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O cardeal Pierbattista Pizzaballa, patriarca latino de Jerusalém (em foto de 2022)
O cardeal Pierbattista Pizzaballa, patriarca latino de Jerusalém (em foto de 2022), se ofereceu para trocar de lugar com reféns israelenses sequestrados pelo Hamas.| Foto: Sara Gómez Armas/EFE

Esta terça-feira foi escolhida pelos líderes cristãos da Terra Santa – não apenas os católicos, mas também protestantes e ortodoxos – como um dia de oração pela paz na região, abalada pelo brutal ataque terrorista do Hamas no último dia 7. A retaliação israelense, com bombardeios aéreos e uma iminente invasão terrestre, pode causar uma catástrofe humanitária se não for bem conduzida, seja pelas baixas civis – inevitáveis, já que os palestinos são usados como escudo humano pelo Hamas –, seja pelas consequências de um bloqueio total que impede a entrada de alimentos, medicamentos e ajuda aos palestinos, especialmente os que resolveram deixar a Cidade de Gaza, atendendo ao pedido israelense e desobedecendo o Hamas, que precisa manter a cidade povoada para com isso ter muitos cadáveres para exibir ao mundo. E o Vaticano foi pego no meio do fogo cruzado da guerra midiática, um pouco pelo que líderes católicos disseram, e um pouco pelo que outros gostariam que tivesse sido dito.

O governo de Israel não gostou do que o papa Francisco afirmou no Angelus deste domingo, e o ministro das Relações Exteriores do país, Eli Cohen, telefonou ao arcebispo Paul Gallagher, o “número dois” da Secretaria de Estado, para deixar isso bem claro. “É inaceitável fazer uma declaração demonstrando preocupação principalmente com os civis de Gaza enquanto Israel está enterrando 1,3 mil cidadãos assassinados”, disse o ministro, segundo comunicado da própria chancelaria israelense. Cohen ainda disse a Gallagher que espera uma “condenação clara e inequívoca” do terrorismo do Hamas.

Mas convenhamos, o papa disse algo errado? Não, não disse. Pediu a libertação dos reféns israelenses levados pelo Hamas, disse que os civis precisam ser poupados, e que os palestinos inocentes precisam receber a ajuda humanitária, que só pode vir com o estabelecimento de corredores de ajuda. E disse isso porque, neste exato momento, os mais vulneráveis são justamente os civis palestinos que não querem nada com o Hamas, querem apenas viver em paz, trabalhar e cuidar de suas famílias. No domingo anterior, dia seguinte ao ataque, as palavras do papa no Angelus foram dirigidas às famílias dos israelenses vitimados pelo terror: “Expresso a minha proximidade às famílias das vítimas, rezo por elas e por todos aqueles que estão a viver horas de terror e de angústia”.

As declarações do papa não estabelecem equivalência moral entre Israel e Hamas, mas manifestam, sim, preocupação igual com os inocentes que sofrem de ambos os lados e que são as principais vítimas do conflito

Como se não bastasse, na audiência do dia 11, além de pedir a libertação dos reféns, o papa afirmou, com todas as letras, que “quem é atacado tem o direito de se defender”, ressaltando apenas sua preocupação com o efeito do bloqueio a Gaza sobre os civis inocentes palestinos. A declaração foi elogiada pelo embaixador de Israel junto à Santa Sé, Raphael Schutz, em entrevista ao site Crux. Dois dias depois, foi a vez de o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado, ressaltar o direito de Israel a se defender da ameaça terrorista em entrevista ao Vatican News; Parolin ainda visitou a embaixada israelense no Vaticano.

O que me parece é que a diplomacia israelense está esperando um alinhamento incondicional do papa com Israel, quando na verdade o papel do pontífice é outro. Suas declarações não estabelecem equivalência moral entre Israel e Hamas, mas manifestam, sim, preocupação igual com os inocentes que sofrem de ambos os lados e que são as principais vítimas do conflito. Não podemos esquecer que Francisco tem laços fortíssimos com a comunidade judaica – quando era arcebispo de Buenos Aires, cultivou uma amizade especial com o rabino Abraham Skorka, com quem escreveu livros e gravou programas de televisão. “O papa Francisco foi o primeiro pontífice a depositar um buquê de flores no túmulo de Theodor Herzl, o pai do sionismo político, homenageando assim o movimento que recriou a cultura judaica em sua antiga pátria”, escreveu Skorka no Vatican News, por ocasião dos dez anos do pontificado de Francisco.

No entanto, tenho de admitir que algumas manifestações dos patriarcas e chefes de igrejas na Terra Santa não foram tão felizes. No dia dos atentados terroristas do Hamas, o comunicado adotou um tom bastante genérico, falando na “cessação de toda a violência e atividades militares que trazem dor a civis tanto palestinos quanto israelenses”, condenando “inequivocamente qualquer ato contra civis, independentemente de sua nacionalidade, origem étnica ou fé religiosa” e afirmando rezar “para que todas as partes envolvidas ouçam esse chamado pelo imediato fim da violência”. No dia em que o comunicado foi publicado, Israel ainda vivia o horror e lutava para mandar os terroristas de volta para Gaza; o momento não pedia referências genéricas, mas uma menção explícita aos terroristas e solidariedade para com os israelenses. E não me surpreende que o timing do apelo ao cessar-fogo tenha sido interpretado pelos israelenses como uma afirmação de que eles tinham de apanhar e ficar quietos, já que não houve nem mesmo a menção ao direito à autodefesa citado pelo papa. Da mesma forma, o embaixador Schutz criticou duramente um segundo comunicado, datado do dia 13, e que trata da iminente crise humanitária em Gaza, onde há comunidades de cristãos árabes.

Ainda assim, não me parece que os líderes religiosos na Terra Santa tenham “tomado o lado” dos palestinos, muito menos dos palestinos terroristas. Sua preocupação é com a vida dos civis inocentes, embora também os haja do outro lado – é uma pena que não haja menção à libertação dos reféns, outro ponto mencionado pelo papa. A impressão que tenho é a de que houve apenas um hiperfoco na situação dos civis palestinos, que de fato merece atenção, e não uma má vontade da parte dos patriarcas e chefes de igrejas em relação a Israel. Prova disso é que, na segunda-feira, o patriarca latino de Jerusalém, cardeal Pierbattista Pizzaballa, se ofereceu para tomar o lugar dos reféns israelenses sequestrados pelo Hamas.

À medida que o teatro de guerra se desloca para o território palestino, será previsível que as preocupações da Igreja e do papa se voltem cada vez mais para os civis inocentes em Gaza, e haja novos apelos para que eles não se tornem vítimas do conflito – aliás, repito que o Hamas tem muito mais interesse que Israel em ver inocentes palestinos mortos. Não há por que repreender o Vaticano e Francisco por isso; estão dizendo o que tem de ser dito sobre os horrores da guerra. Não negam o direito de Israel a se defender dos terroristas, mas afirmam que autodefesa não é vingança irrefreada, e nisso apenas repetem a longuíssima tradição cristã a respeito dos princípios da guerra justa.

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