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"Um povo que não conhece a própria história está condenado a repeti-la" não é uma frase, é um axioma. Cunhada pelo fundador do conservadorismo moderno, Edmund Burke, chegou a ser repetida em público até por um expoente do outro extremo político, Che Guevara. Por isso eu faço questão de relembrar à exaustão a iniciativa bem intencionada de mobilização que mais deu errado na história do Brasil: Liga Contra a Vacinação Obrigatória.

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Não estou falando de rede social nem de coronavírus, mas de um episódio iniciado em 5 de novembro de 1904, com toda boa intenção no universo simbólico, como amam os libertários, produzindo um absoluto desastre na vida real. Há mais de um século o Brasil já sabe por que formadores de opinião simplesmente não debatem obrigatoriedade de vacina: além de não esclarecer ninguém, a tendência de acabar em tragédia é altíssima. Políticos hábeis sempre sabem colher frutos nessas ocasiões.

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A Liga Contra a Vacinação Obrigatória de 1904 uniu monarquistas, militares, uma ala republicana e operários. Em menos de duas semanas, conseguiu um resultado impressionante: 30 mortos, 110 feridos, 461 deportados, 945 presos e uma epidemia de varíola violenta como nunca se havia visto antes. Questionar obrigatoriedade de vacinação começou como moda entre veganos, passou para uma ala dos progressistas e chegou aos liberais como se fosse algo bem intencionado. Não é e tem fim triste. Precisamos parar de contribuir para este espetáculo.

A melhor forma de esculhambar uma coisa que preste é torná-la obrigatória. Essa lição, aprendida no Brasil em 1904, é uma referência em comunicação para a Saúde Pública. Vacinação é um pacto coletivo, não uma escolha individual: a eficácia depende do percentual de pessoas vacinadas em determinada área. Em nenhum caso atual esse percentual é de 100% e campanhas de sucesso, como a vacinação do HPV e da gripe, por exemplo, jamais tocaram no tema da obrigatoriedade. Por quê? Porque ele não existe no mundo real, só na cabeça da militância do universo simbólico, essa que nunca pisou nem pisará num posto de saúde da rede pública.

Autoridades, cientistas, formadores de opinião e até nós, jornalistas, imaginamos que é necessário mostrar todos os detalhes deste debate para tranquilizar a população. É sintoma da sociedade do espetáculo e da apoteose da superficialidade. Como qualquer palavra que sai da boca de alguém, um tweet ou um videozinho em rede social são alçados ao patamar de opinião ou notícia, parece um debate interminável. Ocorre que não há debate e precisamos colocar um ponto final antes de conseguir o mesmo resultado que a nossa sociedade produziu no século passado.

A história da obrigatoriedade da vacina

Alguns povos imaginam que democracia é ter o direito de votar e liberdade de expressão. Não atentam que só há democracia quando o povo controla o governo. O debate sobre obrigatoriedade de vacina nos últimos anos começa na área mais autoritária da sociedade, aquela ala progressista canceladora que pretende impor sua visão de mundo aos demais. O Brasil tornou vacinas obrigatórias para que nós, o povo, possamos obrigar o governo a comprar. Quem tem mente autoritária entende o oposto, que é para obrigar a gente a tomar vacina. Então, esse pessoal começa a inventar história e bater o pé.

Um casal vegano de São Paulo - adulto e vacinado - entrou na Justiça pedindo para não vacinar os filhos devido à crença no veganismo. A ação está no Supremo Tribunal Federal. Na cabeça deles, o Calendário de Vacinação Infantil do Ministério da Saúde serve para oprimir os veganos. Realmente, parece muito absurdo que o calendário seja obrigatório só para que todos os presidentes, governadores e prefeitos do país sejam obrigados a participar da compra, distribuição e aplicação das vacinas. Deve ter sido mesmo algo contra o veganismo.

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Muitas pessoas pensam que o principal entrave em campanhas de saúde pública está na ignorância. Eu, inclusive, antes de fazer parte da equipe que erradicou a pólio em Angola, pensava que o radicalismo religioso também era uma barreira intransponível. Estava errada e precisei dar a mão à palmatória dos vacinadores mais experientes. Só há dois entraves perigosos a vacinas: terroristas e inteligentinhos.

Sobre terroristas, creio não haver necessidade de me alongar. São capazes de tudo para controlar pessoas e a vacinação atrapalha e cria um vínculo de confiança com outra autoridade. Os inteligentinhos são uma camada específica da população que estudou mais do que a média mas não o suficiente para descobrir o tanto de coisas que ignora no mundo e nas outras áreas do conhecimento. Eles têm convicção de saber muito mais sobre vacinas e vacinação do que todos os geneticistas, epidemiologistas e infectologistas da galáxia. Quase impossível convencê-los de que são temas mais complexos do que pensam, seria demolir a imagem que têm de si mesmos.

"O maior inimigo do conhecimento não é a ignorância, é a ilusão do conhecimento", cravou o certeiro Daniel Boorstin, pioneiro na análise da imprensa-espetáculo. É preciso estar muito iludido acerca do próprio conhecimento sobre vacinas para cogitar que exista um debate ou uma opinião sobre obrigatoriedade. Não tem relação com vacinas, tem relação com mentes autoritárias que gostam de toda e qualquer brecha para inflamar politicamente os demais com base no medo. Isso precisa ter limites.

Temos hoje liberais fomentando discussões sobre obrigatoriedade de vacina e dizendo que o Brasil tem essa brecha, mas não dizem o motivo. Ela foi criada para que nós, cidadãos, controlemos o governo. Quantas vezes alguém foi bater na sua casa tentando vacinar uma criança à força? Num país que não descobre a autoria nem de 10% dos assassinatos, é um delírio absoluto imaginar que haveria capacidade do Poder Público para correr atrás de não-vacinados. Já a capacidade de usar dinheiro de ações para o povo em outras coisas, conhecemos bem. Então, alguém achou melhor garantir pelo menos o das crianças, montando o Calendário Nacional de Vacinação, que é modelo no mundo.

Saindo do universo simbólico para a vida real

A militância do universo simbólico, que ficou mais aguerrida e audível com as redes sociais, sempre existiu. Como hoje, pegava carona em problemas reais da população, oferecendo explicações que parecem boas mas não entregam resultado que preste e, quando dá tudo errado, o povo que pague - essa militância não depende de programa de governo para sobreviver. Foi assim com a gloriosa "Liga contra a Vacinação Obrigatória" de 1904 e é assim com os que hoje militam pela mesma causa, à direita e à esquerda.

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No mundo real - esse de gente que paga conta, vai ao posto de saúde e tem problema para resolver - a história da vacina é outra. A primeira a chegar ao Brasil foi a da varíola, tornada obrigatória para crianças a partir de 1837 e para adultos a partir de 1846. O problema é que não tinha vacina para todo mundo. Nós demoramos mais uns 40 anos para ter a tal da vacina obrigatória em escala industrial. Até aí, caiu a monarquia, começou a República, veio outra Constituição e ninguém percebeu que a vacina tinha deixado de ser obrigatória.

Quando perceberam? Com o surto de varíola de 1904 no Rio de Janeiro, que também já tinha passado por surto de peste bubônica e febre amarela. Naquela época, a situação já fervia na cidade devido a uma "revitalização" que o presidente Rodrigues Alves e o prefeito promoviam nos cortiços, casebres e vielas exatamente devido à falta de higiene. Decidiram derrubar tudo e expulsar os moradores, criando involuntariamente um marco carioca: as favelas. A capital do país passava por uma reurbanização total, mas havia uma tensão social enorme, prato cheio para a oposição política.

Enquanto o presidente sentava num barril de pólvora político, o responsável pela Saúde, Oswaldo Cruz, teve uma ideia: voltar com a vacina obrigatória, copiando a estratégia da Inglaterra de 10 anos antes. A população, afinal, tinha sido muito favorável às estratégias dele para combate de doenças. Ocorre que o plano concreto contra a febre amarela era matar mosquito e, contra a peste bubônica, o governo chegou até a comprar ratos dos cidadãos que os capturassem. Difícil a oposição se aproveitar disso, mas com vacina obrigatória foi diferente.

Fonte: - PORTUGAL, Fillipe dos Santos. A institucionalização da vacina antivariólica no Império Lusobrasileiro nas primeiras décadas do Século XIX. Rio de Janeiro: s.n., 2018. Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) - Fundação Oswaldo Cruz, Casa de Oswaldo Cruz, 2018.| Foto: ??

Naquela época, vacina não é o mesmo de hoje. Esqueça laboratório. A varíola é um vírus que causa uma doença parecida com a gripe, que depois evolui para enjôo, vômito, diarreia e, na fase terminal, tumores com pus por todo o corpo. Num mundo sem antibiótico, vários reis europeus tombaram e praticamente todos os reis das civilizações da América. Um médico da zona rural da Inglaterra percebeu que as mulheres ordenhadoras de vacas pareciam ser imunes à doença que matava milhares ao ano. As vacas também tinham as pústulas da varíola. Edward Jenner teve uma ideia: tirar o líquido das feridas das vacas infectadas e inocular em pessoas. Funcionou para prevenção e cura, virou a vacina. Era outro mundo.

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A vacina obrigatória de 1904 era literalmente isso: o líquido retirado das pústulas de vacas infectadas com varíola e diretamente injetado em pessoas. Não vinha em vidrinho, caixinha, controle de qualidade, teste, nada disso. Era um prato cheio para medo e boatos. O mais famoso era de que os vacinados desenvolviam, com o tempo, feições bovinas.

Na Inglaterra, houve ligas contra a vacinação e contra a vacinação obrigatória. Mas, como o ambiente político na era bom - 1853 marcou o fim das 3 guerras do país contra Myanmar -, a maioria se vacinou, uma minoria pagou a multa para não vacinados e a vida seguiu. No Brasil, com ambiente político inflamado, colocar vacina e obrigatoriedade na mesma frase tinha um potencial demolidor. O senador Lauro Sodré decidiu reorganizar a oposição em torno do medo da vacina, impulsionado pelo ambiente político já contaminado com a reurbanização do Rio de Janeiro. Conseguiu.

Foi com uma reunião noturna e recheada de discursos políticos inflamados no Centro da Classe Operária que o senador Lauro Sodré fundou a Liga contra a Vacinação Obrigatória. Outros discursos incendiários seguiram a fala dele, todos falando muito de política e nada de vacina ou doença. Foi com base nas razões políticas para se opor à obrigatoriedade que a população foi instruída a reagir às vacinas que, na época, eram aplicadas de casa em casa, como ainda se faz em diversos países da África e da Ásia.

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Claro que políticos e jornalistas da Liga contra a Vacinação Obrigatória não estavam preocupados com "liberdade individual" de pobre, como quiseram fazer parecer. Era uma manobra política para tentar derrubar o presidente ou ganhar poder. Como ainda é possível contar a mesma história mais de 100 anos depois? Porque enquanto houver otário, malandro não morre de fome, diz a lenda do Rio de Janeiro.

Marianno da Silva. Aspecto da Praça da República no dia 14 de novembro de 1904 / Acervo Fiocruz

O movimento surgiu à esquerda do governo, reunindo operariado e estudantes, que foram às ruas. Houve quebra-quebra e bondes virados, caos total no Rio de Janeiro e em São Paulo. Foi a senha para que os generais aderissem ao movimento, que chegou ao ponto de recomendar ao presidente Rodrigues Alves, em 14 de novembro de 1904, que embarcasse num navio de guerra para garantir a própria segurança. Ele não quis. Começou então a revolta dos alunos das escolas militares, que se transformou em uma carnificina. No dia 16 de novembro, foi decretado Estado de Sítio e revogada a vacinação obrigatória.

O presidente seguinte não foi da ala revoltosa, foi Hermes da Fonseca, militar que não aderiu ao movimento e ajudou a sufocar a revolta dos alunos militares. Foi indicado ao governo em 1908, coincidentemente quando o Brasil teve um surto ainda pior de varíola. Dessa vez, a população pediu pela vacina e ninguém teve a brilhante ideia de debater obrigatoriedade, uma hipótese científica ainda não existente na vida real, usando argumentos políticos e da área do Direito.

Vale a pena ver de novo?

As décadas passam, o mundo passa por uma revolução tecnológica, temos telefone, luz elétrica, geladeira, celulares, internet. Num desses momentos de nostalgia retrô, alguém desenterrou essa moda de debater uma hipótese científica que não existe na vida real utilizando argumentos da política e do direito. Por quê? Não sei, eu trabalho e pago boletos, vivo em outro universo.

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Aliás, minha especialização é justamente nesta área: comunicação pública para mudança de comportamento. Foi o tronco de comunicação pública, advocacy e publicidade do UNICEF que eu ajudei a chefiar na campanha que erradicou a pólio em Angola e mirava apenas nos mais resistentes à vacina. Nem lá, que era, na época, a ditadura mais longeva do continente africano, as autoridades públicas ou comunicadores falavam a palavra obrigatoriedade - seja contra ou a favor. Ali, muito rápido as consequências dessa irresponsabilidade explodem na cara de quem a comete. No Brasil não, é possível viver eternamente na bolha da militância do universo simbólico, à esquerda e à direita.

Como o Poder Público, mesmo numa ditadura, decide se uma vacina é obrigatória? Premissa científica e custo-efetividade da política pública. A premissa científica seria a de uma vacina que só funciona se 100% da população a receberem, o que não existe no mundo real. Já que não há necessidade científica de obrigar, partimos para a política pública.

Qual é o custo da efetividade de uma política de vacinação caso se opte por obrigar? E caso se opte por incentivar? Obrigar é incendiário e inútil em tempos de instabilidade política, além de ser caro - senão impossível - sob o ponto de vista logístico. Incentivar tem dado certo para atingir o percentual mínimo de imunizados há mais de um século, mesmo em casos de fortes campanhas contra uma vacina específica. A do HPV, combatida tanto por ONGs feministas quanto por fundamentalistas religiosos, teve ampla aderência da população e estamos acima dos níveis internacionais de imunização.

A última pessoa pública que pensava em saúde quando abriu debate sobre obrigatoriedade de vacina no Brasil se chamava Oswaldo Cruz e morreu faz mais de 100 anos. Depois dele, todas os debates inflamados sobre obrigatoriedade de vacina não têm nada a ver com saúde, têm a ver com política. Você vai colaborar?

A tendência nos próximos dias é que todo político ou influencer, com ou sem mandato, tenha uma "opinião" sobre vacina obrigatória. Coloco entre aspas porque opinião pressupõe ampla informação sobre o tema, preparo técnico e, para os exigentes, no mínimo uma experiência prática de sucesso na área. O que os políticos têm vocalizado pode se chamar de narrativa, imaginação ou sentimento, mas não é opinião. E por que farão isso? Porque vivemos a economia da atenção, eles vão mobilizar nas redes sociais, ganharão espaço na imprensa. Os mais sortudos vão arrumar um rival e essa briga vai render pano para manga até que ganhem em publicidade espontânea mais do que pensaram em poder pagar um dia. Estamos em campanha eleitoral.

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E se esse debate ególatra e esquizofrênico para estimular o medo nas pessoas acabar tendo consequências ruins para o cidadão? Quem se importa? Alguém vai cobrar a responsabilidade de quem brincou com algo tão sério porque queria aparecer? Claro que não.

Se os políticos dormem bem fazendo isso, está na hora de nós, jornalistas, colocarmos a mão na consciência. Podemos fazer muito melhor do que estamos fazendo num tema que é tão sério para todas as famílias. Está na hora de colocar um ponto final na espetacularização da cobertura sobre vacina. Não há razão para dar espaço a políticos que não têm poder de decisão para militar de forma inflamada sobre decisões que são técnicas e não foram tomadas. Eles que arrumem outro jeito de polemizar, não a saúde física e mental das pessoas.

Há muitos anos chamo o jornalismo declaratório de "shownalismo", o que me rendeu muita cara virada entre colegas. Precisamos, conjuntamente, decidir que um tweet desta ou daquela pessoa, sem confirmação de documentos ou decisões, não é reportagem que se faça sobre vacina. Devemos isso ao público. Já atingimos o limite de organizar "debates" ou "reportagens" em que um lado fala que está chovendo e outro fala que não está. Nós, jornalistas, precisamos abrir a janela em busca da verdade.