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Na ânsia de opinar sobre Ucrânia, brasileiros compartilham nazista sem saber
| Foto: internet

Leu aquela postagem dizendo que "a guerra é um lugar onde jovens, que não se conhecem e não se odeiam, se matam, por decisões de velhos que se conhecem e se odeiam, mas não se matam", Erich Hartmann. Eu vi dezenas de amigos e conhecidos postando e sou incapaz de apontar um único que tenha sido mal intencionado. Por isso pensei mil vezes antes de falar ou não sobre o tema, mas é necessário.

Se você compartilhou isso, não sinta culpa. Diante do bate-boca raso e inflamado que tomou conta das redes sociais, realmente me parece o conteúdo mais sensato a dizer. Ocorre que internet não é só conteúdo, é contexto. Num contexto de guerra, o oportunismo dotado de espírito de porco perde a vergonha. Não sei quem fez a primeira montagem, mas sei que Erich Hartmann foi um piloto nazista da Luftwaffe condenado por crimes contra a humanidade porque matava civis. Foi compartilhado por gente de bom coração movida por emoções.

A história dele é contada em um livro que eu supunha ser de amplo conhecimento do movimento feminista, The Blond Knight of Germany. A mãe dele, Elisabeth Wilhemine Machtholf Hartmann, nascida em 1897, foi uma das primeiras mulheres do mundo a pilotar caças militares. Era nazista. Aos 14 anos, ele já fazia parte da juventude hitleristas e pilotava aviões, aprendendo com a mãe.

O destino dessa família mostra como a guerra espalha crueldade por gerações. O pai, Alfred Hartmann, era médico e serviu na I Guerra Mundial. Diante da decadência econômica da Alemanha, aceitou um trabalho em Changsa, na China, em 1925. Levou toda a família. Quatro anos depois, a hostilidade contra europeus tornou insustentável a permanência de todos ali. O pai ficou, a família precisava do dinheiro. Mãe e dois filhos foram colocados num trem da China para a Alemanha, atravessando a União Soviética.

A mãe arrumou um emprego pilotando planadores e, no final do ano, o pai retornou à Alemanhã. O sonho dos dois filhos era seguir os passos do pai na medicina. Veio outra guerra e o alistamento militar compulsório. A outra paixão de Erich Hartmann era voar. Na imprensa alemã da época, os pilotos da Luftwaffe eram retratados como heróis. Aos 18 anos, ele já fazia parte da lendária Força Aérea Nazista. Alfred Hartmann, o irmão mais novo, formou-se médico.

Hartmann defendeu os nazistas em 1425 missões durante a II Guerra Mundial. Ganhou na mídia alemã o apelido de "The Blond Knight", o cavaleiro loiro. Os fãs o chamavam apenas de Bubi, apelido dado pela cara de bebê. Na União Soviética, no entanto, era conhecido pela alcunha de "O Demônio Negro", referência à pintura do avião que ele pilotava e ao resultado de suas missões. Entrou no seleto grupo de 9 pilotos nazistas que receberam a honraria máxima da Luftwaffe.

Acredito que a quase totalidade das pessoas que compartilhou a suposta frase de Erich Hartmann assumiu que fosse apenas um soldado novo, sacrificado em uma das tantas guerras da humanidade. Era um nazista sanguinário, famoso e condecorado, condenado por assassinar centenas de civis. Aposto sem medo que a gigantesca maioria não teria compartilhado se soubesse a história verdadeira. As redes nos pressionam para opinar. Somos realmente obrigados?

Como tudo na humanidade é complexo, Hartmann não foi apenas um algoz, também foi vítima. Acabou como prisioneiro dos soviéticos e enfrentou duríssimos anos de todo tipo de abuso em um gulag. Foi sentenciado a 25 anos de trabalhos forçados como criminoso de guerra. O "Demônio Negro" recebia tratamento especial, como passar fome e ter toda sua correspondência interceptada por agentes soviéticos. Não soube da morte do pai nem da morte do primeiro filho, aos 2 anos de idade.

Militar treinado, provocou uma rebelião em uma das prisões soviéticas ao invocar a convenção de Genebra e recusar-se a trabalhar numa mina de carvão. Oficiais não podem ser submetidos a trabalhos forçados. Rebelião instaurada, foi o próprio Hartmann quem protegeu os carcereiros soviéticos do linchamento dos prisioneiros. Ele poderia ser solto caso assinasse um documento reconhecendo ser criminoso de guerra, não prisioneiro de guerra. Outros fizeram. Ele não.

Ganhou a liberdade em 1953, após a morte de Stálin, em um esforço de aproximação entre as Alemanhas e a União Soviética. De volta para casa, a única coisa que sabia fazer era pilotar avião. Juntou-se aos colegas da antiga Força Aérea Nazista nos projetos oficiais da Alemanha Ocidental. Ficou somente 3 anos. Não tinha o talento político para conseguir promoções militares e se tornou instrutor de aviação comercial. Morreu em 1993.

Muito provavelmente você já ouviu falar no Barão Vermelho, Manfred von Richthofen (sim o mesmo nome do falecido pai da Suzanne Richthofen), lenda da aviação alemã. Ele foi superado por dois pilotos. O primeiro foi Werner Mölders, que morreu durante a II Guerra e fazia parte do círculo próximo de Hitler. O recordista absoluto, jamais superado, é o nazista Erich Hartmann, o "menino" da frase inspiradora aqui no Brasil.

Erich Hartmann foi um nazista e não um qualquer. É o recordista absoluto de destruição da famosa Luftwaffe, exaltado pela mídia do regime e tinha contato com a cúpula de Hitler. Ao ler a história da família dele, você se sente totalmente à vontade para ter uma opinião acabada sobre ele? A guerra destroça famílias, sociedades e princípios. Se é difícil encontrar verdades absolutas sobre a II Guerra, não seria exigir demais já ter uma opinião formada sobre a invasão da Ucrânia? Só sabemos que o cidadão comum é quem paga mais caro pela barbárie.

A frase não deixa de ser boa, argumentaram comigo hoje. Concordo. Ocorre que ela não é de Erich Hartmann, é do filósofo e poeta francês Paul Valéry. "A guerra é um massacre entre gente que não se conhece para proveito de pessoas que se conhecem, mas não se massacram", cunhou. O piloto nazista jamais disse isso. Não deixa de ser curioso que ele se torne personagem central em uma discussão política na qual Putin acusa a Ucrânia de ter um governo nazista, liderado por um judeu cujos avós foram vítimas do holocausto.

A era da Cidadania Digital nos estimula a comentar a vida como se fosse um filme. Vi muita gente falando de OTAN, Putin, Biden e decisões de bombardear ou não um país inteiro como se tivesse acesso às informações privilegiadas ou estivesse nessa posição. Talvez seja confortável pensar que sabemos tudo. É muito tentador sinalizar ao nosso grupo opiniões que demonstrem nossa superioridade moral. Só que não sabemos. Analistas experientes na região admitem não saber, por que nós precisamos ter certezas?

Há uma corrente política de esquerda defendendo que o presidente ucraniano Volodymyr Zelenski é uma espécie de Jair Bolsonaro. Ou melhor, uma espécie de Danilo Gentili eleito nas mesmas condições que Bolsonaro. Abraçam a linha de propaganda russa que acusa o governo ucraniano de ser nazista. Há efetivamente neonazistas no governo e no exército da Ucrânia. Da mesma forma, também há neonazistas no governo e no exército da Rússia.

Guerras derramam sangue vivo, esmagam famílias, esgarçam o tecido social de regiões inteiras do mundo por gerações. Hoje, o ex-presidente da Ucrânia, Viktor Ianukóvytch, apareceu ao vivo na televisão numa praça de Kiev, de arma na mão, apoiando o presidente atual, Zelensky. Ele só voltou ao país em janeiro e quase foi preso por alta traição. É um bilionário de oposição. As coisas podem ser bem mais complexas do que a polarização das redes leva a crer.

Há, no entanto, algo que sabemos com toda certeza sobre a Rússia invadir a Ucrânia: a dor do cidadão comum. São países irmãos, há famílias mistas de russos e ucranianos. Eu sofro só de imaginar o que seja este pesadelo. São pungentes as imagens das famílias cujos esforços de gerações foram destruídos em segundos. Ninguém precisa decidir quem é o lado certo para sofrer com essas famílias e rezar por elas.

A imagem do carro de um civil atropelado por um tanque hoje em Kiev, capital da Ucrânia, é uma das ações mais cruéis que eu já vi. Lembra a história do massacre na Praça da Paz Celestial, na China.

Felizmente, o senhor que dirigia o carro foi socorrido por outros ucranianos e sobreviveu. É inevitável que a gente se coloque no lugar dele ou de quem estava na janela impotente observando a barbárie. Este seria o nosso lugar numa guerra.

Muita gente não conseguiu fugir de Kiev, capital da Ucrânia. Famílias inteiras estão abrigadas em estações de metrô. Este vídeo mostra um cinema improvisado para as crianças em meio ao caos.

Eu não tenho uma opinião sobre a situação geopolítica da região porque não tenho conhecimento suficiente para isso. Talvez também seja seu caso. Claro que tentamos entender, existe uma guerra em curso e queremos saber o máximo possível sobre o conflito e seus desdobramentos. Entendo que nenhum de nós deve se obrigar a opinar sobre quem tem razão. Não existe razão para que cidadãos comuns, em pleno século XXI, tenham de atravessar esse inferno durante uma pandemia.

Aprendi em Angola um ditado popular que me marcou: "em briga de elefante, quem sofre é o capim". Nós somos o capim. Não importa qual lado está mais certo ou mais errado, já sabemos que a conta será paga pelo cidadão comum. Quem não pode decidir sobre uma guerra e nem é avisado a tempo para fugir se quiser vai pagar a maior fatura, que se desdobra por gerações.

Não se obrigue a ter uma opinião geopolítica ou estratégica sobre a Rússia invadir a Ucrânia. É natural ter medo, imaginar quanto vai durar essa situação, até onde essa insanidade se desdobra. Eu me contento por hoje em rezar pelas famílias, tanto ucranianas quanto russas, que estão pagando o preço alto de mais um conflito bélico. Pouco importa qual lado tem razão. Infelizmente, a humanidade ainda vive a lógica de poder em que os inocentes pagam a conta dos poderosos.

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