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Biden e entidades de direitos humanos mudam postura sobre a China
Nem tudo o que se fala da China é teoria da conspiração: o erro está em pensar que inimigo do meu inimigo é meu amigo.| Foto: AP/Getty Images/Nikkei Asia

"O inimigo do meu inimigo é meu amigo" jamais seria uma frase do lendário Sun Tzu, mas com certeza foi de alguém aniquilado pelo tal inimigo em quem confiou cegamente. Há teorias conspiratórias sobre a China? Claro que sim. Se tem teoria conspiratória envolvendo até o Biotônico Fontoura, um país daquele tamanho não iria escapar.

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O que é muito diferente de nós assusta e, ao mesmo tempo, estimula a imaginação. A milenar cultura chinesa é profundamente diferente dos valores ocidentais, não se trata de uma briga ideológica de democracia contra autoritarismo ou capitalismo contra o Partido Comunista Chinês por roubo de protagonismo. É uma junção de tudo com uma escrita e tradições que não entendemos.

Adicione à mistura a polarização política no ocidente, interesses econômicos, redes sociais, gripe aviária e agora esse COVID que parece forçado até para ficção científica. Na turma da teoria da conspiração já se sabe exatamente como tudo foi tramado e o que quer dizer a "ameaça chinesa" sobre a qual ninguém te conta. O outro lado obviamente tem de rebater ponto a ponto qualquer afirmação e defender a China cegamente.

Há muitas teorias sobre a China contrapondo capitalismo e comunismo ou direita e esquerda. Elas viram axiomas e religião nos grupos de internet. Obviamente o pessoal sabe do que está falando, conhece o tema, afinal a gastronomia asiática fatura quase R$ 20 bilhões por ano no Brasil. Talvez por isso pareça uma grande reviravolta que Biden e organizações de Direitos Humanos sejam mais duros com a China do que o próprio Trump.

A Anistia Internacional acaba de lançar um site exclusivo para denunciar os abusos de Direitos Humanos cometidos contra a minoria étnica muçulmana Uigur na província de Xinjiang. Veja que os fascistas se escondem onde menos esperamos, dirão alguns com aquele ar de Sherlock Holmes tupiniquim. Não é nada disso.

O resumo do relatório sobre a tortura de Uigures está nesta ótima reportagem do Rafael Salvi na Gazeta do Povo. Eu vou ao detalhe, às coisas que podem nos fazer imaginar o que é ser um uigur vivendo na China. Francamente, é mais uma coisa que parece filme, já que até outro dia a gente nem sabia que esse povo existia. Daí, descobrimos de repente uma história de abusos com a qual ninguém se conforma.

O primeiro passo é entender que não estamos falando de um punhado de coitadinhos acuados e vitimizados. Falamos da província de Xinjiang, a mais etnicamente diversa da China, que ocupa 1/6 do território, faz fronteira com 8 países e, estima-se, tem mais de 25 milhões de habitantes. Metade dessa população tem origem turca e muçulmana. A outra metade tem maioria Han, a etnia predominante no interior da China.

As brigas de rede social sobre a China não são sobre nenhuma China de verdade, mas sobre o imaginário de um monolito controlado pelo Partido Comunista Chinês e uma resistência à la Star Wars conduzida por chineses democratas. Isso não existe. Democracia não é uma tradição do PCC mas também não é da cultura chinesa tradicional que ele renega nem das outras culturas que ele pretende apagar da história e da vida cotidiana.

Ah, mas então está tudo bem com os uigures, já que eles também não são democratas? Não está nada bem, só que é mais complicado e envolve a ideologia que fala mais alto ao coração do ser humano: o combo de dinheiro com poder.

A China tem 5 regiões que são oficialmente autônomas e com minorias nacionais, uma delas é a província de Xinjiang. No papel, os uigures têm direito a representatividade formal no poder local. Na prática, este é um arranjo legal com força simbólica, sem que o Partido Comunista Chinês perca seu controle da região. Os chineses dizem que Xinjiang é região milenar do país mas os uigures querem independência e dizem que a China é colonizadora.

Xinjiang faz fronteira com duas outras grandes potências, Rússia e Índia, e também com Paquistão, Afeganistão, Mongólia, Casaquistão, Quiguistão e Tadjiquistão. Apesar de reunir todas as condições para grandes emoções, a região permaneceu em relativo equilíbrio até Xi Jinping lançar o que a China considera seu grande plano do século, "One Belt, One Road" ou  一带一路 em 2013.

Tinha uigures no meio do caminho

Somos brasileiros. Só de ouvir "governo lança o grande plano do século" a gente já pensa numas 10 piadas velhas, 5 memes e mais umas 3 cutucadas para dar no cunhado governista. Por mim, a gente tiraria essa palavra "planejamento" do vocabulário e proibiria a utilização. Muito mais fácil do que lidar com a frustração toda vez que um governo planeja algo para nós.

Mas a cultura chinesa é tão exótica que eles realmente executam planejamento. Eu nem sei direito como funciona, mas funciona. E esse "One Belt, One Road" é um projeto trilionário que seria uma reinvenção da antiga Rota da Seda. É uma conexão de infraestrutura entre China, Ásia Central, Europa e África que levaria o país ao protagonismo mundial em 2049. Já escrevi sobre isso, mas é tanto planejamento que parece ficção científica na nossa cultura.

A Rota da Seda do século XXI não é só um corredor de exportação de produtos chineses, é um projeto de exportação da cultura chinesa. A região de Xinjiang é estratégica primeiro porque é o local físico de conexões por estrada com Europa Oriental e potências asiáticas. Depois, porque é uma potência energética. Só que no meio do caminho tem os uigures com sua cultura própria, diferente da chinesa.

A China já atingiu o objetivo de tornar-se a liderança mundial em Inteligência Artificial e cybervigilância. A gente não dá tanta importância para isso porque são tecnologias que, na mão de brasileiro, serviriam para stalkear ex e detonar inimigos e iniamigos.

Ocorre que a cultura chinesa tem esse péssimo hábito da disciplina e usa a tecnologia como um braço da maestria em soft power. Somando a expertise em apagar e mudar culturas com o domínio de tecnologia avançada, é possível conseguir implementar uma revolução cultural sem fazer o barulho que Mao Tse-Tung fez nem provocar uma crise de fome histórica.

A polarização intolerante nas democracias ocidentais é algo que ainda lutamos para entender. Tem uma semelhança grande com a cultura coletivista e autoritária do Partido Comunista Chinês. Quem não pensa como eu penso, não repete o que eu digo e não gosta do que eu gosto tem de ser massacrado. No caso dos uigures, é literalmente.

Até agora, sabíamos por vários relatórios dos campos de trabalhos forçados, torturas, tomada de bens, tentativa de limpeza étnica, esmagamento de direitos. O relatório da Anistia Internacional, que entrevista dissidentes do Partido Comunista Chinês e uigures vítimas de abusos por parte do governo, traz detalhes preciosos da "revolução cultural".

Sem esses detalhes, nossa tendência é pensar que o Partido Comunista Chinês está confinando uigures em campos de trabalhos forçados para dominar a região. É ainda mais sofisticado que isso. As famílias recebem um ultimato e uma "oportunidade". Podem renunciar à própria religião e cultura, fazendo uma substituição imediata pela cultura chinesa. Não é a tradicional, é a visão atual do partido dominante.

Quem se recusa a aderir à transformação cultural de uigur para chinês sofre punições exemplares, o que tem um impacto devastador na comunidade. Não estamos falando de um punhado de gente, mas de quase 26 milhões de pessoas. É uma população muito maior que a de países como Austrália, Holanda, Chile e Grécia. É maior que a soma da população de Suécia, Finlândia e Dinamarca.

Hoje nossas vidas estão no celular. Se você tem religião, isso está no seu celular. Eu tenho a Bíblia no celular e diversas fotos que eu vejo como meu cotidiano mas, pensando no que a polícia chinesa busca, dão na cara que eu sou cristã. Oficiais espionam equipamentos eletrônicos e revistam casas oferecendo a oportunidade de trocar tudo o que seja muçulmano ou turco uigur por cultura chinesa.

A "revolução cultural" do século XXI

"Vários ex-residentes também disseram que livros culturais, artefatos e outros conteúdos associados à cultura muçulmana turca foram, de fato, proibidos. Membros de grupos étnicos minoritários foram pressionados a destruí-los e substituí-los por livros e arte chineses. 'As restrições não são apenas sobre coisas religiosas ... Eu estava na casa do meu primo e [eles foram obrigados a remover] suas esculturas de madeira tradicionais, e até mesmo os tapetes [foram cortados]. Havia algo escrito em uigur na parte de trás do tapete ... Como foi escrito em uigur [as autoridades] fizeram com que cortassem', disse Saken", registra o relatório da Anistia Internacional que entrevistou uigures.

Isso não começa do dia para a noite. Começa com o "dividir para dominar", técnica milenar de conquista de poder. O relatório aponta que as primeiras perseguições não eram contra todos os uigures. Em 2016, a polícia mirava apenas nos religiosos mais tradicionais, aqueles que usam roupas típicas muçulmanas. Alegava-se prevenção contra terrorismo.

Muçulmanos tradicionais, com roupas típicas, eram a minoria dentro da minoria, às vezes bastante incômoda pelo radicalismo com que se agarram à religião. A maioria tolerou, parece algo pequeno e, de certa forma, conveniente. Um avanço talvez. No ano seguinte, a polícia chinesa começou a checar os celulares de todos os muçulmanos em busca de sinais de vínculo religioso. Não havia mais controle.

A perseguição passou a ser invasão de casas sem nem bater na porta para retirar tudo o que tivesse relação com religião ou cultura turca/uigur. Depois, as pessoas eram obrigadas a levar esses objetos a oficiais chineses em postos de coleta. Muitos queimavam o Alcorão e lembranças de família para não dar às autoridades provas de ligação com outra cultura.

O passo seguinte foi a destruição de templos, cemitérios, centros religiosos e centros culturais. A inteligência da Austrália, muito ativa no monitoramento do avanço cultural chinês, vigia por satélite a província de Xinjiang. A estimativa é que, desde 2017, tenham sido destruídas 17 mil mesquitas na região. Outros locais foram "ressignificados" para a cultura chinesa. Há ainda os que permanecem ilesos mas têm câmeras de vigilância para detectar dissidentes.

A substituição de símbolos religiosos muçulmanos e culturais uigures por chineses foi somada à retirada de cidadãos para campos de trabalhos forçados. No relatório da Anistia Internacional, as justificativas do governo chinês são bizarras. Há os que nem justificativa tem, mas muitos foram levados por ter whatsapp no celular ou ter entrado em contato com familiares que moram no exterior.

Ah, mas por que não fugiram então? Muitas das prisões são de familiares de quem fugiu. Se a pessoa some, o Partido Comunista Chinês emite uma ordem internacional para que regresse. Caso não cumpra o prazo, a mãe, um filho, a mulher, um irmão, um familiar qualquer são levados para campos de trabalhos forçados. Esses locais também servem para uma "reeducação cultural".

E por que não invadem isso de uma vez? Primeiro porque não tem nenhuma chance de dar certo. Não é um Afeganistão pobre e capenga, é o país mais populoso do mundo e líder nas tecnologias mais importantes de vigilância e segurança pela internet. Depois porque Xinjiang é um pólo energético vital para diversos outros países da região e do mundo.

A província é grande produtora de petróleo, carvão e gás natural. Além disso, os campos de trabalhos forçados dos uigures são vitais para a produção do que há de mais badalado em termos de "energia limpa" nas grandes potências ocientais.

Descobriu-se recentemente que componentes presentes em todas as placas de energia solar utilizadas no ocidente, inclusive em programas subsidiados por governos de grandes potências, dependem de pessoas escravizadas nos campos de trabalhos forçados de Xinjiang. É um planejamento que chega a dar raiva. Aposto que não tem nenhum chinês no rotativo do cartão nem no cheque especial.

As reações da comunidade internacional

A reação com a qual mais temos contato é xingar a China no Twitter, fazer textão no Facebook ou espalhar corrente de Whatsapp. Adianta tanto quanto aqueles três pulinhos que o pessoal dá para São Longuinho ajudar a achar objetos perdidos. Felizmente tem gente do ramo empenhada no assunto.

Hoje, a China é o principal parceiro comercial do Brasil. Isso não significa dominação cultural, são coisas diferentes. Por via das dúvidas, já aprendi 你好 (pronuncia-se Nî Hǎo), que é mais ou menos "oi" em mandarim. Fez sucesso com as monjas do Zu Lai, o templo budista aqui ao lado de casa. Vai que, né? Uma mulher prevenida vale por duas.

Tendemos a querer agir no nosso raio de ação. Para o cidadão comum a ação política é realmente o consumo. Vamos todos boicotar os produtos chineses então. Não tem jeito. A não ser que a gente vá morar no meio do mato e viver do que planta sem usar nem pá, terá algo produzido na China.

Os Estados Unidos já iniciaram seu jogo de poder, que não é exatamente contra a China, mas de valorização dos princípios e das políticas ocidentais. Donald Trump ficava entre a cruz e a caldeirinha. Sempre foi o mais ferrenho crítico das políticas desumanas do Partido Comunista Chinês. Por outro lado, sempre foi aliado de empresários da China Tradicional, que se opõem ao PCC mas também não aderem à cultura ocidental. O inimigo do meu inimigo é meu amigo.

Agora acompanhamos uma movimentação diferente de duas potências ocidentais. A primeira é a econômica e democrática, os Estados Unidos. A outra é a cultural e tradicional, o Vaticano. Observar como agem essas duas instituições poderosas e representativas da cultura e do pensamento ocidental é muito interessante no momento.

Os Estados Unidos acabam de anunciar o maior plano de investimento governamental no setor privado desde muitas crises que estudamos nos livros de história. Serão investidos US$ 2 trilhões para superar a liderança chinesa nas áreas mais avançadas da tecnologia, como inteligência artificial e computação quântica. Donald Trump, que aposta na cisão interna da China, crê que os opositores chineses do Partido Comunista Chinês perdem, então o status quo ganha. O tempo dirá.

A Igreja Católica está estabelecida em território chinês há mais de 500 anos, numa história muito parecida com a vinda dos jesuítas a São Paulo. De alguns anos para cá, a perseguição às comunidades cristãs na China tem aumentado e o Vaticano fez um acordo com o Partido Comunista Chinês. Os termos exatos são secretos e ele será renovado em breve. Trata-se do único exemplo de como uma instituição ocidental milenar lida com a cultura milenar chinesa.

E quanto a nós, o que fazer? Eu queria muito virar o presidente dos Estados Unidos ou o Papa em breve, mas não tenho essa esperança. Lidar com o Partido Comunista Chinês é coisa mais para eles do que para mim. Nós temos é a aprender. Um povo dividido, que sacrifica compatriotas e tolera violações de direitos dos seus é um povo fraco. Se você briga com o seu cunhado por causa da China, a China não perde nada.

A lógica da oposição sistemática ao adversário é um tiro no pé sobretudo quando se fala em realidades que conhecemos tão pouco. Mas há algo que nós conhecemos muito bem, o nosso jeito de viver, nossos valores, nossa cultura, nossas raízes.

Quando nos vemos como um país dividido, com um grupo querendo impor seus valores sobre o outro, somos fracos. Não há vencedores nessa disputa. Somos fortes quando aceitamos que o Brasil é um povo só, com mais semelhanças que diferenças. É a partir daí que podemos traçar os limites claros para a convivência sem que um se imponha sobre o outro. Viver com menos fígado e mais cérebro pode dar uma crise de abstinência no começo mas vale cada segundo.

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