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O Mundo do Circo fica no Parque da Juventude, em São Paulo.
O Mundo do Circo fica no Parque da Juventude, em São Paulo.| Foto: Reprodução/Redes Sociais

“A única atração que existia para a imaginação das crianças eram precisamente aqueles circos que vinham de longe em longe com palhaços que percorriam as estradas, de costas, em cavalos enfeitados berrando ‘hoje tem espetáculo, tem sim sinhô; e o palhaço o que é? Ladrão de mulher’.” (Benjamim de Oliveira)

Essa semana revivi uma experiência que há muito não sentia. O governo do estado de SP, por intermédio da Secretaria de Cultura e Economia Criativa, inaugurou um espaço totalmente destinado à arte circense, O Mundo do Circo. Generosamente convidado, pela Secretaria, a participar do evento de abertura, compareci com minha esposa, pois, além do local ser perto de minha casa, iniciativas culturais sempre me empolgam – exceto aquelas que, badaladas, transformam-se em tumulto. O que não foi o caso, pois foi durante a semana e de manhã, estava movimentado, mas bem tranquilo.

O complexo fica no Parque da Juventude, local anteriormente ocupado pela famigerada Casa de Detenção de São Paulo, e é composto de três lonas: Segundo uma rede social da atração, a Grande Lona, destinada a temporadas de espetáculos de circos itinerantes, mostras de números circenses, shows e outras atividades; a Lona Multiuso, para apresentações, oficinas e encontro de grupos, companhias e artistas individuais diversos; e a Lona Exposição, exclusiva para a exposição lúdica e interativa sobre o imaginário do circo, mostrando suas várias modalidades artísticas, enriquecendo a experiência sensorial proporcionada pelo espaço temático. Tem ainda um espaço externo bem amplo destinado a apresentações a céu aberto, e áreas de foodtruck.

O que vi foi a arte em seu estado mais puro, mais singelo e mais original, realizada com todo esmero e qualidade por profissionais dedicadíssimos e cheios daquela alegria contagiante que só os artistas populares têm.

Pois bem, o espaço é mesmo bem amplo; tem uma bela entrada e as grandes lonas se destacam ao fundo; os banheiros, feitos de contêineres, são relativamente espaçosos e bem acabados; mas algumas coisas, como o gramado, ainda estão por terminar – o que é compreensível, pois estamos no fim de uma gestão e eles querem entregar os projetos antes de deixar o governo.

Ao chegarmos, uma trupe de palhaços e malabaristas se apresentava no espaço externo, com aquelas bandinhas (o diminutivo se refere somente ao tamanho, não à qualidade) típicas de espetáculos itinerantes, tocando instrumentais de músicas conhecidas. A alegria que eles estavam era contagiante. Não conheço ninguém que trabalhe com circo, mas tenho certeza de que eles fazem parte daqueles setores – dentro do setor cultural – que mais sofreram na pandemia. E ter um espaço todinho para que eles desenvolvam suas atividades, é realmente algo que certamente irá ajudá-los muito. A exposição é um mimo, cheia de atrações interativas que irão divertir demais as crianças.

Enfim, o espetáculo principal começou na Grande Lona, e fui invadido por um turbilhão de emoções e lembranças de minha infância. Lembrei-me de um circo que todos os anos fazia uma temporada num terreno baldio ao lado de minha casa, em Guarulhos (SP), não só com apresentações circenses, mas com música ao vivo. Lembro-me vivamente das apresentações dos cantores Ovelha e o saudoso Genival Lacerda – com quem tive a honra de dividir, em 2017, a Ordem do Mérito Cultural –, que todos os anos compareciam e faziam um sucesso estrondoso. Era no início dos anos 1980, época do surgimento do break no Brasil; a novela Partido Alto colocava, com música de Sandra Sá (ainda sem o “de”), B-boys em sua abertura. O circo fazia concurso de break e eu, ainda criança (devia ter uns oito anos) participava.

Ao ver toda aquela coisa mambembe do circo, aquele humor simples e ingênuo dos palhaços (nesse caso, palhaças), aquelas apresentações acrobáticas de elasticidade, equilíbrio e força, sem qualquer pirotecnia a não ser as luzes e a música, fiquei muito emocionado. Primeiro porque fiquei imaginando quanta tradição há naquilo tudo, quantas e quantas gerações foram necessárias para, transmitindo todo esse conhecimento através da oralidade e da prática, foram necessárias até que tudo isso chegasse até nós. Pois essa é uma característica do universo circense, a tradição passada de um modo quase hereditário, familiar, calcada na convivência diária das trupes itinerantes. De acordo com a pesquisadora Ermínia Silva, em seu Circo-Teatro – Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil, sobre o incomparável palhaço, músico, ator, cantor e produtor Benjamim de Oliveira – já tratado por mim nesta Gazeta do Povo –, as “características definidoras e distintivas” de um grupo circense são 1) o nomadismo; 2) uma forma familiar e coletiva de constituição do profissional artista, baseada na transmissão oral dos saberes e práticas; e 3) um diálogo tenso e constante com as múltiplas linguagens artísticas de seu tempo.

O circo é uma forma de arte antiquíssima. Seus antecedentes remontam a Roma antiga e seu Circus Maximus, inaugurado no século 6º a.C.. Mas o circo como conhecemos hoje foi criado no século 18, por ex-militares ingleses que, de acordo com Ermínia Silva, “por não estarem vivendo situações de combate, ao mesmo tempo em que desenvolviam cursos de hipismo para nobres, alguns grupos de ex-cavaleiros militares saíram dos ʻmuros aristocráticosʼ das exibições particulares para a nobreza, organizando espetáculos ao ar livre, em geral nas praças públicas, mediante pagamento”. Mas foi Philip Astley, que, desligando-se do seu regimento em 1766, começou a fazer apresentações com um grupo ao ar livre, até que, “em 1768, alugou um campo próximo de Westminster Bridge e, dois anos depois, mudou-se para outro terreno vago a poucos metros do anterior, onde construiu tribunas de madeira em frente a uma pista circular , ainda sem cobertura, que implantou para maior desenvoltura dos exercícios a cavalo”. Em 1779, Astley “construiu um anfiteatro permanente e coberto em madeira, o Astley Royal Amphitheater of Arts, que também comportava uma pista cercada por arquibancadas”. Nesse espaço, quase tudo – as acrobacias, as danças, o funambulismo e os intermédios cômicos – era realizado sob o dorso de cavalos.

Como nunca fui a um espetáculo desses modernosos, de companhias badaladas – e caríssimas – como Cirque du Soleil, não sei se esse tipo de apresentação ainda comporta a mesma simplicidade do circo itinerante que visitava o meu bairro na década de 1980; mas o que vi ontem trouxe-me aquela memória de modo intenso. O que vi foi a arte em seu estado mais puro, mais singelo e mais original, realizada com todo esmero e qualidade por profissionais dedicadíssimos e cheios daquela alegria contagiante que só os artistas populares têm. E me lembrei daquele pretinho que, vez por outra, por peraltice, passava por baixo da lona do circo para ver o mesmo espetáculo incontáveis vezes sem se cansar – e sem pagar, sorry. Por isso fiquei feliz com a inauguração de O Mundo do Circo, e faço votos para que essa iniciativa dure muitos e muitos anos, e seja cuidada pelos governos e pela população com todo o carinho e amor que o circo merece. Viva a arte popular! Viva o circo!

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