Vivemos tempos complicados, mas chegamos a um ponto em que tudo está passando demais do limite. Terça à noite inventaram de fazer ao mesmo tempo duas votações decisivas para o destino do Brasil. Obviamente a atenção da nação ficou com a mais importante, se íamos ou não punir no paredão do Big Brother o racista Rodolfo, terror dos cabeleireiros. Enquanto isso, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto apelidado de "vamos fingir que isso é trabalho", dando a empresas o direito de comprar vacinas. Os fabricantes já avisaram oficialmente que não vão vender.
Amigos lamentaram que é triste um país dar mais atenção ao Big Brother do que ao Congresso Nacional. Sejamos francos: somos governados pelo BBB. Esse programa manda no Brasil muito mais do que o Congresso Nacional. A união do BBB com Superpop é o que definiu a Presidência da República e o estilo de atuação da oposição. Obviamente é mais importante que o Congresso, já que determina o amanhã dele.
Os que são jovens há muito tempo lembram-se como tudo começou. A treta política tradicional era uma coisa meio empolada, o máximo de perrengue era um Roberto Jefferson x José Dirceu e instintos mais primitivos. Tinha, aqui e acolá, uma tentativa de mitagem eterna de Jair Bolsonaro, que causava desde seu primeiro discurso na Câmara dos Deputados. Mal subiu na tribuna, defendeu a ditadura, o fechamento do Congresso. Depois, voltou para reclamar que o discurso dele não tinha sido passado na Voz do Brasil e acusou a Câmara de instaurar uma ditadura.
Houve época em que as lacradas e mitagens não davam notícia nem na Voz do Brasil, avalie o desdém do noticiário político geral. Nessa época, Alborghetti e Ratinho eram lobos solitários do mix de notícia com mitagem e lacração. Devo confessar que até hoje assisto o teste de DNA com muito entusiasmo, mas nego com veemência. Admito, no máximo, que passei diante da TV quando outra pessoa via este escárnio de quinta categoria.
Há uma verdade universal: se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé. E assim se deu a relação entre sensacionalismo televisivo e Congresso Nacional. Quer dizer, foi um pouco mais promíscua. O sensacionalismo televisivo se tornou parte do Congresso Nacional quando elegemos com orgulho não apenas o Tiririca e o Clodovil, mas a nova safra de famosos estridentes da TV, os vencedores de reality shows.
Confesso a vocês que não vi o Big Brother vencido por Jean Wyllys, o que o catapultou ao Congresso Nacional. Prefiro entretenimento mais erudito, como a Casa dos Artistas ou a Casa dos Desesperados, do Sergio Mallandro. A lógica do jogo é criar rivalidades e sair ganhando. Foi repetida no Congresso Nacional, onde surgiu a mítica dupla Jean e Jair, a brigar praticamente todos os dias. Virou moda e engoliu o Congresso Nacional.
Ontem, o Big Brother inflamou o Brasil mais uma vez. Toda nossa brava gente estava mobilizada para uma atividade fundamental. Foi finalmente punido com a eliminação no paredão o racista bolsomínion Rodolfo. E a prioridade do país passou a ser dizer que estava votando contra o Rodolfo. Se não fizer isso, vão dizer que você é racista e bolsomínion também. Se fizer, não vão dizer mesmo que você seja. Essa é a magia do mix de internet com Big Brother. Impossível dar importância ao Congresso Nacional diante disso.
No mesmo horário, o Congresso Nacional decidiu votar o tal do projeto inexplicavelmente polêmico de permissão de compra de vacinas pela iniciativa privada. Até o momento, as únicas disponíveis são as fornecidas pela enfermeira golpista que aplicou soro fisiológico na elite mineira por R$ 2 mil duas doses completas. As empresas que fabricam as outras, as de verdade, feitas em laboratórios e aprovadas por agências internacionais, já avisaram que não vão vender para empresa nenhuma por enquanto, só para governos. E o por enquanto vai ter chão, amigos. Quem é que vai acompanhar uma coisa dessas tendo uma votação de Big Brother? Impossível. Pelo menos dessa vez não votaram mais benesses para eles próprios.
Como o Big Brother manda, a ordem da reação é imitar os participantes do programa. Os críticos da votação da Câmara dos Deputados voltaram suas baterias contra o empresariado, antiético ao querer vacinar antes os seus. Compreendo o desespero deles, mas não entendo o desprezo pela virologia nem a falta de instinto de sobrevivência. De qualquer forma, o problema do Congresso é criar uma lei que gera bate-boca mas é inócua. Poderia gastar o tempo cumprindo suas funções em vez de fazer politicagem.
Hoje, as redes sociais estão lotadas de gente falando dos playboys da vacina, do fura-fila da vacina, de toda essa injustiça. Nada disso tem como existir porque as empresas já disseram que não vão vender a vacina para particulares. Deixando a ética e a moral de lado, empresas que trabalham com pesquisa respeitam ciência. Os fabricantes de vacina sabe que o COVID não se comove com bate-boca e argumentação emocionada. Ele sucumbe às estratégias de destruição caso sejam levadas a cabo como desenhadas.
Ocorre que a vacina funciona coletivamente, tanto na imunização individual quando na contenção da possibilidade de novas mutações. Para isso, tem de ser aplicada seguindo critérios epidemiológicos na ordem de quem é imunizado. Se seguidos, eles vão ajudando primeiro a desafogar o sistema de saúde e depois a eliminar o vírus. Caso a empresa venda para um particular que está tão desesperado a ponto de esculhambar a estratégia, vai arcar com o ônus de ter o nome na vacina que deu problema. Difícil que multinacionais farmacêuticas topem um baque desse diante de uma miríade de países doidos para comprar vacina e sem ter quem venda.
Caso funcionasse como Congresso Nacional, nosso Congresso teria exigido, já em dezembro de 2019, que o Governo Federal apresentasse seu plano de contenção da pandemia. Não o fez e preferiu usar o embate para ganho político. Até hoje o próprio Governo Federal diz que não tem um plano nacional. Está aí nosso orçamento Frankenstein cheio de emendas para aliados dos parlamentares, mas nada de plano de combate a COVID. Não precisa, o Congresso é o novo Big Brother: jogaram para a galera e se isentaram da culpa que partilham.
Deixo aqui a dica definitiva para que você não seja visto como egoísta, insensível, elitista ou matador de pobres. Xingue bastante os empresários que se propuseram a comprar vacinas. Xingue mais ainda, se possível individualmente, quem votou a favor do projeto. Não vai mudar nada no projeto em si nem na decisão das pessoas, então pouco importa qual seja seu posicionamento real. Não é política, é Big Brother.
Se criar essa rivalidade, você passará a ser visto como uma pessoa boa, ética, defensora dos pobres e fiel cumpridora dos preceitos científicos. No seu lugar, eu seguiria. Garanto que é bem mais fácil do que ser todas essas coisas de verdade. Você poderá, inclusive, fingir que é um bom cidadão e acompanha todas as decisões do Congresso Nacional. E isso inclusive quando estiver votando freneticamente no Big Brother. É a política do Big Brother: você nunca será julgado pelo que faz, mas pelas rivalidades que cria.
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