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O papa Francisco encontra membros do novo Dicastério para o Diálogo Inter-Religioso na segunda-feira, 6 de junho de 2022.
O papa Francisco encontra membros do novo Dicastério para o Diálogo Inter-Religioso na segunda-feira, 6 de junho de 2022.| Foto: EFE/EPA/Vatican Media handout

Desde o último domingo, quando a Igreja celebrou o Pentecostes, está em vigor a nova organização da Cúria Romana, desenhada pelo papa Francisco na constituição apostólica Preadicate Evangelium (na falta de uma tradução oficial em português, deixo a única versão disponível no site do Vaticano, em italiano), que substitui a Pastor Bonus, de 1988, publicada por São João Paulo II. De início, na reorganização da “esplanada dos ministérios” vaticana, chama a atenção o fim da antiga hierarquia entre congregações, conselhos e comissões; agora, com algumas poucas exceções, há apenas “dicastérios”, destacando-se o da Evangelização, que une o antigo conselho para a Nova Evangelização e a centenária Propaganda Fide. Muitos outros dicastérios, no entanto, mantêm a estrutura e as funções de seus órgãos predecessores.

A Praedicate Evangelium afirma que, em vez de funcionar apenas a serviço do papa, as instituições da Cúria Romana também servirão às dioceses e conferências episcopais. É o tipo de coisa que só descobriremos na prática como (e se) funciona com o passar do tempo. Mas em muitos outros pontos a reforma é bem interessante e vejo itens bastante positivos nela, como o fato de, agora, quase todas as posições na Cúria, inclusive de comando, poderem ser ocupadas por leigos, bem como o limite de cinco anos, renováveis por mais cinco, para padres e religiosos, que depois desse período retornam para suas dioceses ou institutos/sociedades (artigo 17, parágrafo 4.º), o que bota um freio em eventuais carreiristas.

Quanto aos leigos, me parece evidente que a graça que Deus concede no sacramento da Ordem, em qualquer de seus graus, se refere ao pastoreio de almas, não a cuidados com dinheiro ou papelada, nem a certas qualidades profissionais. Certamente não é bom que um padre enterre os outros talentos que tem só porque foi ordenado; bons professores, teólogos, filósofos, canonistas etc. sempre serão necessários para o bem da Igreja, mas também me parece evidente que há muitos trabalhos na estrutura vaticana que um leigo devidamente capacitado e imbuído de um profundo amor pela Igreja pode realizar tão bem ou melhor que um padre, bispo ou mesmo cardeal.

Todo esse festerê em cima da reforma da Cúria me parece perder de vista que o papa é o pastor da Igreja universal, não um CEO

A respeito da limitação de tempo que um padre ou religioso deve passar na Cúria, tenho para mim que, quando Deus chama alguém ao sacerdócio, pretende que o padre esteja a serviço do seu rebanho, em vez de passar a vida toda enfiado atrás de uma escrivaninha vaticana. Como afirmei, não se trata de enterrar qualidades profissionais ou intelectuais, pois também elas são colocadas a serviço da Igreja, mas um sacerdote que deixa em segundo plano aquilo que só ele pode fazer, como trazer Cristo ao povo na eucaristia, ou ser Cristo para o penitente que se confessa, está desperdiçando a graça que recebeu. Menos mal que a Praedicate Evangelium deixa claro que “em conjunto com o serviço prestado à Cúria Romana, quando for possível e sem prejudicar seu trabalho, os clérigos também se empenhem no cuidado das almas” (artigo 6.º). No entanto, fico pensando aqui comigo que, se o novo limite de mandato para os prefeitos dos dicastérios já estivesse em vigor na época de João Paulo II, a Igreja teria deixado de contar com muitas realizações notáveis de prefeitos que passaram longos períodos em seu posto, como o próprio Joseph Ratzinger.

Meu problema não é com a reforma em si, mas com a ênfase que andam colocando nela, às vezes até com um certo clima de “agora vai”. Mas “vai” o quê? A debandada de fiéis será estancada? Os vergonhosos abusos cometidos pelos membros podres do clero cessarão? A fé voltará a permear a sociedade? A própria constituição apostólica meio que reflete esse tipo de esperança quando diz, citando um discurso de 2015 do papa Francisco, que “a reforma não é um fim em si mesma, mas um meio para dar forte testemunho cristão, para favorecer uma evangelização mais eficaz, para promover um espírito ecumênico mais fecundo, e para encorajar um diálogo mais construtivo com todos” (artigo 12).

E aí, que me perdoem o papa e todos os que compartilham dessa espécie de “fé na burocracia”, mas o que vai resolver a crise na Igreja e renovar o impulso evangelizador não é a reforma da Cúria; o que realmente vai fazer a diferença é a santidade pessoal, a defesa ao mesmo tempo firme e serena da doutrina, a retidão moral, o zelo litúrgico e apostólico, o incentivo às devoções populares, a coragem de defender a fé na arena pública... a Cúria pode ter a estrutura mais otimizada do mundo, mas se colocarem nela gente sem fé como certos bispos alemães atuais, não vão conseguir absolutamente nada.

Por isso também me incomoda que descrevam a reforma da Cúria como sendo a grande realização de Francisco, como se ele tivesse sido eleito em 2013 para fazer exatamente isso (e há quem especule que, tendo concluído a tarefa, o papa estaria pronto para renunciar, talvez no consistório de agosto...). É uma meta pobre demais para alguém cuja principal missão é confirmar os irmãos na fé. E olhem que há muito a destacar de positivo no pontificado de Francisco, e que poderia ser tratado como a sua grande marca: sua ênfase nos pobres e nos demais “descartados” pela sociedade (e, se você acha que isso é menos importante que temas como a defesa da vida e da família, anda precisando reler Mateus 25,31-46), ou sua atuação na questão ambiental, na preservação da “casa comum” – esqueçam a forma como a esquerda sequestrou a pauta ambiental, que também tem de ser uma preocupação conservadora (se o leitor não quiser crer em Francisco, que ao menos creia em Roger Scruton...); leiam, por exemplo, o capítulo 3 da Laudato Si’, em que o papa descreve a crise ambiental como consequência de uma crise maior ainda, a crise moral.

Todo esse festerê em cima da reforma da Cúria me parece perder de vista que o papa é o pastor da Igreja universal, não um CEO. Claro, tudo que ajude o papa no governo da Igreja é útil, mas uma reorganização administrativa é apenas meio, e um meio que pode ser totalmente ineficaz sem gente boa e santa nos lugares certos. Disso dependerá o sucesso ou o fracasso da reforma.

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