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Comissionados x Concursados – o debate mais furado do Brasil
| Foto: Henry Milleo/Arquivo Gazeta do Povo

Antes de começar propriamente o texto, o mais honesto a fazer é um mea-culpa. Durante anos, por uma mistura de ignorância com arrogância, fui mais uma jornalista propagadora da ideia de que concurso público e licitação seriam prova inexorável de honestidade. Em contrapartida, preguei que cargos comissionados e contratações emergenciais eram evidências inequívocas de que havia algo errado. Infelizmente, muita gente ainda crê nessa simplificação grosseira que em nada ajuda o Brasil.

Fazer um debate sobre "funcionalismo público" como se falássemos sobre uma massa monolítica ou sobre pessoas divididas simplesmente entre concursadas e comissionadas é alienação. Estamos falando de um sistema complexo, desenhado para um mundo que nem existe mais e discutido geralmente sob o ponto de vista do "direito adquirido" de quem presta o serviço e não das necessidades do povo.

A forma como conduzimos o debate sobre funcionalismo é boa para acirrar os ânimos em rede social e mesa de botequim, temos de reconhecer. No entanto, se formos levar em conta os resultados desse debate para o país, não são tão animadores assim. Precisamos parar de nos contentar com a apoteose da superficialidade.

Estamos discutindo agora a Reforma Administrativa, já que o atual governo também tem uma proposta. Salvo engano, todos os governos brasileiros tiveram uma, desde a instalação das Capitanias Hereditárias. O desafio não é de uma ou outra gestão, é de adequar os recursos econômicos e necessidades do país a uma estrutura de funcionalismo criada casuísticamente ao longo da história. Nunca se parou para pensar como estruturaríamos o país, foram oferecidos privilégios e oportunidades para quem estivesse disposto a assumir determinados postos.

Vejamos o caso do Rio de Janeiro, por exemplo, que parece ser um laboratório de superação do absurdo. Não há personalidade política capaz de promover uma catástrofe desse tamanho do dia para a noite. O que existe é uma história, que acomoda o poder estabelecido e a sociedade organizada em torno dele. Enquanto romantizamos ou escolhemos não ver que isso acontece, não enfrentamos o problema. Eu não havia pensado nisso. Quem me alertou foi o humorista Claudio Manoel, do Casseta & Planeta, carioca adotado, numa discussão que tivemos esta semana.

Se reclamamos de Brasília, caímos na mesma questão. Os que moram lá repetem o bordão de não ter culpa de todo o lixo que o resto do Brasil despeja no quadradinho cavado no centro de Goiás. Já vivi lá, é algo totalmente apartado da realidade brasileira, derivado também da história criada por Juscelino Kubitschek. A cultura da cidade é de corte, não de metrópole.

Brasília foi feita em parte por quem foi atrás de sonho e principalmente de funcionários públicos, os mesmos lá do Rio de Janeiro, que só toparam ir para o meio do nada em troca de novos privilégios. E fizeram filhos e netos que consideram realmente ter direito a esses privilégios pelo sacrifício de mudar de cidade. Há uma cultura distópica dos "concurseiros", gente sem nenhuma experiência de vida que compete e ganha cargos que decidem a vida do Brasil, com estabilidade e aposentadoria integral.

Se a distorção do centro do poder é conhecida, precisamos reconhecer a nossa, do cidadão comum, que é nivelar como igual o tal do "funcionalismo público". Isso só favorece a casta dos intocáveis, uma minoria. A maioria do funcionalismo trabalha demais, ganha pouco e é muito dedicada. Falo aqui dos professores, policiais, bombeiros, enfermeiros, assistentes sociais, inúmeros outros que diariamente melhoram a vida dos brasileiros comuns.

A Reforma Administrativa mandada pelo atual governo ao Congresso Nacional está sendo torpedeada na imprensa porque permite mais cargos comissionados. Entendo o raciocínio porque já tive essa visão míope e desinformada antes de trabalhar no serviço público. "Ah, então vão contratar agora todos os amigos?", pensam alguns. Vamos raciocinar sobre isso com uma pitada de história.

Para fazer Brasília, foi necessário usar todo tipo de artifício para atrair ao Planalto Central, no meio do nada, quem morava no mítico Rio de Janeiro. Resultado? Temos hoje engraxates, ascensoristas, gráficos, telefonistas, cabeleireiros e motoristas concursados na cúpula dos Poderes, ganhando dez vezes o salário de um professor de Ensino Fundamental. Isso interessa ao Brasil de hoje? Claro que não. Nossa prioridade não é mudar a capital de lugar, temos diversas outras questões agora.

Deixemos para a turma da 5a série C o debate sobre concursado x comissionado e chamemos os adultos à sala. O que o Brasil precisa decidir é quais são as carreiras necessárias ao Estado, quais delas necessitam estabilidade para proteger o povo das turbulências políticas, que tipo de compromisso exigiremos desses servidores em nome dessa estabilidade, quais as qualidades técnicas e de personalidade uma pessoa precisa ter para ocupar um cargo desses e como nós, a sociedade, retribuiremos essas pessoas e suas famílias pelo sacrifício que se disponham a fazer por nós.

Embora seja o óbvio do óbvio, nunca pensamos isso, sempre fomos ajeitando o que a realidade nos pedia, sem pensar no amanhã. É basicamente o que estamos a fazer mais uma vez. Os problemas dos comissionados estão na criação de cargos absolutamente inúteis, sem critério técnico ou forma de avaliação de entrega de resultados, com os quais se pode tirar dinheiro do erário. A criação de cargos comissionados em si não é um problema, inclusive é uma solução para não perpetuar gastos.

Há determinadas funções que não precisam ser carreiras de Estado. Cito, como exemplo, o meu caso pessoal. Sou especialista em comunicação, universo digital e Direitos Humanos. Já ocupei cargos comissionados, pelo perfil técnico, no Judiciário e Legislativo. Você, contribuinte, me pagou pelos serviços que prestei naquele período. Um dos cargos que eu ocupei já foi extinto, tão tem mais sentido de existir hoje, houve uma reorganização. Teria sentido continuar pagando o meu salário integral até eu morrer? Se você ainda achar que comissionado é, necessariamente, sinônimo de desperdício, pense nessa conta.

Entre os concursados, também conheci pessoas de todo tipo. Gente maravilhosa, dedicada, com vocação real para o serviço público. E pessoas são complexas. Havia concurseiros que se apaixonaram pelo trabalho e outros que eram apaixonados antes e relaxaram depois, impossível prever. Por isso, o sistema precisa funcionar para incentivar, nas carreiras de Estado, aqueles que realmente têm vocação para servir o cidadão e filtrar os que querem apenas estabilidade, poder e holofotes. Que isso fique para as cúpulas dos poderes.

O que entendemos que precisam ser as carreiras de Estado? Policiais, Forças Armadas, professores, juízes, Ministério Público, alguns técnicos legislativos estratégicos, posições específicas de controle do Poder Executivo, Polícia Federal, ABIN, bombeiros... Quem mais? Como decidir quais assessores de cada um ficam para sempre e quais são transitórios? Quem pode criar e de acordo com quais parâmetros? É isso o que precisamos decidir. Mas estamos, mais uma vez, nos perdendo em discussões pequenas, provocadas por quem mais se interessa por elas: a casta dos privilegiados.

Também precisamos definitivamente deixar para trás o Brasil Colônia, que ia enfiando nas funções de Estado quem topava e colocar quem tem vocação. Não dá, por exemplo, para juiz ter empresa, associação de promotor fazer evento patrocinado por banco, senador ter plano de saúde vitalício. Há concessões e privilégios que tiveram seu sentido histórico numa época e não têm mais.

Nossa história é a de um funcionalismo público montado na medida do possível, pegando quem sabia o mínimo de ler, escrever, leis, medicina, administração e colocando nas posições. Essas pessoas pediam coisas impossíveis e os governantes davam por falta de alternativa. Hoje somos um país de mais de 200 milhões de pessoas e precisamos atualizar os critérios. Quem simplifica essa discussão provavelmente está do lado que ganha historicamente. Ao Brasil, interessa o debate sério e aprofundado sobre o país que queremos.

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