Há dois anos ele ficou famoso ao interpretar uma drag queen em "A Força do Querer", no horário nobre da TV Globo com elenco estrelado. Mas o reconhecimento como ator vem de um personagem de força impressionante, Lunga, em Bacurau. É um cangaceiro que vive fora do vilarejo do sertão nordestino porque é gay, mas a cidade resolve recorrer a ele quando se percebe sem defesa. Ele atende.
Foi esse papel que o levou ao tapete vermelho do Festival de Cannes e também rendeu o prêmio de Homem do Ano na categoria Cinema concedido pela revista GQ numa festa luxuosa no Copacabana Palace. Nas duas ocasiões, Silvero Pereira se vestiu de mulher.
O ator nasceu na pequeníssima Mombaça, cidade de 44 mil habitantes bem no meio do Estado do Ceará. Foi só aos 17 anos que viu a primeira peça de teatro na vida. Cresceu pensando que ser homossexual era algum tipo de doença, já que era o pensamento corrente naquele pedaço do sertão.
Silvero Perera dedicou o prêmio de Homem do Ano à mãe. "Algumas pessoas talvez - e eu espero que esteja bem enganado com relação a isso - se perguntam como alguém pode vir ao prêmio Homens do Ano vestida dessa forma. É para afrontar, para aparecer, para ganhar likes? Não. É apenas pelo direito de liberdade, de ser e estar feliz.", discursou.
O ator faz questão de contar sua história de vida, que é parecida com a de tantos meninos que sonham um dia poder ter destaque. "Eu sou de 82, do sertão do Ceará. Passei fome e sede no meu corpo. Eu sei exatamente o que é passar fome e o que é passar sede, a falta de água. Eu estudei a minha vida inteira em escola pública. Eu fui violentado socialmente em diversos âmbitos. Hoje, eu estou aqui como quem olha para essa criança e diz: oi, meu bem, a sua realidade pode mudar. Você sabe que algum dia você vai chegar num lugar onde você vai estar no meio de várias personalidades."
Vestido de mulher, Silvero Pereira dedicou o prêmio de Homem do Ano - categoria cinema - a uma mulher: "Se eu estou assim hoje é porque uma mulher fez isso por mim. Uma mulher lavadeira, uma avó cabocla, uma avó indígena, um avô negro e um avô branco dos olhos azuis. Se eu estou aqui hoje vestida desse jeito é porque em diversos momentos disseram que eu não podia estar assim. E é só por isso, porque o meu lado feminimo empodera o meu lado masculino - e foi por isso que eu decidi vir assim."
Obviamente, o ator foi o assunto principal quando se falou no prêmio da revista. E também no Festival de Cannes, onde passaria despercebido se fosse mais um de smoking, virou atração com o vestido e acessórios multicoloridos. Não escolheu as griffes internacionais que fazem a festa das ricas e famosas, montou o figurino com peças de artistas cearenses.
Silvero Pereira já foi reconhecido como filho ilustre de seu Estado. Nascido numa cidade desconhecida do sertão, recebeu o título de Cidadão de Fortaleza pela Câmara Municipal da cidade. Na ocasião, que não tinha nada de artística, respeitou as formalidades do legislativo e foi vestido de calça e camisa, sem maquiagem, cabelo bem arrumado.
Há um caso interessante envolvendo o personagem que o levou ao estrelato, o cangaceiro gay Lunga. Na versão original do filme, seria uma mulher trans. Silvero Pereira não aceitou o papel nessas condições.
O ator não se vê como mulher, é homem, homossexual assumido e que ocasionalmente se veste de mulher. Conseguiu negociar com a equipe do filme para que o personagem representasse o que ele representa, até porque a principal razão da existência do personagem no filme não é a sexualidade.
A história de vida, o trabalho e o discurso de Silvero Pereira são muito distantes das militâncias que se renderam ao radicalismo. No chiqueiro moral em que se converteram as redes sociais, ora ele é apedrejado por existir e ora é celebrado porque sua existência supostamente agride conservadores e cristãos. Nem um traço dessa ânsia de viver para agredir está nas palavras ou nas ações do ator.
Vivemos tempos em que as militâncias são cheias de certezas, de regras e de vontade de impor seus próprios conceitos sobre os demais, ainda que seja no tapa. A militância trans atropela a das mulheres, as feministas cancelam quem faz cesárea, gente elitista dos extremos políticos ressuscita doenças extintas com a seita antivacina, a política deixa de ser a arte do diálogo para se converter na arte de ganhar no grito. Sua história pessoal se encaixa neste cenário?
Talvez muitos confundam militância com filme de super-herói, guerra do bem contra o mal. O bem, claro, é sempre o nosso lado. Nem na ficção esse simplismo funciona direito. As histórias das pessoas, das famílias e das comunidades são muito mais complexas e bonitas. Ainda bem.
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