Ilustração: Felipe Lima| Foto:

As paredes estão em pé, em tão bom estado quanto podem estar paredes velhas de séculos que resistiram a mais um incêndio. Quando o Brasil ainda não tinha esse nome e aparecia nos mapas como “terra incógnita”, os franceses ergueram a catedral gótica em uma ilhota no leito do rio Sena. Ela teve dias bons e dias ruins, como todos nós. Em um país católico como a França, as grandes catedrais estão por toda a parte. A Notre-Dame não é a mais bonita, a mais alta, a mais imponente. Se Napoleão Bonaparte a escolheu para sua coroação foi para romper com a tradição e marcar o início de uma nova era. Os reis da França eram coroados na catedral de Reims, mas Bonaparte não era um membro da monarquia. Ele estava inaugurando sua própria dinastia e precisava de novos simbolismos.

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A já então velha igreja era considerada feia. O gótico, com suas paredes de pedra escura, estava fora de moda. Para a solenidade, cobriram tudo que foi possível com cortinas e tapeçarias. Mesmo assim, o pintor Jacques-Louis David achou necessário enfeitá-la ainda mais quando registrou o momento em que Napoleão levanta a coroa sobre a cabeça de sua esposa Josefina. O quadro pode ser visto no Louvre e nele a Notre-Dame está irreconhecível.

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A cena da coroação conforme registrada por Jacques-Louis David é recontada de forma original e delicada no filme Austerlitz, de Abel Gance. O imperador e a nobreza estão na Notre-Dame para o grande momento. Sozinhos no Palácio das Tulherias, os serviçais ouvem um oficial que usa uma maquete da catedral e bonecos para contar a eles o que está acontecendo naquele momento, passo a passo. Todos vibram como se estivessem ao pé do altar, inclusive nós que vemos o filme em nossas casas.

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Gosto da forma como Victor Hugo a descreveu em O Corcunda de Notre-Dame: “Vasta sinfonia de pedra”. “Sobre cada pedra, de cem maneiras se vê brotar a fantasia do artesão disciplinado pelo gênio do artista.” No texto, ele segue registrando as mudanças que a catedral sofreu ao longo do tempo, a mais curiosa delas o sumiço da escada que era necessário subir para entrar no templo. Os onze degraus desapareceram conforme o solo da ilha foi se elevando por sucessivas pavimentações.

Ninguém atravessa intacto alguns anos de vida, quanto menos séculos. A Catedral de Nossa Senhora de Paris foi sendo alterada ao longo do tempo por reformas, modernizações, incêndios, por bispos que acreditavam ter tido uma ótima ideia para melhorá-la, por arquitetos competentes e outros apenas pretenciosos. Ela não é um museu, ainda que certamente a maioria dos que entram lá como turistas a tratem como tal.

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A Notre-Dame é habitada por figuras feias e assustadoras. Tenho uma favorita: um homem-macaco alado, cara de símio, corpo humano e asas de anjo. Apoiado em um balcão, ele admira Paris com olhar sonhador. O homem-macaco é uma quimera, palavra linda, que designa uma estátua que enfeita um edifício. Na Notre-Dame as quimeras fazem companhia às gárgulas, que também têm forma de animais, sempre de boca escandalosamente abertas para vomitarem a água da chuva. A gárgula é um cano disfarçado de animal, um acabamento sofisticado para a calha que livra a estrutura da igreja da água da chuva.

Do que eu gosto mesmo é das palavras: gárgula e quimera.

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Outra palavra bonita relacionada à Notre-Dame que descubro ao ler sobre o incêndio. A estrutura que sustentava a cobertura da Notre-Dame era chamada de “floresta” porque havia sido construída com centenas de carvalhos que foram derrubados e cortados como vigas. As vigas formavam uma espécie de teia gigantesca que segurava o teto.  Segundo um livreto que guardei de uma visita à igreja, a maior parte dessas árvores foi cortada entre os anos 1160 e 1170.

Me informa a página do Serviço Nacional de Florestas que o carvalho é a árvore mais comum da França, nativa de quase todas as regiões. Em 1669, o governo francês fez reflorestamentos de carvalhos para atender o consumo de madeira. Alguns bosques remanescentes daqueles reflorestamentos ainda estão de pé, mais de 300 anos depois.

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O que houve em Paris foi, portanto, um incêndio florestal.

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Quando peguei o tal livreto, eu levava minha mãe para conhecer a Notre-Dame. Não lembro das impressões dela sobre a catedral, o que recordo bem é de seu entusiasmado com a garotada que estava por toda parte, fotografando-se uns aos outros com o vitral de roseta ao fundo (era uma época pré-selfie), conferindo informações nos guias de viagem (ainda se usava os guias Michelin), esparramando-se na calçada em frente. Havia naquele dia um encontro de jovens católicos em Paris. Creio que eles deram a minha mãe um sentido de familiaridade que a catedral gótica de 700 anos não podia lhe dar. Monumentos precisam ser lidos com toda a informação que carregam, caso contrário podem ser assustadores, tediosos ou apenas curiosos.  No caso da Notre-Dame, é o fato de ela ser utilizada como igreja, com missas e concertos, que a mantém viva por tanto tempo.

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É um alívio saber que não sou testemunha do fim da Notre-Dame. Ela segue em pé e será reformada. Leio no Le Monde que providências foram tomadas pelo governo francês: uma “lei Notre-Dame” foi criada para legalizar a arrecadação de recursos e um “monsieur reconstructionfoi nomeado. A torre que caiu diante dos olhos do mundo será substituída por uma nova, cujo desenho será escolhido em um concurso internacional. Talvez optem por algo moderno, que seria a contribuição do século 21 à catedral do século 12.

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