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Duas visões sobre o veto de Fruet: Entrevista com Xênia Mello
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Mariama Lopes
Xênia Mello

No penúltimo post, o blog discutiu o veto do prefeito Gustavo Fruet (PDT) ao projeto de lei da vereadora Maria Goretti (PSDB) que previa atendimento multidisciplinar ao homem autor de violência doméstica. Na elaboração do post, conversei com a advogada Xênia Mello, que fez críticas ao veto. Publico aqui a íntegra da nossa conversa, para que as leitoras e leitores conheçam melhor a visão de Xênia.

Lembrando que busco aqui colocar a visão das próprias militantes feministas a respeito do veto, com o objetivo de não só dar maior visibilidade às opiniões de quem integra o movimento de mulheres, como também tirar um pouco o foco da visão/posição oficial, que é aquela que geralmente aparece nas matérias feitas a respeito do assunto.

Quem é a Xênia: formada em Direito pela Universidade Federal do Paraná, advogada com atuação na área de violência contra a mulher e transgeneridade. Assessora jurídica da Marcha das Vadias e filiada ao PSOL Curitiba.

Como você analisa o veto do prefeito ao projeto de lei que prevê atendimento ao agressor?

Xênia – Lamentável. O veto é resultado de um contexto político. O Projeto de Lei é de autoria da antiga vereadora Maria Goretti (PSDB). Ela era da bancada oposta à do atual prefeito e seus aliados. Assim, o veto é uma tentativa de impedir o protagonismo de uma lei cuja autoria não é de uma vereadora aliada ao prefeito.

Vejo isso como um panorama muito triste, pois direitos humanos não são objeto de negociação, de embate político, de mesquinhez. Essa politicagem só prejudica as mulheres que são vítimas. Direitos Humanos devem ser garantidos, e o projeto previa isso. Esse projeto de lei está em sintonia com o maior ganho da Lei Maria da Penha, que são “As medidas integradas de prevenção”, e o projeto atua numa perspectiva educativa.

O atendimento interdisciplinar do agressor visa a proteger a mulher das reincidências de violência, contribui para o rompimento do ciclo de violência – que antagoniza vítima e agressor – e sobretudo, enfrenta a violência sob um viés social, e não exclusivamente punitivo, que não apresenta nenhum resultado positivo para a sociedade.

Não podemos esquecer que não é a primeira vez que isso ocorre. A vereadora Professora Josete (PT) tinha um excelente projeto de lei que previa a construção de mais Casas-Abrigos para as mulheres em situação de violência, e o projeto foi arquivado pelos mesmos motivos, pois ela era da bancada de oposição na época.

Os parlamentares apresentam justificativas burocráticas que são infundadas, como a inconstitucionalidade da lei e a questão orçamentária. Se há vontade política, há, sim, meios legais e justos de implementar uma política comprometida com o enfrentamento à violência contra a mulher, e o atendimento interdisciplinar do agressor passa por isso.

É muito triste isso. Nosso prefeito e a Câmara precisam assumir suas responsabilidades, pois, fazendo esses joguinhos políticos, contribuem ainda mais para a violência e assassinatos de mulheres.

A SPM e a prefeitura afirmam que o projeto trata como doente uma pessoa que é criminosa. Afinal, o que seria mais coerente: tratar como um problema criminal, de saúde ou de gênero? Ou os três juntos?

Xênia – Primeiro, essas justificativas todas tentam iludir a população de forma a não perceber o triste jogo político em questão. É importante frisar que agressores que passam por um programa de atendimento interdisciplinar reduzem e até mesmo zeram a reincidência nas agressões, bem como – o que é interessante – passam a atuar de forma mais responsável com a família, não agredindo também os filhos e resolvendo problemas com álcool e drogas.

A Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres da Presidência da República participa de algumas iniciativas idênticas ao projeto de lei vetado no Brasil todo, como é o caso de um projeto na cidade de Nova Iguaçu – RJ. Fica uma situação ruim pois a SPM e a prefeitura assumem uma postura que vai contra a própria politica nacional. E essa afirmação “de que o projeto trata como doente uma pessoa que é criminosa” é um desfavor tão grande, mas tão grande… pois parte de uma visão limitada, preconceituosa e classista. Ignora inúmeras pesquisas que comprovam que atuar de forma educativa no enfrentamento da violência contra a mulher é muito mais efetivo do que o tratamento punitivo isolado.

Não estou defendendo que o agressor não deve ser punido – se ele agrediu, ameaçou, ele cometeu um crime, e deve responder por ele. Mas isso não resolve o problema, pois o agressor cumpre a pena e volta a agredir.

Ainda não se pode ignorar que a grande maioria dos casos de violência contra a mulher ficam impunes, porque a falta de estrutura e profissionais nas delegacias, juizados e Ministério Público não dão conta de toda a demanda. Todo mês são milhares de inquéritos que são arquivados porque os crimes caducaram, crimes que precisam ser investigados e denunciados.

É importante ficar muito claro que garantir um atendimento interdisciplinar do agressor não é tratá-lo como doente. Um profissional da saúde como um psicólogo pode contribuir no enfrentamento da violência, ele tem um papel importante nesse espaço. Ele pode, por exemplo,auxiliar o agressor a investigar as razões das suas ações violentas. Outra coisa que é bem importante é que há inúmeros tipos de violência, como a violência psicológica e simbólica – como gritos, ciúmes que geram controle excessivo da mulher – . Essa violência simbólica não constitui crime, porém, em geral, antecede uma forma mais grave de violência que já é crime, como agressões físicas e assassinato. Assim, o atendimento interdisciplinar do agressor pode atuar no enfrentamento da violência psicológica e simbólica e prevenir uma agressão mais grave.

Parte do movimento de mulheres insiste muito nessa questão de que este é um crime contra os direitos humanos e de que o homem precisa ser responsabilizado, já que antes a lei seria muito branda com o agressor. Se vamos insistir no viés social, como ao mesmo tempo evitar a impunidade e o enfraquecimento da lei?

Xênia – A violência contra a mulher é uma violação de direitos humanos, sendo reconhecido em várias declarações, resoluções internacionais, inclusive na nossa Lei Maria da Penha. Porém, uma coisa é violação de direitos, outra coisa é um crime. Não se pode confundir as duas coisas.

Um crime é realizado por uma pessoa. Por exemplo: um carro nunca atropela sozinho, precisa ter um motorista. Uma violação de direitos humanos nem sempre é realizada por uma pessoa. Uma prefeitura e uma Câmara Municipal, quando não garantem casas abrigo para as mulheres, atendimento interdisciplinar dos agressores, independente de quem seja o prefeito e de quem sejam os vereadores, faz uma violação de direitos humanos, na medida em que não enfrentam de forma comprometida a violência contra a mulher. Um Estado quando não implementa políticas de enfrentamento à violência contra a mulher, como ações educativas, investimento nas estruturas de atendimento, em,delegacias e juizados, também realiza uma violação de direitos humanos.

Outra coisa: apesar de serem a maioria, os homens não são os únicos agressores; há inúmeros casos em que a mulher também é agressora: a mãe que bate na filha, a tia, a neta que bate na avó, a companheira que bate na namorada. Isso também constitui violência doméstica, e o atendimento interdisciplinar dos agressores precisa prever essas peculiaridades.

Já no que se refere à lei: não é a brandura ou endurecimento da lei que irá resolver o problema da violência. A responsabilidade pela violência não se dá apenas sob a vertente criminal. Eu insisto que é preciso investir em educação. Até o presente não se apresentaram resultados de que a Lei Maria da Penha diminuiu a violência. Aumentaram as denúncias e o debate sobre violência (isso é positivo), mas nós ainda continuamos com os lamentáveis assassinatos de mulheres e inúmeras agressões. Para evitar a impunidade, é necessário investir na estrutura estatal. E não é só em quantidade, mas na qualificação dos profissionais; e nos órgãos de fiscalização, como o Ministério Público. A lei pode estar lá muito bonita, impressa num papel, mas a lei precisa sair do papel, e, para isso, é preciso ter vontade política. E também é importante que toda a sociedade se mobilize, tenha consciência em quem votou, fiscalize a forma como a prefeitura usa o dinheiro, participe dos debates, dos espaços de mobilização.

No que a lei precisa ser aprimorada?

Xênia – Não acredito que a mudança da lei por si só traga algum resultado. Do jeito que a Lei Maria da Penha está, ainda há muito a ser feito. Leiam a lei, é importante conhecê-la! Se tiverem dúvidas, pesquisem, perguntem, na internet há muita informação.

Afirmo com muita tristeza que a melhor parte da lei não está sendo realizada, aquela que se refere às medidas integradas de prevenção. Por exemplo: promoção de campanhas educativas, o compromisso com o respeito nos meios de comunicação de forma a coibir papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica. A efetivação dessa parte da lei é o que permite uma mudança radical, da superação do enfrentamento exclusivo da violência sob o aspecto punitivo para a promoção da autonomia, do empoderamento das mulheres.

E o projeto em si? Na sua opinião, ele atende essa necessidade de olhar a violência doméstica de uma forma mais abrangente? Você faria alguma mudança no projeto? Se sim, quais?

Xênia – Sou defensora radical de políticas que visam ao enfrentamento da violência da forma preventiva, antes de ela acontecer. A gente tem que parar com isso de mulheres morrerem e serem agredidas para agir. Precisou a Maria da Penha ser eletrocutada. A gente, toda a sociedade, precisa participar desse enfrentamento.

Eu gosto muito do caso do Juiz Marcelo Anatócles, em São Gonçalo, no RJ, que desde 1999, bem antes da lei Maria da Penha (que é de 2006), trabalha com o atendimento interdisciplinar do agressor. Lá é quase zero a reincidência dos casos de violência contra a mulher. Esse resultado é radicalmente diferentes da maioria das cidades que não possuem esse serviço, como é o caso de Curitiba, cujos percentuais de reincidência ultrapassam os 75%. Aqui é muito comum agressores com 4 ou mais Boletins de Ocorrência. Isso precisa acabar. Não podemos lidar somente com a mulher agredida, temos que evitar que a mulher seja agredida, e o atendimento interdisciplinar contribui de forma muito positiva para isso. Felizmente há várias experiências nesse sentido no Brasil que podem servir de modelo para Curitiba.

Por fim, agradeço muito a entrevista, acredito muito que possibilitar espaços como esse contribuem para a construção de uma sociedade em que as mulheres sejam livres e respeitadas.

Amanhã, publico uma entrevista com a Anaterra Viana, que tem uma visão diferente sobre o tema e apoia o veto do prefeito. A Anaterra é jornalista, fotógrafa e assessora de comunicação com atuação na área cultural e social. Faz parte da Coordenação e Organização da Marcha das Vadias de Curitiba e da Coordenação do Nucleo Feminista Lua Negra do PT de Curitiba, além da Coordenação do Saia de Bici – coletivo de mulheres ciclistas de Curitiba e RMC

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