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Ex-presidente Lula
Ex-presidente Lula| Foto: Ricardo Stuckert/PT

Todas as vezes em que Lula volta a falar da regulação da imprensa, aparece esperto da imprensa dizendo que seria no modelo inglês. Você não precisa entender de leis de imprensa em outros países para concluir que o pessoal só pode estar brincando. Recentemente, a esquerda buscou um Mandela para unir o país enquanto a direita tentou emplacar um Churchill. Acabamos com Lula e Bolsonaro. Quiseram montar uma BBC, acabamos com a TV Brasil. Estamos de parabéns.

Primeira coisa que precisamos lembrar é que nem a Dilma aceitou a proposta do Lula para regular a imprensa. Aliás, ninguém nunca entendeu por que ele não fez no governo dele e empurrou para o dela. A Lei de Imprensa de 1962 foi derrubada pelo STF em 2009. Lula vivia o auge, tinha maioria fácil no Congresso. Preferiu que Franklin Martins entregasse um anteprojeto para o primeiro ano de Dilma. Ela engavetou.

Não sei se você é fã ou não do PT, mas aqui faço uma análise comparativa objetiva sobre pequenas diferenças entre Dilma e Lula no trato com a imprensa. Sempre houve no Brasil, inclusive durante a ditadura militar, o hábito de que o presidente respondesse perguntas de jornalistas de diversos veículos. Já entrevistei o Fernando Henrique numa padaria na esquina da casa dele, por exemplo. Lula interrompeu isso logo que ganhou a eleição.

No dia da vitória de 2003, eu estava entre os repórteres que cobriram a eleição desde as primeiras horas da manhã. Fomos todos aglomerados num salão de um hotel na Alameda Santos onde, segundo a assessoria, o então presidente eleito daria uma entrevista coletiva à imprensa. Era um domingo. Aguardamos horas ali. De repente, alguém alerta para a televisão do hotel. Lula estava no Fantástico, dando uma entrevista exclusiva.

Àquela altura do campeonato, eu tinha pouco mais de 20 anos e era petista. Naquele dia, o Duda Mendonça me deu o broche de estrelinha que o Lula estava usando e trocou. Tenho até hoje. Está embrulhado no meu papel de trouxa. Aliás, fiz papel de trouxa para embrulhar um quarteirão. Naquele momento eu entendi como passariam a ser as relações com a imprensa. Foi eloquente demais.

Não recebíamos a agenda do presidente eleito, como ocorreu nos mandatos anteriores. A assessoria enfiava Lula escondido em carros, alguém descobria e a imprensa saía em disparada. (Sou do tempo longínquo em que lugar de repórter era na rua, não no Twitter). Uma amiga, repórter da Record, sofreu um acidente em uma dessas "perseguições". Ficou quase um ano afastada do trabalho. Partido dos Trabalhadores...

A alegação para esse tipo de comportamento era o preconceito que a mídia teria contra Lula, principalmente a Rede Globo. E por que a primeira entrevista foi exclusiva para a Globo então? Nunca entendi. A cobertura da presidência passou a ser algo pasteurizado. Lula discursava, jamais dava entrevistas coletivas do tipo quebra-queixo. Priorizava os tais dos "blogueiros sujos" em coletivas e às vezes dava entrevistas exclusivas.

A tensão entre PT e imprensa continuou no governo Dilma, mas as entrevistas coletivas do tipo quebra-queixo foram retomadas. Convenhamos que Dilma tinha muito mais dificuldade que Lula nesse tipo de interação, mas era feito. A regulação da imprensa, que diziam ser regulamentação da mídia no modelo inglês, foi apresentada. Não tinha nada a ver com o que fizeram por lá. O PT continuou infernizando e defendendo a proposta. Agora Lula reaparece com essa história.

Quem poderia esclarecer definitivamente o que Lula quer com a tal da regulação da imprensa? Ele mesmo, só que nunca fez e vem com o mesmo sarapatel de coruja toda vez que fala do tema. Mistura regulamentações, que são necessárias, a outros temas totalmente diversos. Fala que a lei é velha demais, que falaram mal dele, não apareceu na Globo até 2005 (foi eleito em 2003...), que está sem direito de resposta, enfia até fake news no meio. Enquanto houver otário, malandro não morre de fome.

Por que Lula não explica de vez o que pretende em vez de apelar sempre à mesma fórmula de discurso que ele aplica com maestria? Porque não quer e não precisa. Vai ter um exército de paquitas de político explicando o que ele quis dizer. Aqui no Brasil, é parte do pacote da vida política ter paquitas que passam vergonha por você. E a explicação é que seria aplicado aqui o modelo inglês, de 2013.

O modelo inglês existe, o anteprojeto do PT para regular a imprensa no Brasil também. Basta comparar um com o outro para acabar de vez com essa ladainha e tirar a prova dos nove. Como a única imbecil que lê documento antes de falar sou eu, resolvi assumir essa nobre tarefa. O anteprojeto está no primeiro anexo desse documento de defesa de tese na USP. É maior que a Bíblia e a Constituição juntas.

Vou ficar apenas na espinha dorsal dos dois projetos sobre regulamentação de mídia, o inglês e o do PT, a criação do Conselho que controlaria tudo e quais são as regras. Na origem, o projeto inglês surge da necessidade de proteger cidadãos comuns dos tabloides, o do PT surge para proteger autoridades. No modelo inglês, a autorregulação é a regra e existe um Conselho governamental para exceções. No modelo do PT, o Conselho regulador e as regras seriam criados pelo Ministério das Comunicações.

O modelo inglês foi reformado em 2013, após um escândalo sobre escutas ilegais que haviam sido feitas em 2002 pelo jornal News of The World, que foi fechado por seu controlador após 170 anos de existência. O caso era o da menina Milly Dowler, de 13 anos de idade, assassinada por um serial killer que a sequestrou no ponto de ônibus voltando da escola. O jornal resolveu fazer uma escuta ilegal no celular da menina para conseguir furos de reportagem.

Foi uma investigação que parou o país. Mais de 6 mil suspeitos foram interrogados. O que se descobriu só em 2011 foi o momento exato da morte, bem antes do que a polícia acreditava. A razão foi a escuta do jornal. Uma repórter resolveu apagar algumas das mensagens deixadas na caixa postal da menina. A polícia e os pais, que estavam monitorando legalmente, concluíram que a menina estava ainda viva, o que dificultou demais as investigações.

Já havia um suspeito fortíssimo, mas a cronologia não batia. No final das contas, em 2011 se descobriu que era realmente ele, a morte da menina é que foi antes. Como o corpo só foi achado meses depois, esse detalhe não pôde ser esclarecido com perícia. Depois desse assassinato, o criminoso estuprou uma menina de 11 anos e matou mais duas pré-adolescentes. A Scotland Yard só descobriu o detalhe da invasão do celular depois que ele foi ouvido já condenado pelos outros crimes, quase 10 anos depois.

Na Inglaterra, a imprensa já tinha um órgão por meio do qual se autorregulava, algo parecido com o Conar da nossa publicidade. Se teve serial killer solto matando menina pré-adolescente por ação atabalhoada da mídia, concluiu-se que ele não funciona. Foi feito então um órgão independente do governo e da indústria da comunicação. No Brasil, o Ministério das Comunicações que determinaria tudo sobre a estrutura e as regras do órgão. A criação é basicamente porque o Lula quer. Acho que são meio diferentes.

O novo Conselho e novo modelo de regulação da imprensa não foram criados pelo governo inglês. Foi editado um Royal Charter assinado pela Rainha Elizabeth, é um instrumento de ação dos Chefes de Estado que existe desde a era medieval e pode ser derrubado por 2/3 do parlamento. Ele traz todos os mínimos detalhes de como será composto o novo conselho para regulação da mídia e todos os princípios que deve seguir.

A minuta do projeto do PT é basicamente um não-projeto que deixa nas mãos da Presidência da República a incumbência de criar o Conselho que faria a regulação da imprensa, as regras de operação e também as regras para regular a imprensa em si. Nada disso está no projeto, apenas são atribuídas - e concentradas na Presidência da República - as responsabilidades.

Pelo projeto do PT, seria o Ministério das Comunicações quem criaria o modelo do Conselho que iria regular a imprensa. E quem faria parte, de que natureza seria? O Ministério das Comunicações que vai apresentar esses detalhes ao presidente da República para que ele decida se é assim ou não que quer o tal do Conselho. E que regras seriam impostas sobre conteúdo? O Ministério das Comunicações que vai apresentar um código de conduta. Meio diferente do que a Rainha Elizabeth fez.

O longo projeto detalha mesmo é a questão da concentração econômica de grupos de comunicação e de uma limitação na relação entre políticos e concessões públicas. Eu não sou contra regulamentação de concessões públicas, sou a favor. Avalia o que seriam as estradas, aeroportos e metrôs se nada disso tivesse regras atualizadas para concessão. E, mesmo com regras, já tem problemas como a enorme cratera em São Paulo nos 10 anos da outra cratera do metrô.

O que eu sou contra é fantasia e falta de clareza em projetos que são objetivos. Rádios e televisões são concessões públicas iguais a qualquer estrada, aeroporto, linha de metrô. Têm de ter sim um padrão de prestação de serviço que atenda o público e prestar contas a ele, que é o dono do negócio. Jornais continuariam fora dessas regras segundo Lula. Na Inglaterra não, há benefícios financeiros para aderir a regras mínimas, mas a escolha é livre. São modelos diferentes.

A grande questão que resta é a internet. Agora que ressuscitou isso de regular imprensa em ano eleitoral, Lula falou pelos cotovelos sobre internet, fake news, ataques. O modelo inglês não regula internet, que não é concessão pública nem lá nem cá. Domínios são concedidos nacionalmente, mas é possível acessar sites de todo canto do mundo. Que regulação seria essa? Botar ordem na bagunça de Big Tech mandando no TSE e no Congresso ou deixar só o time dos "blogueiros sujos" publicar na internet? O único que pode esclarecer é Lula, mas ele nunca pareceu interessado.

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