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Imagem de Nossa Senhora Aparecida com logomarca da CNBB no manto, durante Assembleia Geral do episcopado brasileiro em abril de 2023, em Aparecida.
Imagem de Nossa Senhora Aparecida com logomarca da CNBB no manto, durante Assembleia Geral do episcopado brasileiro em abril de 2023, em Aparecida.| Foto: Thiago Leon/Santuário Nacional

Na semana passada, o Ministério da Saúde tentou, com uma nota técnica, abolir a distinção entre aborto e antecipação do parto, derrubando a recomendação anterior de que o aborto nos casos não punidos por lei não fosse realizado a partir do momento da viabilidade fetal. O texto não ficou nem dois dias em vigor e foi suspenso, sob a alegação de que a ministra Nísia Trindade não sabia do teor do documento – mas, se você realmente acredita que um texto dessa importância não passou pela ministra, vem cá, quer comprar um bilhete premiado?

E aí o católico que acompanhou tudo isso deve ter ficado se perguntando “mas e a CNBB? E a CNBB?” Muita calma nessa hora. Você não viu nenhuma manifestação pública no site ou nas mídias sociais da conferência. Mas, naquelas horas caóticas desde a divulgação da nota técnica até sua suspensão, inúmeras frentes pró-vida realizaram uma movimentação forte junto ao Ministério da Saúde para que o texto fosse derrubado, e uma fonte desses bastidores informou ao colunista que a CNBB e a Frente Parlamentar Católica também fizeram parte dessa marcação cerrada, invisível e bem-sucedida, ao menos temporariamente.

A dimensão pública é importante, mas a movimentação nos bastidores também é, e há momentos em que é preciso escolher entre uma e outra, e arriscar uma incompreensão momentânea para conseguir o melhor resultado. Há muitas outras brigas pela frente em defesa da vida, como a ADPF 442 (e também a 989, mencionada na nota técnica) no STF, e um possível projeto de novo Código Civil que está em elaboração, embora ainda não tenha chegado ao plenário do Congresso, e que será um forte golpe nos direitos do nascituro. Reze para que os absurdos não prosperem e reze pelos líderes do nosso episcopado, para que escolham sempre a melhor forma de lutar em defesa da vida.

Um cardeal anônimo, seus muitos acertos e um único erro

Em março de 2022, o vaticanista Sandro Magister publicou em sua coluna uma carta anônima, intitulada “O Vaticano hoje”, que já circulava entre os cardeais eleitores – aqueles com menos de 80 anos e que terão a missão de eleger o próximo papa, assim que o pontificado de Francisco terminar. Em janeiro do ano passado, Magister revelou que o autor, que assinava “Demos” (“povo” em grego), era o cardeal australiano George Pell, falecido havia alguns dias. Ainda que houvesse alguma controvérsia sobre a autoria, de fato o diagnóstico feito por Demos era muito parecido com o que Pell fazia em seus diários escritos durante o tempo em que passou injustamente preso, após uma falsa acusação de abuso: confusão doutrinal, critérios diferentes para lidar com ameaças (reais ou imaginadas) à unidade da Igreja, um estilo autoritário de governança, além de críticas à condução do processo do cardeal Angelo Becciu (ele mesmo um desafeto de Pell) – um assunto sobre o qual nada tenho a comentar, por ser bastante complicado e sobre o qual pouco me aprofundei.

Agora, um Demos II está na área. O site italiano La Nuova Bussola Quotidiana publicou no último dia 29 um novo texto anônimo, chamado “O Vaticano amanhã”, e que também é atribuído a um cardeal. O título e o pseudônimo do autor indicam uma intenção de continuidade em relação ao que Pell havia escrito. Ele parte de um pressuposto que alguns dão como certo, o de que estamos no fim do atual pontificado. Eu iria mais devagar com o andor. Ainda que Francisco já tenha 87 anos – mais que Bento XVI tinha quando renunciou, e mais que São João Paulo II tinha quando faleceu –, sua saúde parece em ordem, com os problemas limitados à locomoção. A imprensa passou uns bons dez anos atualizando obituários de João Paulo II; julgavam-no acabado desde meados dos anos 90, e ele seguia em frente.

As viagens mostram ao papa a riqueza e a variedade da Igreja, e mostram aos católicos que o papa está junto deles. Mesmo países secularizados ou onde católicos não passam de minorias são chacoalhados por uma visita papal

A carta de Demos II, como o próprio nome diz, é menos uma avaliação do papado atual e mais uma espécie de “programa de governo” que ele gostaria de ver implantado por quem vier depois de Francisco. O autor considera pontos fortes do atual pontificado a ênfase no cuidado com os mais pobres, vulneráveis e sofredores, na busca das “periferias existenciais” – afinal, a Igreja é mãe de todos e precisa ir a seu encontro levando a Boa Nova –, e no cuidado ambiental, pauta que a esquerda sequestrou, mas que é profundamente cristã, já que Deus deu ao homem a obrigação de “cuidar do jardim”. Estou de acordo com tudo isso. Mas Demos II também diz que Francisco será lembrado por sua intolerância diante de discordâncias, mesmo respeitosas, e por uma ambiguidade em questões de fé e moral que deixa a confusão crescer entre os fiéis. E me entristece dizer que também concordo com essa avaliação.

Assim como também concordo com parte do programa listado por Demos II: a Igreja não é uma democracia, mas também não é uma autocracia; ela precisa lembrar ao mundo que sim, Deus é infinitamente misericordioso, mas também é infinitamente justo, e que a opção deliberada pelo pecado cobra seu preço; precisa pregar a mensagem salvadora de Cristo sem acomodações às demandas do tempo presente e, principalmente, sem ambiguidades, especialmente nos aspectos de seu ensinamento moral que estão sob maior ataque hoje. O autor anônimo ainda afirma que o Colégio de Cardeais existe não para bajular o papa, mas para aconselhá-lo, e por isso o pontífice precisa escolher homens capazes e santos; de nada adianta diversificar geograficamente o colegiado para colocar nele alguma nulidade ou alguém de ortodoxia duvidosa (sim, “primeiro cardeal luxemburguês da história”, é contigo).

Onde eu discordo radicalmente de Demos II é no trecho sobre as viagens pontifícias. Diz ele: “Viagens globais funcionaram tão bem com João Paulo II por causa de seus talentos pessoais únicos e por causa de sua época. Mas os tempos e circunstâncias mudaram. A Igreja na Itália e na Europa – a casa histórica da fé – está em crise”, e depois afirma que o Vaticano precisa de uma limpeza organizacional, moral e financeira, e que o próximo papa precisa estar diretamente envolvido nisso. Não me parece que seja dessa forma. Demos II, pelo jeito, considera que a tal “limpeza” e as viagens pontifícias são algo mutuamente excludente, como se um papa só conseguisse prestar atenção em uma coisa ou outra. Mas Francisco viajou bastante e mesmo assim levou a cabo uma reforma da Cúria Romana – se foi uma boa reforma ou não, este é outro papo. De qualquer forma, a “limpeza” será bem mais simples se, com o perdão da repetição, o papa colocar gente capaz e santa nos lugares certos, gente que ame a Igreja. Assim ele não precisará ficar microgerenciando cada aspecto da vida no Vaticano.

Além disso, o papa é bispo de Roma, soberano da Cidade do Vaticano, mas também é o líder da Igreja em todo o mundo. As viagens mostram ao papa a riqueza e a variedade da Igreja, e mostram aos católicos que o papa está junto deles. Mesmo países secularizados ou onde católicos não passam de minorias são chacoalhados por uma visita papal, e isso pode valer muito bem para essa Europa onde a fé está em declínio. João Paulo II tinha, de fato, um “talento pessoal único”, mas quem poderia dizer que as viagens de Bento XVI – cujo perfil pessoal era bem diferente – foram menos bem-sucedidas? Arrisco dizer que, a não ser que haja impedimentos muito graves a grandes deslocamentos, as viagens se tornaram parte essencial do exercício do papado.

Já disse aqui e repito que minha oração por Francisco é aquela da Igreja, que viva por muitos anos – e que, além disso, faça um pontificado não como eu quero, nem como ele quer, mas como Deus quer. No entanto, chegará o dia da sucessão, mais cedo ou mais tarde. E aí, com exceção deste ponto sobre as viagens, creio que as prioridades estabelecidas por Demos II em sua carta são bem adequadas.

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