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É possível apagar o passado?
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As redes sociais parecem dominadas por uma polêmica que, vira e mexe, reaparece na sociedade: a tentativa de apagar o passado. Talvez seja coincidência, mas a pandemia despertou essa chama em diversos tipos de espírito. Na China, o Partido Comunista Chinês está aproveitando para derrubar igrejas cristãs, inimigas antigas do regime. No Egito, o governo acaba de destruir um templo copta, o único ramo cristão existente no país em que sua religião consta de toda documentação civil. No Ocidente, o inimigo que se pretende apagar do espaço público é a condição humana.

Embora muita gente tente simular discurso intelectual para justificar que racistas e escravagistas não merecem monumentos no espaço público, trata-se de uma argumentação que não resiste ao primeiro sopro de realidade. Até 200 anos atrás, todos os grandes líderes da humanidade foram racistas, machistas e a grande maioria aceitou e utilizou as mais diversas formas de escravidão e servidão. Vai apagar tudo então? No Brasil, só conta então o que ocorreu de 1888 para cá e usando apenas os personagens públicos sem nenhuma mácula no caráter? Imagine como seria.

Há um filme que discute de uma forma muito interessante a tentativa de apagar a parte do passado que fere nossas almas ou nos causa vergonha, "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança", de 2004. Joel quer apagar de sua mente todas as memórias com o grande amor de sua vida, Clementine, que o deixou. Só que no filme tem uma empresa que faz isso e ele resolve fazer o procedimento. Desacordado Joel percebe que, sem as dores da alma, a vida dele não tem sentido e começa a tentar achar um lugar da memória a que os técnicos não tenham acesso para guardar Clementine.

É infantil revoltar-se contra o destino, que não controlamos, e contra nossa natureza humana. Cada um de nós é fruto e descendente dessa fraternidade humana que viveu milênios subjugando quem considerava inferior. Igualdade e dignidade são conceitos muito recentes.

Diante dos protestos mais inflamados, sobretudo aqueles feitos pelas redes sociais, que tendem a ser fogo puro, temos a impressão de que a humanidade está completamente perdida. Não fossem esses heróis com coragem para digitar utilizando identidades falsas, as minorias seriam massacradas. No mundo dos algoritmos, é comum que a realidade seja mascarada por barulho, agressividade, linguagem carregada e comportamento de manada.

É óbvio que a sociedade brasileira tem diversos problemas de preconceito e desigualdade, somente os muito cínicos ou perversos negam este fato. O mundo tem que progredir muito para que todos sejamos uma fraternidade humana, eliminando o racismo, machismo, homofobia e preconceito religioso. Mas não podemos fingir que essa é uma luta que está começando do zero, não é. Aliás, as rochas mais duras já foram quebradas pelas gerações anteriores, a quem devemos toda a gratidão.

Não podemos perder de vista que este é o melhor momento da humanidade, o mais igualitário, civilizado e avançado. Os defeitos de caráter dos nossos antepassados eliminam o valor das lutas deles, muito mais duras que as nossas? Deixo a reflexão para vocês.

Já ouvi justificativas de que racistas não merecem ser celebrados com monumentos públicos. Se quem diz isso levasse a regra a sério mesmo, talvez a proposta seja proibir estátua de qualquer pessoa nascida antes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Se for levar a ferro e fogo mesmo, acabou essa história de estátua.

A natureza humana não é um poço de virtudes. Embora os que apontem as máculas de figuras históricas pretendam parecer puros, não são. Todos nós, humanos, temos nossas fraquezas e maldades, às vezes não fazemos o bem que queremos e fazemos o mal que não queremos. Outras vezes, fazemos o mal por querer também. Essa é a natureza humana, até as crianças têm maldade e todas as conquistas importantes vieram de gente imperfeita.

Apagar o passado só teria uma utilidade, a possibilidade de transformar em heróis os que agora protestam nas redes sociais tentando posar de grandes libertadores. Se não houver base de comparação para saber o que negros, mulheres e homossexuais já enfrentaram nesse mundo, até pode parecer que eles estão realmente revolucionando a humanidade.

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