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A culpa nunca é da vítima
| Foto:
Marcha das Vadias de Curitiba
Para não esquecer

Hoje, dia 3 de abril, é o dia de lembrarmos algo que não precisaríamos, em pleno século XXI, ter de lembrar a ninguém: de que a culpa pelo ato de violência sexual nunca é da vítima. É do autor da violência. Algo que chega a doer de tão óbvio, embora muitos se esqueçam, ou se recusem a aceitar.

Este dia, 3 de abril, é o Dia Internacional Contra a Culpabilização de Vítimas de Crimes Sexuais, e lembra o dia em que a Marcha das Vadias de Toronto se reuniu para protestar contra uma ideia infeliz, arraigada na mente de muitos policiais e cidadãos como um todo, seja no Canadá, na Índia ou no Brasil: de que a vítima de estupro de certa forma colaborou para o estupro. Por estar naquele local, com aquela roupa, bêbada, sozinha, com “atitudes provocantes” e uma série de acusações desumanas e irracionais que contribuem para as várias notícias de estupro que lemos ou ouvimos todos os dias.

Neste dia, o pedido é para que você, que se revolta tanto com essas notícias – e não há dúvidas de que se revolte – pare para pensar de que forma pode estar contribuindo para este estado de coisas. Pense se você já se pegou justificando o mal a uma mulher por conta da roupa que ela vestia. Se por um minuto se esqueceu de que roupa não define caráter, e de que ninguém merece ser vítima de algo tão cruel e desumano quanto a violação do próprio corpo. Pense.

Pense se você já se pegou aliviando a barra de um estuprador porque a mulher que ele atacou estava bêbada. Não falo só do estuprador sem rosto que se esconde embaixo daquele poste sem luz numa rua deserta da periferia da cidade. Mas daquele seu amigo ou conhecido que fez sexo não consentido com uma mulher que bebeu demais e foi embora com ele da festa. Quem nunca ouviu uma história assim e não achou nada demais? Pense.

Pense se você dividiu as mulheres que conhece, pessoalmente ou por outros meios, entre dignas e indignas, e sentiu que aquela incluída na segunda categoria seria menos merecedora de apoio caso viesse a ser abusada, afinal, ela tem vida fácil. Vai à faculdade de roupa curta, adora festas, participou do BBB, posou nua, rebola quando anda, tem um filho com cada homem, é liberal. Pense.

Pense se você sentiu pena daqueles garotos de Steubenville (EUA), que – disseram alguns jornalistas – tiveram a vida “destruída” porque uma “guria bêbada” que fez sexo com eles se irritou e se sentiu ofendidas quando viu que eles haviam filmado o ato, e foi à Justiça. Eram jovens, não sabiam o que faziam, ela os provocou, foi só uma brincadeira infantil, ela mesma não se lembrava de nada até ver o vídeo! Pense.

Pense se você achou um absurdo aquelas duas meninas estupradas por membros da Banda New Hit reclamarem do estupro que sofreram dentro do ônibus da banda – afinal, elas foram lá achando que haveria o quê? Hoje, os homens estão soltos, e elas vivem sob proteção policial. Será que você, sequer por um momento, mesmo tendo pena, não achou que foi algo inevitável e que ela correram o risco, e que não podem reclamar agora? Pense.

Pense se alguma vez você não achou exagero ou até riu de piadas de estupro, seja aquela proferida por um humorista ou por um amigo numa mesa de bar. Se já não achou que as prostitutas são aquele tipo de mulher que nunca poderá reclamar de um estupro, porque estupro contra prostituta não existe. Ou se também já achou um absurdo mulher que processa o marido por estupro quando ele a força a fazer sexo com ele. Pense.

Pense se alguma vez você achou exagero, imoral e nojento aquelas passeatas com mulheres nuas que protestam contra a culpabilização da vítima, aquelas mulheres com seios de fora que querem chamar a sua atenção para um problema sobre o qual nós quase nunca pensamos – a não ser quando sai nas páginas do jornal ou na TV. Nós, que jamais prestaríamos mais de cinco minutos da nossa atenção se elas saíssem vestidas, que não entendemos o pedido de socorro por trás da ironia e do acinte. Pense.

Não é preciso estuprar ou facilitar um estupro para contribuir para esse estado de coisas. Quando entendemos que é normal fazer estes julgamentos, agimos ou deixamos de agir em vários sentidos. Somos mais coniventes com a ação omissa da polícia em atender ou investigar esses crimes. Não lutamos por políticas públicas de acolhimento e proteção das vítimas, sem distinção, seja uma turista americana ou uma menina negra da periferia. Não incentivamos mulheres a denunciar, e ainda fazemos com que elas tenham vergonha ou medo de represálias ou julgamentos. Criamos filhos homens que acham que é normal transar com meninas bêbadas, e filhas que acham que o que houve ali, apesar de doer lá no fundo da alma, é normal.

Nos tornamos policiais omissos, delegados omissos, legisladores omissos, juristas omissos, pais omissos, filhos omissos, médicos legistas omissos, psicólogos omissos, jornalistas omissos, assistentes sociais omissos, advogados omissos, cidadãos omissos. E com essa omissão, violamos a vítima mais uma vez. Embora, ao ler as notícias nos jornais, continuemos a praguejar, a chorar, a lamentar, a nos revoltar. Isso é muito pouco. As vítimas merecem mais. Aliás, não tem nada a ver com merecimento. Tem a ver com direitos e respeito.

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