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Assim como fizera com São João Paulo II, 20 anos atrás, Deus deixou o papa Francisco celebrar a Páscoa antes de chamá-lo para Si. Todos os que nos alegramos ao ver o papa deixando o hospital, depois de um longo período de internação, sabíamos que a recuperação não era simples, mas também esperávamos que ele permanecesse conosco ao menos por mais algum tempo, especialmente ao vê-lo retomando lentamente suas atividades, e aparecendo sem aviso na Basílica de São Pedro. Mas Deus quis outra coisa, e com isso termina um pontificado de 12 anos marcado por vários ineditismos.
Todo – absolutamente todo – pontificado tem seus pontos altos e baixos, seus acertos e erros, e para isso não importa se o papa é um santo, um pecador ou um gênio; ele é humano, e isso já nos diz o que precisamos saber. Sendo bom, comete seus erros; sendo mau, não deixa de contar com a graça divina que o assiste em seu ofício, e por isso pode agir bem. Francisco não foi diferente, mas os equívocos deixarei para outra oportunidade. Hoje é o momento de recordar o bom legado deixado por Francisco, e por isso escolhi cinco itens em que o papa acertou, em minha opinião – talvez não sejam os maiores acertos, mas são aqueles que considero relevantes, mesmo quando não parecem ser tudo isso –, e começo justamente com dois assuntos para os quais muita gente torce o nariz.
1. A ênfase nos pobres e marginalizados
O próprio Francisco disse, ainda no início do pontificado, que escolheu esse nome papal quando seu amigo brasileiro Cláudio Hummes lhe sussurrou ao ouvido, ainda na Capela Sistina: “não se esqueça dos pobres”. Vindo de um continente marcado pela pobreza e pela forte desigualdade social, Francisco levou o conselho à risca e tratou do tema inúmeras vezes. Se acrescentarmos a defesa dos migrantes – e Francisco governou a Igreja em um período de forte turbulência migratória na Europa e nos Estados Unidos –, temos aí um belo quadro em defesa dos mais vulneráveis. Podemos discordar de algumas falas pontuais, ou de momentos em que o papa parece inclinar-se para soluções das quais não gostamos, mas o cuidado com o pobre e o estrangeiro é tão, mas tão bíblico que nos é ordenado diretamente por Deus no Antigo e no Novo Testamento, do “não maltratarás o estrangeiro e não o oprimirás” de Êxodo 22 ao “tive fome e me destes de comer” de Mateus 25. Não há “precisamos ensinar a pescar” que justifique fechar os olhos ao pobre, nem soberania nacional que justifique tratar de forma indigna o migrante, mesmo ilegal, que muitas vezes deixa sua terra por puro desespero.
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2. A proteção do meio ambiente
Essa pauta, junto com o combate à pobreza e à desigualdade, é daquelas que a esquerda sequestrou para si – ou melhor, que nós deixamos a esquerda sequestrar para si. Se a maioria das pessoas, quando ouve falar em preservação ambiental, lembra da Greta, eu lembro que “o Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim do Éden, para cultivar o solo e o guardar” (Gênesis 2,15). Cuidar daquilo que Deus criou é uma das funções do ser humano, e o papa Francisco se encarregou de nos lembrar disso. Sua encíclica ambiental, Laudato Si’, foi criticada à direita por citar os dados do IPCC, mas, independentemente de eles estarem errados ou certos a respeito do papel do homem nas mudanças climáticas, o fato de não termos o direito de dispor da criação como bem entendemos, explorando-a inconsequentemente, é uma verdade bíblica. Além disso, o centro da encíclica é justamente sua parte menos citada: o capítulo em que o papa trata a crise ambiental como consequência de uma crise ainda mais profunda, a crise moral da humanidade – essa é a parte que a esquerda não gosta de lembrar, a crítica do papa ao abortismo, ao antinatalismo e ao ambientalismo bocó que trata o ser humano como uma “praga”.
3. As palavras fortes em defesa da vida
O papa nos deu um susto em sua primeira grande entrevista, ao jesuíta Antonio Spadaro, quando disse que “não podemos insistir somente sobre questões ligadas ao aborto, ao casamento homossexual e uso dos métodos contraceptivos”, e que “uma pastoral missionária não está obcecada pela transmissão desarticulada de uma multiplicidade de doutrinas a impor insistentemente”. Para muitos, ficou a impressão de que ele estava relativizando a defesa da vida desde a concepção. Mas aos poucos fomos percebendo melhor o que ele queria dizer. Francisco jamais deixou o nascituro de fora em sua frequente denuncia da “cultura do descarte”, e muitas vezes comparou quem faz abortos a “matadores de aluguel” – eu não me lembro de João Paulo II e Bento XVI, ambos grandes lutadores pela vida, terem feito uma analogia em termos tão fortes, a ponto de ter causado revolta na Bélgica, em 2024.
4. A Igreja como “hospital de campanha”
Esse tema foi um dos preferidos de Francisco desde o início de seu pontificado, bastante ligado à sua concepção de “Igreja em saída”. Para o papa, a Igreja era o lugar por excelência “para curar as feridas quer espirituais quer físicas” das pessoas, oferecendo-lhes a ajuda material, sim, mas especialmente a ajuda espiritual, sem a qual a Igreja vira apenas ONG – outra das grandes ideias do papa. Acolher a pessoa, no entanto, não deve ser confundido com acolher quaisquer comportamentos errados; assim como muita gente cita o “nem eu te condeno” de Jesus à adúltera omitindo o “vai e não peques mais”, muitos citam o “quem sou eu para julgar?” do papa Francisco esquecendo-se de que ele havia colocado uma condicional antes, “se uma pessoa é gay e procura o Senhor e tem boa vontade”, o que indica o desejo de fazer o que Deus lhe pede, ainda que custe.
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5. O apelo à redescoberta da fraternidade
A terceira encíclica de Francisco, Fratelli tutti, é um bálsamo em tempos de polarização, em que amizades e até famílias se desmancham por causa de preferências político-partidárias. À epidemia de individualismo corrente, Francisco contrapõe uma redescoberta da noção de “bem comum” (que não tem nada a ver com o coletivismo esquerdista), sem a qual será impossível resolver problemas sociais graves e voltar a enxergar o ser humano pelo que ele é, e não por sua “utilidade”. Para a fúria dos relativistas, Francisco ainda lembra que esse objetivo só pode ser alcançado se as pessoas aceitarem a existência de verdades morais objetivas: “Uma sociedade é nobre e respeitável nomeadamente porque cultiva a busca da verdade e pelo seu apego às verdades fundamentais”, que “não mudam, que eram verdade antes de nós e sempre o serão”.
Faixa bônus: o conselho para lermos mais literatura
Um textinho menor, mas que eu achei excelente, foi uma carta que seria inicialmente direcionada apenas aos sacerdotes e seminaristas, mas que acabou se tornando um conselho geral para todos nós: buscar também nos clássicos da literatura (e não apenas nos bons livros de leitura espiritual) o aprendizado sobre o ser humano e sobre as “verdades fundamentais” que mencionei no parágrafo anterior. Nesses 12 anos, o papa Francisco nos deu uma série de boas recomendações de leitura, incluindo distopias como O Senhor do Mundo e autores como Dostoievski – um dos que melhor compreenderam a alma humana, ao lado de Shakespeare. Na literatura, diz o papa, aprendemos a nos colocar no lugar do outro, a enxergar o mundo com outros olhos, a entender situações que talvez nunca cheguemos a viver pessoalmente, mas que são as aflições de tanta gente – para quem a Igreja tem de ser “hospital”.