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O papa Francisco concede entrevista no avião papal, ao retornar da viagem à Mongólia, em 4 de setembro.
O papa Francisco concede entrevista no avião papal, ao retornar da viagem à Mongólia, em 4 de setembro.| Foto: Ciro Fusco/EFE/EPA/Pool

O papa Francisco tem o hábito, em suas viagens ao exterior, de encontrar os jesuítas que vivem e trabalham no país que o pontífice está visitando. Nessas ocasiões, eles são encorajados a perguntar ao papa o que bem entenderem, e tais conversas têm sido registradas e publicadas por outro jesuíta, o padre Antonio Spadaro, na revista La Civiltà Cattolica. Quando Francisco foi a Portugal para a Jornada Mundial da Juventude, seguiu o roteiro e, em 5 de agosto, esteve em uma escola administrada pelos jesuítas para uma conversa.

A transcrição do encontro com os jesuítas portugueses (no site da revista, em italiano e em inglês) fez barulho internacional especialmente pelas críticas do papa a setores do catolicismo norte-americano, que Francisco considera estarem marcados pelo chama de “indietrismo”, um neologismo com a palavra italiana indietro, que significa “para trás”. Outro dia eu tentei traduzi-lo como “retrocessismo”, mas talvez não seja bem essa a ideia. Francisco fala de quem olha para o passado querendo que as coisas sejam hoje como eram antigamente (ou seja, é mais que um mero saudosismo), e quem faz isso certamente não enxerga tal revival como retrocesso, e sim como uma coisa boa. Talvez seja melhor falar em “paratrasismo”. De qualquer maneira, para leitores mais atentos uma outra parte daquela mesma resposta chamou mais ainda a atenção. Uso a tradução do site dos jesuítas de Portugal:

“É preciso compreender que há uma evolução correta na compreensão das questões de fé e de moral, desde que se sigam os três critérios que Vicente de Lérins já indicava no século 5.º: que a doutrina evolui ut annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate. Por outras palavras, a doutrina também progride, dilata-se com o tempo, consolida-se e torna-se mais firme, mas sempre progredindo. A mudança desenvolve-se da raiz para cima, crescendo com estes três critérios.

São Vicente de Lérins disse, sim, que a doutrina se desenvolve, por exemplo à medida que vamos compreendendo melhor certos conceitos, mas não que ela muda ou pode ser revertida

Passemos ao concreto. Hoje é pecado possuir bombas atômicas; a pena de morte é um pecado, não pode ser praticada, e antes não era assim; quanto à escravatura, alguns papas antes de mim toleravam-na, mas hoje as coisas são diferentes. Portanto, muda-se, muda-se, mas com estes critérios. Gosto de usar a imagem ‘para cima’, ou seja, ut annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate. Sempre nesse caminho, partindo da raiz, com uma seiva que sobe e sobe, e é por isso que a mudança é necessária.

Vicente de Lérins faz a comparação entre o desenvolvimento biológico do homem e a transmissão de uma época a outra do depositum fidei, que cresce e se consolida com o passar do tempo. Eis que a compreensão do homem muda com o tempo, assim como a consciência do homem se aprofunda. As outras ciências e a sua evolução ajudam também a Igreja neste crescimento da compreensão. A visão da doutrina da Igreja como um monólito é errada.”

Tem um problema grande aí. Isso de “a ação tal hoje é pecado, mas antes não era” não existe. Como também não existe o inverso, algo ser pecado até ontem e hoje não ser mais. Admitir que possa ser assim é admitir que a Igreja pode ensinar o erro em matéria de fé e moral. E é aqui que entra São Vicente de Lérins: ele disse, sim, que a doutrina se desenvolve, por exemplo à medida que vamos compreendendo melhor certos conceitos, mas não que ela muda ou pode ser revertida, como escreve Phil Lawler no site Catholic Culture, mostrando por que é tão complicada, por exemplo, a terminologia usada na alteração do trecho do Catecismo sobre a pena de morte.

Até 2018, o parágrafo 2267 dizia que “o ensino tradicional da Igreja não exclui, depois de comprovadas cabalmente a identidade e a responsabilidade do culpado, o recurso à pena de morte, se essa for a única praticável para defender eficazmente a vida humana contra o agressor injusto”; depois, passou a dizer que “a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que ‘a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa’”. Uma coisa seria dizer que a pena de morte é em tese aceitável, mas apenas sob certas condições – seu uso, portanto, seria pecado quando essas condições não se cumprem, e isso em qualquer época –, e acrescentar que hoje essas condições não existem mais e por isso a pena de morte se torna desnecessária e sempre pecaminosa; outra coisa é dizer que ela é intrinsecamente má. Ainda que não tenha sido essa a intenção de Francisco ou de quem quer que tenha sido o responsável pelo novo texto do Catecismo, a redação atual do parágrafo 2267 acaba deixando implícito que “o ensino tradicional da Igreja”, ao “não excluir (...) o recurso à pena de morte”, não estava simplesmente fazendo uma avaliação circunstancial que não se aplicaria mais nos dias atuais; na verdade, ele estaria errado por contrariar o Evangelho. E até mesmo insinuar uma coisa dessas é muito, muito complicado.

Lawler recomenda um outro artigo, ainda mais esclarecedor, de Thomas Guarino no First Things. Guarino, sacerdote e estudioso da obra de São Vicente de Lérins, descreve as disputas teológicas em curso durante a vida do santo e que o levaram a desenvolver suas ideias sobre o desenvolvimento da doutrina. Novamente: desenvolvimento, não reviravolta. Explica onde o papa Francisco cita São Vicente de forma acertada, e onde o pontífice usa as palavras do santo de uma forma que ele não endossaria. “Eu aconselharia o papa a evitar citar São Vicente em apoio a reversões, como em seu ensinamento de que a pena de morte é ‘per se contrária ao Evangelho’. O entendimento orgânico e linear que São Vicente tem sobre o desenvolvimento não inclui a reversão de posições anteriores”, diz Guarino.

Deus queira que isso de “hoje é pecado, antes não era” seja apenas mais uma das hipérboles de Francisco quando fala de forma espontânea. Porque essa ideia não é só uma distorção do que dizia São Vicente de Lérins; é algo que pode colocar em xeque a confiança de muitos no ensinamento moral da Igreja. Rezemos, portanto, pelo Santo Padre para que não deixe de cumprir a missão que Jesus deu a Pedro, a de confirmar os irmãos na fé.

Deus queira que isso de “hoje é pecado, antes não era” seja apenas mais uma das hipérboles de Francisco quando fala de forma espontânea

É “sacrilégio” que chama, não é?

As imagens correram o país. Durante o funeral do cardeal Geraldo Majella Agnello, em Londrina, no início da semana passada, o sheik Ahmad Saleh Mahairi entra na fila de comunhão, recebe a hóstia das mãos de dom Geremias Steinmetz, finge que leva o Corpo de Nosso Senhor à boca, mas depois volta para seu lugar com a Eucaristia ainda nas mãos. Diante da repercussão, a Arquidiocese de Londrina soltou uma “nota de esclarecimento” que não esclarece coisa nenhuma; na verdade, melhor seria não terem dito nada.

Que o líder muçulmano estivesse na missa como amigo que era de dom Geraldo Majella, ótimo; mas citar Nostra aetate e Desiderio desideravi para defender que não tem problema nenhum dar a comunhão a um muçulmano é de uma cara de pau fora do comum. O Código de Direito Canônico é claríssimo ao dizer, no cânone 842, que “quem não tiver recebido o batismo não pode ser admitido validamente aos demais sacramentos”; e, no cânone 844, que “os ministros católicos só administram licitamente os sacramentos aos fiéis católicos, os quais de igual modo somente os recebem licitamente dos ministros católicos”. Mesmo um católico não pode comungar se “estiver consciente de pecado grave”, necessitando “fazer previamente a confissão sacramental” (cânone 916). E, por fim, as circunstâncias em que um não católico pode receber a Eucaristia são pouquíssimas e, ainda assim, se aplicam apenas a outros cristãos. Nem Nostra aetate nem Desiderio desideravi pretenderam revogar essas regras.

Ao dizer que deu a comunhão a um muçulmano – alguém que nem mesmo reconhece a Cristo como o Filho de Deus, mas apenas “como um profeta”, diz a nota da arquidiocese – e que não vê problema algum nisso, dom Geremias faz pouco de todos os católicos que lutam todo santo dia para se manter em estado de graça e, assim, serem dignos de receber o Corpo de Cristo, além de desprezar completamente o alerta de São Paulo em 1 Coríntios 11,27-29. Validou um absurdo sem tamanho e deixou a porta escancarada para muitas outras comunhões indignas por aí.

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