Ilustração: Felipe de Lima Mayerle| Foto:

Quando comecei a trabalhar como repórter, aqui mesmo na Gazeta do Povo, eram frequentes as pautas que me levavam ao Palácio Iguaçu para acompanhar solenidades. Atravessava aquela porta gigantesca que dá acesso à recepção, um pé direito altíssimo que nos faz sentir minúsculos. Diversas vezes vi na recepção uma mulher pequena, de cabelos curtos e roupas simples. Parecia sempre tensa, triste, arredia.

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Perguntei quem era ela e me contaram se tratar da mãe de uma criança levada ilegalmente para Israel e adotada por lá. Aquela mulher ia à sede do governo para aproveitar as solenidades e tentar falar com alguma autoridade ou esperava ser recebida por alguém. Íamos embora, um bando barulhento de repórteres cumprindo suas tarefas, e passávamos de novo por ela, sempre de cabeça baixa, sempre triste. Quantas vezes deve ter perdido a viagem até o Palácio Iguaçu!

Rosilda Gonçalves é mãe de Bruna Vasconcelos, o único dos bebês vendido por Arlete Hilu a estrangeiros que foi localizado e trazido de volta para o Brasil. A história se arrastou por anos, provavelmente por falta de interesse das autoridades e porque devia ter muito funcionário público envolvido no esquema. Arlete Hilu foi presa por tráfico internacional de crianças em 1988 e, solta em seguida, voltou a traficar. Ela e seus cúmplices teriam enviado mais de três mil crianças para o exterior usando documentação falsa. Eram todos recém-nascidos vindos de famílias pobres. Em alguns casos foram entregues pelas mães a falsas assistentes sociais; em outros casos pai e mãe não sabiam que nunca mais veriam seu bebê. Rosilda dizia que, abordada por Arlete Hilu, decidiu que queria ficar com a filha, mas que a mulher raptou a menina. Arlete Hilu cobrava caro dos estrangeiros para arranjar as crianças e providenciar a documentação. Provavelmente tinha negociado Bruna antes de ter o consentimento da mãe e roubou-a para não perder o negócio.

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Hoje aquelas crianças são adultas e querem conhecer suas origens. Informadas da rede de tráfico que operou no Paraná e Santa Catarina durante os anos 80, consideram a possibilidade de que haja alguém chorando por elas no Brasil. Mesmo que tenham sido entregues de fato para adoção, a forma como o processo se deu torna a aceitação muito difícil.

Dizem que a maioria das pessoas que foram adotadas nunca procuram suas origens. Mas as vítimas do tráfico carregam angústias só delas e se movimentam, em agonia, em busca de suas origens. Chegando aqui, descobrem que tudo que diz respeito a elas, cada documento, cada data ou nome, é falso. Recentemente o jornal O Globo registrou a busca de alguns desses jovens apoiados por seus pais adotivos, a maioria israelenses, que afirmam que não sabiam que a adoção se baseava em um crime.

Bruna voltou ao Brasil em 1988 e no ano seguinte fui vê-la na casa da mãe. Na época eu trabalhava no Jornal do Brasil e minha intenção era saber como estava a adaptação da menina de três anos a sua nova/velha família. Ela parecia bem, era bonita, doce. Era a cara da mãe. Rosilda não era mais a mulher assustada e triste que fazia plantão na porta do Palácio Iguaçu. Agora sorria. Ainda era alvo de muitas críticas: muitos brasileiros diziam que devia ter deixado a filha em Israel, com uma família de mais recursos, em um país desenvolvido. Parecia-lhes natural que ela, manicure divorciada, devesse se conformar com a posição de fornecedora de crianças para quem pode pagar. Com tanta má vontade, foi um milagre que tenha trazido a menina de volta. Mas pagou um preço alto por isso. Havia mais torcida contra do que a favor dela. A adolescência de Bruna foi conturbada e ela engravidou – mais motivo para jogarem pedra na Rosilda. Hoje, segundo O Globo, Bruna mora fora do Paraná, foge da imprensa e está tranquila.

A tristeza de Rosilda sentada em uma cadeira na recepção gigantesca do Palácio Iguaçu, aguardando que a autoridade se dignasse a ouvi-la ficou comigo nesses 31 ou 32 anos. Mães, pais que perdem seus filhos não vão voltar a respirar como antes, andar como antes ou sorrir como antes. Vão se esforçar e fazer o melhor que podem, mas carregam uma dor que só eles conhecem. Por isso é desumano querer – como queriam em relação à Rosilda – que uma mãe aceite calada que levem seu filho porque ela é pobre. O erro está na pobreza, não na maternidade.

Arlete Hilu deu entrevistas (e é incompreensível que tenha ficado tão pouco tempo presa!) em que dizia ter feito um favor às crianças ao tirá-las do Brasil. Afirmou que aqui todas se transformariam em marginais. Pobre era sinônimo de marginal para ela que, tendo nascido na classe média, foi conduzida pela ganância e pela falta de escrúpulos a cometer um crime hediondo.

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Boa parte dos mais de três mil “marginais” que Arlete Hilu exportou em troca de dólares agora querem voltar porque a ruptura com suas famílias e com o Brasil se deu de forma torta, criminosa. A adoção, que é um gesto de amor e esperança, foi maculada.

Diante de uma estrutura social e econômica que mantém tantos longe das oportunidades, há dois caminhos: podemos nos revoltar contra a pobreza ou desenvolver preconceito contra o pobre. Trinta anos depois, ainda é preciso refletir sobre qual caminhos estamos tomando.