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Poucas coisas deixam um ser humano mais revoltado do que se sentir traído. As reações que temos visto das pessoas às medidas da quarentena e a qualquer fala de técnicos e cientistas têm nessa toada. Quando as pessoas comentam nas redes sociais as orientações técnicas que recebem, como usar máscara, por exemplo, parece uma cena de flagrante de traição digna de novela mexicana.

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Por que esse pessoal está tão surtado, pergunta-se a pequeníssima porção da população que, como eu, foi extremamente beneficiada pelo avanço da tecnologia. Vejo colegas de escola e gente que brincou na rua comigo nos anos 80 fazendo postagens carregadas de ódio, falando contra a quarentena, o fechamento das escolas, o uso de máscaras. Advogam pela cloroquina, são beligerantes com qualquer pessoa que tente argumentar. O que justifica isso? Traição.

Tivemos uma série de governos que prometeram sistematicamente e, com a ajuda de teorias muito sérias de técnicos e cientistas de diversas áreas, que o avanço da tecnologia melhoraria a vida de todos. Eu não posso reclamar. Mas, se estivesse no lugar de alguns dos meus colegas de escola, talvez estivesse também xingando todo mundo na internet.

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Nunca se escondeu de ninguém que a tecnologia substituiria algumas funções que eram feitas pelas pessoas. Isso acontece há décadas. Mas, no Brasil, o eleitor votou sequencialmente em presidentes que tinham o discurso da preocupação com os mais pobres, a distribuição de renda e o avanço igualitário do cidadão. A pandemia escancarou que muita gente foi traída nessa história.

As promessas feitas às pessoas têm base em teorias e experiências de quem não foi ameaçado pela mudança da tecnologia e isso pode ter vários motivos. O primeiro é a pessoa ter dinheiro, prestígio e poder herdados. Outro é a pessoa ser meio nerd e ter resolvido dedicar-se à área de tecnologia ou às mudanças que a tecnologia traria na sua profissão desde o início dos anos 2000.

Eu estou nesse grupo dos nerds. Fiz no ano de 2001 meu primeiro curso do que chamávamos de "Computer Assisted Reporting", Reportagem com Auxílio do Computador. Ali me apaixonei pelas mudanças que viriam no jornalismo e na sociedade e isso se tornou praticamente a razão do meu ganha-pão. Foi importante para todos os empregos que eu já tive e, durante a tragédia da pandemia, me deu um privilégio inacreditável para a filha de bancário e dona-de-casa. Posso fazer home-office, ajudar meu filho no home-schooling, programar as entregas do que preciso, continuar estudando, ver os filmes que quero, ouvir as músicas que amo, ler todos os livros do mundo. Até um livro eu lancei.

Pensando a partir dessa realidade, não dá para entender o ódio todo. Outro dia vi na televisão uma reportagem mostrando uma família que se adaptou à quarentena: alugaram para outras pessoas o apartamento enorme que têm aqui em São Paulo e estão morando numa casa lindíssima no litoral paulista com o filho. Quem foi beneficiado pelo avanço tecnológico que, conforme nos prometeram nos últimos 20 anos, melhorariam a vida de todos, ficou maravilhado com essa possibilidade. Quantos são esses?

Eu, sinceramente, não entendi até agora de onde alguém tira a ideia de fazer uma reportagem chamando de exemplo de adaptação à pandemia a vida clássica de núcleo rico de novela. Não creio que tenha sido para deixar a galera com mais ódio e parecer provocação, mas pareceu. Em países menos patrimonialistas e com mais acesso à educação de qualidade que o Brasil já há problemas de encaixar pessoas nessa nova economia que, segundo prometeram tantos especialistas, melhoraria a vida de todos. Aqui há o caos.

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A prioridade do desenvolvimento tecnológico brasileiro, sob o ponto de vista das elites intelectual, econômica, cultural e política, nunca foi o povo brasileiro. O resultado é que temos hoje uma infinidade de vagas impossíveis de preencher porque não há pessoal preparado e uma multidão de gente vivendo de subemprego. Quem se deu mal nessa história tem muita raiva.

Pense no seu círculo de amigos e parentes. Quantas pessoas capacitadas, com formação e experiência, acabaram ficando obsoletas porque não entenderam a dimensão das mudanças que a tecnologia trouxe para a vida profissional delas? Perdi a conta de quantos colegas jornalistas ficaram pelo caminho desde que vimos, nos anos 90, a primeira redação inteiramente comandada por computadores.

Avalie como está a vida de quem não tem nem a opção de escolher entre aprender e se agarrar ao passado, a vida de quem tem uma profissão que está sumindo ou não recebeu educação suficiente nem para começar a pensar em se preparar para uma vaga mais qualificada. Essas pessoas estão há anos ouvindo políticos e especialistas empolgadíssimos com os avanços da tecnologia e falando em "requalificação" de pessoal. Hoje, estão fazendo Uber, entrega de aplicativo, ganhando um trocado em vez de salário e passando por humilhações diárias.

Pense em alguém que vendia enciclopédias de porta em porta nos anos 80. No meu círculo social, dava para viver superbem, brincar na rua, ter roupa legal de ir à igreja, comer coisas que a gente escolhia, comprar material escolar e, de vez em quando, até ir a restaurante. A formação dessas pessoas não mudou. Como é hoje a vida de quem recebeu educação suficiente para sair vendendo enciclopédias?

As mesmas pessoas que cresceram nas famílias que não tinham nada sobrando mas tinham dignidade e, de vez em quando, até lazer, são as que estão hoje nessa situação. Muitos dos meus amigos de infância não têm formação universitária, os pais deles estudaram menos e tinham uma vida muito mais confortável que a deles. E, para piorar, eles cresceram ouvindo do mesmo grupo de entusiastas do avanço com os mesmos técnicos defensores do progresso, que tudo seria melhor.

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Foi prometido às pessoas que o avanço deixaria todos numa situação melhor. Teoricamente sim, temos mais recursos em praticamente todas as áreas da vida humana. Mas as pessoas de formação média, que tinham vidas relativamente confortáveis e expectativa de pelo menos um pouco mais de sucesso que os pais, muitas vezes estão vivendo da aposentadoria deles. Por que ouviriam novamente aquela mesma turma que, durante os últimos governo, prometeu mundos e fundos para todo mundo?

Às vezes eu me pergunto como amigos ouvem pessoas visivelmente desqualificadas para debater um tema e algumas até nitidamente descontroladas emocionalmente. São pessoas que exprimem a raiva que eles não podem colocar para fora e pelo menos não os enganaram antes.

Quem se equivocou sobre a capacidade de melhoria de qualidade de vida de todos por meio da tecnologia, apesar de jamais reconhecer, sente-se no direito de debochar dos que expressam o ódio da traição. Não tem jeito de dar certo um processo desses. O desdém que vemos pela vida durante a pandemia não é só de um grupo nem é só nesse período. Tem sido uma triste marca da nossa cultura, mesmo daqueles que posam de bonzinhos.

Nos últimos anos, deslumbrados com todas essas maravilhas que aconteciam no exterior e as possibilidades que elas nos trazem, governos e especialistas repetiram à exaustão que todos viveriam melhor. Só não fizeram a lição de casa: tirar a educação do século XIX para que realmente o maior número possível de pessoas avançasse junto com o mundo. A vida, o destino e os sonhos dessas pessoas nunca foram prioridade. Infelizmente, nos acostumamos a pensar assim.

Agora vemos a oposição apontando o dedo e gritando palavras como "genocida" para o presidente Jair Bolsonaro, que critiquei e critico duramente por sua falta de liderança na pandemia. Espantam-se porque a falta de valorização da vida não choca o povo, do qual mantém sempre uma saudável distância. Não vai chocar. Trata-se de um povo que foi acostumado durante décadas que sua vida não vale muita coisa e os valores que lhe são mais caros servem apenas para deboche. O cidadão comum revoltado é o que constata ter sido deixado para trás.

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