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“Nós somos da matéria de que é feito o sonho.”
(A Tempestade, Ato IV, Cena I)
Durante o banho de sol, Clezão aproximou-se de Beto e disse:
― E aí, meu amigo? Tudo bem?
― Dentro do possível, tudo bem... Não posso reclamar.
― É, aqui a gente não pode mesmo reclamar. Mas me diga uma coisa, Beto, você tem saído muito para passear?
― De que você está falando, Clezão? Está de brincadeira comigo? Você sabe que eu sou seu vizinho de cela... Como é que eu vou sair para passear?
― Você não entendeu, Beto. Deixa eu explicar. Na noite passada, por exemplo, eu levei minha esposa para jantar em um restaurante japonês. Não é nada muito chique, não. É um restaurantezinho que a gente gostava de frequentar na época do namoro. Primeiro, eu tomei um banho bem demorado, escolhi uma camisa azul que ganhei no Natal passado e passei perfume. Ela demorou para ficar pronta, mas, meu amigo, valeu a pena. Estava linda, com os cabelos soltos e um vestido florido. Abri a porta do carro para ela e, no caminho para o restaurante, fomos olhando a Lua, que parecia um olho cintilante no céu de Brasília. Chegando lá, pedimos sukiaki e tomamos um vinho chileno... Isso mesmo: vinho chileno em restaurante japonês! Essas coisas só acontecem no Brasil. E olha, Beto, eu posso garantir que estava uma delícia. Foi uma noite inesquecível!
― Nossa, Clezão. Eu não sabia que a gente podia fazer esse tipo de passeio aqui na Papuda...
― Pois fique sabendo que é possível, sim senhor. A propósito, dia desses você me disse que gostava de pescaria. O que está esperando para ir pescar com o seu guri?
Ao lado de Clezão e Beto, ouvindo atentamente o diálogo dos dois companheiros de cárcere, Dr. Frederico tentou limpar um cisco do olho. Em seguida, pôs a mão direita no ombro de Clezão e disse, com a voz trêmula:
― Então me diga, rapaz: será que eu consigo dar uma escapada e visitar os pacientes que deixei lá fora?
― Mas é claro que sim, doutor! Hoje mesmo, quando apagarem as luzes, o senhor pode ir até a sua clínica e perguntar para a secretária quais são as consultas do dia. Com a experiência que o senhor adquiriu nestes meses aqui dentro, trabalhando sem nenhum tipo de apoio ou material, tenho certeza de que vai levar a cura para todos os seus pacientes. Depois, o senhor vai poder conversar com todos eles e contar tudo que viu nos últimos tempos. Mas antes, o senhor poderia ouvir meu coração, doutor? Faz meses que estou sentindo essa dor chata...
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Naquela noite, Beto foi pescar com o filho e Dr. Frederico atendeu cinco pacientes em sua clínica. Em pouco tempo, toda a ala da Papuda estava fazendo coisas aparentemente impossíveis. Durante o banho de sol, os presos procuravam Clezão para relatar suas histórias:
― O time do meu neto ganhou a semifinal do torneio da escola. Acredita que ele fez três gols, Clezão? Na semana que vem acho que vamos ganhar a taça.
― Visitei minha mãe no hospital. Quando entrei na UTI, ela abriu os olhos, sorriu e disse que não queria morrer sem me abraçar.
― Lá em casa temos um jardim, mas estava abandonado. Chamei meu irmão para plantar um canteiro de girassóis comigo. Sabe por que eu gosto de girassol, Clezão? Porque ele vai sempre onde a luz está.
― A Kátia não queria sair de casa, achou melhor pedir uma pizza de atum e ficar vendo Netflix. Sabe o que nós vimos? The Chosen, um seriado que conta a vida de Jesus e dos apóstolos. O vilão romano é a cara de alguém que nós conhecemos.
― Joguei três partidas de sinuca no Bar do Carlão. Você sabe que eu nunca tinha reparado em como é bonita uma mesa de sinuca?
― O Rafael está naquela idade de ter medo do escuro. Antes de dormir, eu contei para ele a história do homem inocente que é preso, mas depois acaba sendo absolvido por um juiz bondoso.
― Ontem eu entrei na igreja. Estava completamente vazia, exceto por um homem de joelhos perto do sacrário. No crucifixo do altar, um dos braços de Jesus estava pendente. Aproximei-me do homem e, quando ele olhou para mim, eu vi que era meu pai. Ele apontou o braço pendente de Cristo e disse: “Ele vai te segurar”.
Depois de checar as mensagens, Alexandre tomou os comprimidos e fechou os olhos. Em geral, o sonífero demorava a fazer efeito, mas não nesta noite. Ele logo caiu em sono profundo.
Viu um homem caído no chão de cimento de um pátio ensolarado. Em torno dele, vários homens uniformizados gritavam e choravam. Um deles, que parecia ser médico, tentou reanimá-lo, mas em vão.
― Clezão, não vai embora. Nós precisamos de você!
― Aguenta firme, sonhador. A ambulância já vem.
― Não faz isso, meu amigo. Quem vai ouvir a gente agora?
De repente, o pátio se transformou em um tribunal e Alexandre se viu no banco dos réus.
― Este não é o meu lugar!
Alexandre acordou com o próprio grito.
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