Chico Buarque durante ato do “Manifesto Cultura pela Democracia” contra o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff| Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil / Arquivo
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Chico Buarque não vai mais cantar "Com Açúcar e Com Afeto", que fez para Nara Leão por considerar que é misógina. Você também deve ter lido por aí que ele fez isso a pedido do movimento feminista. Já tem gente dizendo que o Chico Buarque foi censurado pelas feministas. Fui atrás. Não é bem isso, mas também é um fato que demonstra a infantilização identitarista da cultura brasileira.

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Qual feminista pediu para ele parar de cantar essa música? Teria de ser uma bem velha. A performance mais recente que eu encontrei foi essa daqui, um vídeo antigo mostrado no documentário "À Flor da Pele", de 2005. Trata-se de uma retrospectiva da carreira do cantor e compositor, filmada no frio de Paris. Nenhuma feminista pediu nada. Acho que a última vez em que ele cantou isso deve ter sido a primeira.

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A decisão de cantar ou não uma música que ele não cantava há décadas é do próprio Chico Buarque, direito dele. Mas dar publicidade à não-decisão e fazer de conta que ela é parte do engajamento numa luta social é a cara do identitarismo, a total esculhambação de pautas legítimas. Digo não-decisão porque não houve efeito prático, ele já não cantava a música mesmo. E deixar de cantar ajuda objetivamente em quê a luta por igualdade das mulheres? Nada, mas empolga a elite identitarista, que é público do cantor.

Hoje de manhã, graças à evolução tecnológica, recebi aqui no Jardim Sabiá, Cotia, uma aula sobre como eu sou privilegiada por dizer que escolha de música do Chico Buarque é pauta de elite, não luta social. Quem me ensinou que isso é luta social sim e eu não enxergo porque sou mal intencionada e privilegiada foi um rapaz que mora em Paris e luta demais para se manter lá. Ele me explicou que é o oprimido e eu sou a opressora, mas com muito carinho, como todo identitarista.

Não compreendi muito bem qual a argumentação do rapaz porque ele deve ser intelectualmente muito superior. Compreendi, no entanto, a razão da defesa tão apaixonada da autocensura de Chico Buarque: ambos querem o status de revolucionário sem a necessidade de fazer revolução. Eu acho chique. Vai abrir mão de Paris e um monte de outras coisas legais por causa de pobre? Melhor não cantar uma música que já não cantava ou xingar mulher no Twitter, direto de Paris.

Vi muitas amigas feministas e prafrentex da elite metropolitana comemorando a decisão de Chico Buarque. Entendo perfeitamente. Aquilo é um bico doce que faça-me-o-favor. Não imagino quantas mulheres já tenham caído na lábia dele e é uma coisa sensacional que, apesar da idade, continue na ativa. A atitude do cantor está nas primeiras páginas do Manual Oficial do Esquerdomacho Raiz.

Como ser um feministo? Finja que tomou alguma atitude revolucionária pelas mulheres e consiga o apoio de mulheres que se dizem feministas. Daí, você ganha o "free pass identitarista José de Abreu", que confere imunidade total. Ninguém pediu nada ao Chico Buarque. Ele próprio tomou a decisão de não cantar uma música que já não canta há milênios mas quer posar de feministo. Conseguiu. Enquanto houver cavalo, São Jorge não anda a pé.

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Voltemos aos fatos. Tem um documentário novo maravilhoso, "O Canto Livre de Nara Leão", sobre a cantora. Chico Buarque participou fazendo uma ponta, afinal os dois compuseram e cantaram juntos músicas sobre mulheres que fazem parte da cultura brasileira. Claro que ele iria roubar a cena, vocês têm alguma dúvida? Não de propósito, mas pela conjunção astral que sempre faz com que algumas figuras masculinas da cultura apareçam mais que as femininas.

As palavras exatas do cantor após dizer que não cantaria mais a música foram: "Ela me pediu a música, ela me encomendou essa música, ela falou ‘Eu quero agora uma música de mulher sofredora’. E deu exemplos de canções do Assis Valente, Ary Barroso, aqueles sambas da antiga, onde os maridos saíam para a gandaia e as mulheres ficavam em casa sofrendo, tipo “Amélia”, aquela coisa. Ela encomendou e eu fiz".

Não ficou muito claro o motivo, então a imprensa o procurou e ele explicou. "Eu gostei de fazer (a canção). A gente não tinha esse problema (a crítica das feministas). É justo que haja, as feministas têm razão, vou sempre dar razão às feministas, mas elas precisam compreender que naquela época não existia, não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão, que a mulher não precisa ser tratada assim. Elas têm razão. Eu não vou cantar ‘Com açúcar e com afeto’ mais e, se a Nara estivesse aqui, ela não cantaria, certamente", disse Chico Buarque.

Aprenda direitinho com Chico Buarque se você precisa bancar o feministo por aí. Primeiro você diz que uma vontade sua é reivindicação do movimento feminista que você atendeu. Depois, você toma decisões em nome de uma mulher sem consultá-la e diz como ela deveria se comportar. Não seria machismo? Sim, mas você usa a justificativa moral de que é tudo em nome do feminismo. Muito esquerdomacho vive disso, mas poucos são tão mestres na arte quanto Chico Buarque.

Ouvi várias amigas alegando que o tempo dessa música já passou. Seria algo tóxico, que poderia levar meninas e mulheres à idealização de relacionamentos abusivos. Essa é a mágica do feministo, fazer as próprias mulheres dizerem que mulher é tudo imbecil e precisa ser tutelada. Precisa ter a complexidade emocional do Dollynho para imaginar que uma música faz uma mulher romantizar abuso.

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Nesse momento, lembrei da minha professora do colégio de freiras, dona Elvira Terezinha. Ela teria concordado com as nossas feministas porque defendia teorias semelhantes. Ficou muito contrariada, por exemplo, quando as freiras resolveram que nós deveríamos ver o documentário "Eu, Cristiane F, 13 anos - drogada e prostituída".

As freiras defendiam que era necessário conhecer as consequências possíveis dos vícios para saber a gravidade e evitar. Dona Elvira Terezinha divergia, julgava ser mais provável que cada uma de nós virasse uma Cristiane F. tupiniquim. Também era radicalmente contrária a videogames, já que eles poderiam tornar cada criança um assassino potencial. As previsões não se realizaram, mas era uma visionária. Quem diria que, em 2022, as mulheres mais progressistas pensariam igualzinho induzidas pelos esfuziantes olhos azuis do nosso ídolo.

Não confundam identitarismo com militância, ele é o oposto, a antipolítica. A militância feminista é a que lutou e conseguiu direitos concretos para mulheres. O identitarismo é a infantilização e imbecilização da mulher, que precisará ser defendida e microgerenciada por virtuosos guerreiros da Justiça Social. A arte precisa ser transformada em tese sociológica, já que mulher não distingue ficção de realidade. Como é o Chico Buarque, vou concordar e ajudar. Segue a lista das demais músicas que ele precisa parar de cantar para ontem:

1. GENI E O ZEPELIM é a mais urgente e não precisa nem dizer por quê, mas vou. Além de ser algo dizendo que mulher é p*ta e a gente precisa cuspir nela e tacar pedra, já começa com uma frase racista. Vou até colar o vídeo para você ver o grande perigo que ele representa e por que Chico Buarque precisa parar com essa música já.

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2. JOÃO E MARIA é mais uma que Nara Leão não cantaria se estivesse viva.
Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você, além das outras três

3. CONSTRUÇÃO
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única

4. COTIDIANO
Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café

5. MEU GURI nem vou postar trecho porque é a música inteira. Pode levar mães periféricas a romantizarem a entrada dos filhos para o mundo do crime.

6. O MEU AMOR
O meu amor tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios, de me beijar os seios
Me beijar o ventre e me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo como se o meu corpo
Fosse a sua casa

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7. RODA VIVA usa a palavra "mulata" que, segundo a Agência Lupa, é racismo. Estigmatiza a mulher negra ao inferir que toda negra sabe sambar.
A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou

8. A BANDA. Olha o nível de maldade e machismo.
A moça feia debruçou na janela
Pensando que a banda tocava pra ela

9. CÁLICE tem um verso de gordofobia explícita
De muito gorda a porca já não anda

10. ESSA MOÇA TÁ DIFERENTE é um documentário sobre stalking. A mulher não quer mais a relação e ele fica atrás o tempo todo imaginando que ela ainda o ama.
Mas o tempo vai
Mas o tempo vem
Ela me desfaz
Mas o que é que tem
Se do lado esquerdo do peito
No fundo, ela ainda me quer bem

11. O QUE SERÁ (à flor da pele) estigmatiza pessoas em situação de rua ao usar a palavra mendigo de forma pejorativa.
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz suplicar

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12. O CADERNO pode parecer muito inocente, mas também pode ser vista como uma metáfora de glamurização da pedofilia. Melhor evitar, vai que estimula alguém a normalizar esse tipo de abuso.
Sou eu que vou ser seu amigo
Vou lhe dar abrigo
Se você quiser
Quando surgirem seus primeiros raios de mulher
A vida se abrirá num feroz carrossel
E você vai rasgar meu papel

13. DURA NA QUEDA glamuriza a violência de gênero.
Vagueia
Devaneia
Já apanhou à beça
Mas para quem sabe olhar
A flor também é
Ferida aberta
E não se vê chorar

14. O QUE SERÁ (à flor da terra) é misógina por comparar as trabalhadoras sexuais a bandidos, desvalidos e tudo o que há de pior na sociedade.
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia a dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos

15. MEU CARO AMIGO usa expressão racista
Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate o sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

16. EU TE AMO glamuriza a relação abusiva em que a mulher quer encerrar o relacionamento e o homem recusa-se a aceitar.
Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair
Não, acho que estás te fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir

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17. A MULHER DE CADA PORTO
Quem me dera ficar meu amor, de uma vez
Mas escuta o que dizem as ondas do mar
Se eu me deixo amarrar por um mês
Na amada de um porto
Noutro porto outra amada é capaz
De outro amor amarrar, ah

Minha vida, querida, não é nenhum mar de rosas
Chora não, vou voltar

18. A NOIVA DA CIDADE culpabiliza vítimas de estupro
Ai, como essa moça é descuidada
Com a janela escancarada
Quer dormir impunemente

19. A ROSA
Ah, Rosa, e o meu projeto de vida?
Bandida, cadê minha estrela guia
Vadia, me esquece na noite escura
Mas jura
Me jura que um dia volta pra casa

20. A VIOLEIRA
Esse maluco
Me largou em Pernambuco
Quando um cara de trabuco
Me pediu pra namorar
Mais adiante
Num estado interessante
Um caixeiro viajante
Me levou pra Macapá

21. A VIZINHA DO LADO normaliza e glamoriza o assédio das cantadas de rua, além de objetificar o corpo feminino.
A vizinha quando passa
Com seu vestido grená
Todo mundo diz que é boa
Mas como a vizinha não há
Ela mexe co'as cadeiras pra cá.
Ela mexe co'as cadeiras pra lá.
Ele mexe com o juízo
Do homem que vai trabalhar

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22. A VOZ DO DONO E O DONO DA VOZ
A louca escorregava nos lençóis
Chegou a sonhar amantes
E, rouca, regalar os seus bemóis
Em troca de alguns brilhantes

23. ACORDA AMOR infantiliza a mulher por dizer a ela o que fazer e infere que mulher é encrenqueira e discute à toa. Além disso, glamoriza a criminalidade.
Não demora
Dia desses chega a sua hora
Não discuta à toa, não reclame
Clame, chame lá, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão

24. AGORA FALANDO SÉRIO prega violência contra os animais.
Dou um chute no lirismo
Um pega no cachorro
E um tiro no sabiá

25. AI, SE ELES ME PEGAM AGORA
Será que ele me trata à tapa e me sapeca um pescoção
Ou abre um cabaré na lapa e aí me contrata como atração
Será que me põe de castigo será que ele me estende a mão
Será que o pai dança comigo ou não?

26. ALUMBRAMENTO glamoriza a submissão feminina e a negação da sexualidade ao romantizar o fingimento de um orgasmo.
Deve ser bem louca
Deve ser animal
Hálito de gim
Vai fingir, vai gemer
E dizer:
Ai de mim!

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27. AMANDO SOBRE OS JORNAIS é suspeita de racismo.
Fazendo a cama sobre os jornais
Um pouco jogados fora
Um pouco sábios demais
Esparramados no mundo
Molhamos o mundo com delícias
As nossas peles retintas

28. AMANHÃ, NINGUÉM SABE é uma ode à objetificação e submissão da mulher, além de suspeita de racismo.
Amanhã ninguém sabe
Traga-me a morena
Antes que o amor acabe
Traga-me uma morena
Traga-me uma morena
Antes que o amor acabe

29. AMIGO É PRA ESSAS COISAS culpabiliza as mulheres pelo fim dos relacionamentos e as compara como se fossem artigos de luxo, não pessoas. Um amigo desempregado fala de seus amores com outro no bar, comparando Rosa e Beatriz.

30. AMOR BARATO romantiza um relacionamento abusivo.
Um tipo de amor
Que é de esfarrapar e cerzir
Que é de comer e cuspir
No prato

31. ANA DE AMSTERDAM
Sou Ana do dique e das docas
Da compra, da venda, das trocas de pernas
Dos braços, das bocas, do lixo, dos bichos, das fichas
Sou Ana das loucas
Até amanhã
Sou Ana
Da cama, da cana, fulana, sacana
Sou Ana de Amsterdam

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32. ANO NOVO é suspeita de racismo e idealiza a submissão feminina.
A minha nega me pediu um vestido
Novo e colorido
Pra comemorar
Eu disse:
Finja que não está descalça
Dance alguma valsa
Quero ser seu par

33. ANOS DOURADOS glamoriza a dependência emocional da mulher e a necessidade de validação por um homem.
Te ligo afobada
E deixo confissões
No gravador
Vai ser engraçado
Se tens um novo amor

34. AQUELA MULHER
Que noites de alucinação
Passo dentro daquela mulher
Com outros homens, ela só me diz
Que sempre se exibiu
E até fingiu sentir prazer

35. AS ATRIZES objetifica o corpo feminino e julga o comportamento sexual das mulheres.
Porém nunca me importei
Com tais amantes
Os meus olhos infantis
Só cuidavam delas
Corpos errantes
Peitinhos assaz
Bundinhas assim

36. AS CARAVANAS é racista ao utilizar o mito da hipersexualização do homem negro e sua associação com violência.
Diz que malocam seus facões e adagas
Em sungas estufadas e calções disformes
É, diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré

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37. AS MINHAS MENINAS coloca a mulher como propriedade do homem.
As meninas são minhas
Só minhas na minha ilusão

38. ATÉ O FIM também coloca a mulher como propriedade do homem.
Não tem cigarro acabou minha renda
Deu praga no meu capim
Minha mulher fugiu com o dono da venda
O que será de mim?

39. ATÉ SEGUNDA-FEIRA é suspeita de racismo ao usar a palavra morena.
Quando volto a trabalhar, morena
Sei que não preciso me inquietar
Até segundo aviso
Você prometeu me amar

40. ATRÁS DA PORTA romantiza a reação possessiva e física do homem que não aceita o fim de um relacionamento, o que pode ser gatilho de violência doméstica.
Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei
Sobre teu corpo e duvidei

E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pelos
Teu pijama
Nos teus pés

Ao pé da cama

41. BAIOQUE tem eurocentrismo e colonalismo ao valorizar a cultura do colonizador e desvalorizar a dos povos originários.
Me leva daqui, eu quero partir requebrando rock'n roll
Nem quero saber como se dança o baião
Eu quero ligar, eu quero um lugar
Ao sol de Ipanema, cinema e televisão

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42. BANCARROTA BLUES reforça a opressão do patriarcado ao afirmar que mulher e filhos são propriedades do homem e semelhantes a objetos, admitindo inclusive que podem ser vendidos.
O que eu tenho
Eu devo a Deus
Meu chão, meu céu, meu mar
Os olhos do meu bem
E os filhos meus
Se alguém pensa que vai levar
Eu posso vender
Quanto vai pagar?

43. BANDOLIM tem como tema a romantização do stalking e a confusão entre amor e possessividade.
Vou insistindo
Chamo a flor que finge estar dormindo
Por amor, por pirraça
Canto assim na praça

44. BARAFUNDA
Era Aurora
Não, era Aurélia
Ou era Ariela
Não me lembro agora
É a saia amarela daquele verão
Que roda até hoje na recordação

45. BÁRBARA infere que a mulher precisa ser protegida e é dependente do homem.
O meu destino é caminhar assim
Desesperada e nua
Sabendo que no fim da noite serei tua
Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva
Acumulando de prazeres teu leito de viúva

46. BATICUM subordina a cultura local à lógica eurocêntrica e capitalista.
Foi a G.E. quem iluminou
E a Macintosh entrou com o vatapá
O JB fez a crítica
E o cardeal deu ordem pra fechar
O Carrefour, digo, o baticum
Da Benetton, não, da beira do mar

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47. BEM-QUERER é machista ao retratar uma situação em que a vida da mulher resume-se a conseguir prender um homem.
Quando o meu bem-querer me vir
Estou certa que há de vir atrás
Há de me seguir por todos
Todos, todos, todos os umbrais

48. BISCATE
Vivo de biscate e queres que eu te sustente
Se eu ganhar algum vendendo mate
Dou-te uns badulaques de repente
Andas de pareô, eu sigo inadimplente

49. BLUES PARA BIA é transfóbica à medida em que ridiculariza a transexualidade, inferindo que pessoas transicionam para agradar outras ou por um amor. Vai além, sugerindo que lésbicas não existem, com a velha pauta de "ela precisa é conhecer homem de verdade".
Que no coração de Bia
Meninos não têm lugar
Porém nada me amofina
Até posso virar menina
Pra ela me namorar

50. BOLERO BLUES é o avesso da composição emancipadora CACHORRINHO, de Kelly Key. A cantora empodera a mulher quando ela dispensa um homem que não a quis porque era muito nova. Já Chico Buarque sugere que os homens descartem as mulheres maduras para ficar com as novinhas. Profético.
Quando ela já não mais garota
Der a meia-volta
Claro que não vou estar mais nem aí

Paro por aqui desta vez, mas informo meu ídolo Chico Buarque que continuo à disposição. Listei 50 músicas que ele não vai mais cantar porque são ofensivas ao identitarismo, nessa lógica de que agora ele não escreve mais canções, faz teses sociológicas e mensagens de autoajuda. Parei na letra B. Se eu for até o final, Chico Buarque vai acabar tendo de cantar o repertório da Xuxa, não sobra nada.

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Uma vez perguntaram a Millôr Fernandes sobre Chico Buarque, seu desafeto. Ele disse: "desconfio de todo idealista que lucra com seu ideal". É a descrição mais bem-acabada do fenômeno do identitarismo, que não pode ser confundido com lutas sérias por direitos concretos de minorias. No entanto, o escritor é exceção absoluta com essa história de desconfiar. O brasileiro é, acima de tudo, um acreditador compulsivo.