacado pessoalmente, desqualificado e desumanizado. Tudo o que a pessoa diz precisa ser ridicularizado porque ela faz parte dos maus, os opressores. É importante não levar em conta a história de vida da pessoa nem fatos reais, somente estereótipos. Sobre meu artigo, uma boa saída para a patrulha identitária é me acusar de ser branca e, portanto, não poder falar sobre este tema.

Ué, mas não tem mulheres brancas na patrulha identitária condenando todo mundo por racismo? Claro que sim, mas elas também precisam condenar o "pacto da branquitude", "reconhecer os próprios privilégios" e, de preferência, atacar qualquer outra mulher branca que questione o grupo. Uma forma de atacar sem parecer um caminhão desgovernado é o passivo-agressivo "veja como nós, mulheres brancas, precisamos melhorar". Daí distorce os fatos e recebe os louros.

A patrulha identitária trabalha pelo próprio ego, mas há pessoas sérias trabalhando contra problemas graves como racismo, machismo e homofobia. Como diferenciar uma da outra? Simples: o laço com a realidade. A ação está criando aliados ou inimigos? Se está criando inimigos, é feita para fortalecer o grupo e quem lidera. Se criar pontes, é feita para convencer os outros de que sua proposta é melhor.

Sinceramente, eu poderia escrever um livro sobre essas técnicas, hoje praticamente um código de conduta do jornalismo brasileiro. Quer dizer, enquanto o jornalismo existir. Há uma queda de confiança absurda na imprensa e, no caso específico da carta aberta de jornalistas contra a Folha, uma perda do senso de sobrevivência. Se até os próprios jornalistas desconfiam do jornal onde trabalham, por que o público vai confiar?

No universo da patrulha identitária, no entanto, isso não é importante. Nada que tenha conexão com a realidade é mais importante do que o universo simbólico e "estar do lado certo da história". Muita gente acaba cedendo à pressão mesmo sendo contrária às práticas, é uma perda enorme de tempo e dinheiro brigar com a patrulha identitária. Ocorre que o jornalismo vive de fatos reais. Se legitimarmos uma visão de mundo em que não há verdades nem mentiras, para quê jornalismo

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