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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Juristocracia

Xandão não me representa

O ministro Alexandre de Moraes vem sendo apontado como figura central na politização do STF
O ministro Alexandre de Moraes vem sendo apontado como figura central na politização do STF. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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“Em uma sociedade comparativamente mais primitiva, onde o grosso da população é incapaz de debater racionalmente e organizar partidos políticos que determinem quais as questões de interesse público, um governo deitará suas bases sobre forças tradicionais ou revolucionárias sem o recurso à instituição eleitoral.” (Eric Voegelin)

São tempos sombrios os nossos. Podemos dizer, para não recorrermos a raízes ainda mais antigas do problema, que vivemos uma crise sem precedentes na política brasileira desde a derrocada petista, em 2016, com os desdobramentos da Operação Lava Jato, o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva. De lá para cá, as tentativas de nos livrarmos da corrupção, das negociatas, dos conluios do chamado “estamento burocrático”, não só deram com os burros nʼágua, mas reforçaram e deram poder à classe, ao mesmo tempo, menos representativa – posto não terem sido eleitos – e mais poderosa de um regime supostamente democrático: o Supremo Tribunal Federal.

Os ministros de nossa suprema corte foram acumulando poderes sem precedentes desde então, passando de guardiões da Constituição para legisladores até serem convertidos em supostos salvadores da democracia diante da completa disfuncionalidade de nosso regime. Desde o início dos anos 2000, durante os governos Lula e Dilma, o STF vem tomando decisões em temas que o Congresso “evitava” tratar não com a urgência advinda da própria sociedade, mas dos grupos de interesse, tais como o julgamento sobre as relações homoafetivas (2011), da validade das cotas raciais (2012), da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos (2012) etc.

Os ministros de nossa suprema corte foram acumulando poderes sem precedentes, passando de guardiões da Constituição para legisladores até serem convertidos em supostos salvadores da democracia

O julgamento do mensalão, com as transmissões ao vivo na TV Justiça, deu ampla visibilidade aos ministros do STF, que, a partir daquele momento, eram nominalmente reconhecidos pela população. Nos julgamentos da Lava Jato e, mais recentemente, durante o governo de Jair Bolsonaro, o STF definitivamente assumiu o protagonismo no debate político brasileiro e, consequentemente, na condução da política brasileira.

As muitas especulações sobre a rendição de Bolsonaro ao STF – com aquela fatídica reunião e o abraço em Dias Toffoli, o que, por si só, já mostra um total (e antidemocrático) entrelaçamento entre o Executivo e o Judiciário, mesmo Toffoli dizendo, ao jornal O Globo, que “o encontro foi uma confraternização e que não foram tratados assuntos de trabalho” – chamam a atenção. O mesmo Toffoli, meses antes, como presidente do STF, havia suspendido as investigações contra Flávio Bolsonaro com base em dados levantados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). E há a famigerada “carta à nação”, em 2021, após a manifestação em que o então presidente atacou frontalmente o ministro Alexandre de Moraes, em trégua articulada pelo ex-presidente Michel Temer.

O recuo da base bolsonarista em relação à possível instauração de uma CPI que investigasse os ministros do STF – a chamada CPI da Lava Toga –, com Flávio Bolsonaro assinando o requerimento em março e, no mês seguinte, retirando a assinatura, unindo-se ao Partido dos Trabalhadores (PT) para enterrar a CPI antes mesmo que ela fosse instaurada, também é visto como um indício de que o governo Bolsonaro estava, cada vez mais, nas mãos do Supremo.

Evitarei descrever tudo o que ocorreu no governo Jair Bolsonaro até o seu ocaso, em 2022, uma vez que o leitor desta Gazeta do Povo sabe de tudo talvez até melhor do que eu. O fato é que Alexandre de Moraes se colocou na posição de inimigo figadal de Jair Bolsonaro e todas as suas ações; desde então, vem ultrapassando toda e qualquer razoabilidade democrática em nome da defesa da “democracia” (para entender as aspas, aqui) e, com isso, vem aumentando seus poderes de maneira praticamente ilimitada.

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O que as ações de Moraes evidenciam, na realidade, é uma crise profunda naquilo que o filósofo Eric Voegelin chamou de Representação. Para Voegelin, a representação política pode ser meramente institucional, elementar, baseada nas leis, ou mesmo existencial, pautada por entidades representativas, mas precisa partir de um reconhecimento de seu caráter transcendental, metafísico. Diz ele, em suas Reflexões autobiográficas: “Por representação transcendental entendia a simbolização da função governamental como representante da ordem divina no cosmos”. Ele desenvolve mais profundamente essa ideia em A Nova Ciência da Política:

“A sociedade é iluminada por um complexo simbolismo, com vários graus de compactação e diferenciação – desde o rito, passando pelo mito, até a teoria – e esse simbolismo a ilumina com um significado na medida em que os símbolos tornem transparentes ao mistério da existência humana a estrutura interna desse pequeno mundo, as relações entre seus membros e grupos de membros, assim como sua existência como um todo. A autoiluminação da sociedade através dos símbolos é parte integrante da realidade social, e pode-se mesmo dizer que é uma parte essencial dela, porque através dessa simbolização os membros da sociedade a vivenciam como algo mais que um acidente ou uma conveniência; vivenciam-na como pertencendo a sua essência humana.”

Qualquer representação política deve reconhecer isso, reconhecer que a sociedade possui elementos de ordem que antecedem qualquer representação institucional e que estes precisam ser preservados sob a pena de desintegração da própria sociedade. As arbitrariedades cometidas por representantes políticos são parte dessa desintegração.

Alexandre de Moraes se crê portador de uma verdade superior não só à de seus adversários, mas da própria sociedade. Por isso age arbitrariamente

O que ocorre é que, na modernidade, um processo de desdivinização das sociedades – dessa autointerpretação simbólica – culminou não em sua compreensão meramente científica, mas numa contradição, uma vez que a tensão para o transcendente não desapareceu da alma humana. Então os representantes políticos se viram obrigados, por seu movimento de secularização, a substituir a ordem transcendente por um simulacro imanente, que Voegelin denominou gnosticismo. Nesse sentido:

“A política gnóstica é autodestrutiva no sentido de que as medidas que visam estabelecer a paz aumentam as perturbações que conduzem à guerra [...]. Se uma perturbação incipiente do equilíbrio não for contrabalançada pela ação política adequada no mundo da realidade, e se, pelo contrário, for enfrentada por meio de feitiços, tais perturbações podem atingir tais proporções que o recurso à guerra se torna inevitável.”

Alexandre de Moraes é, atualmente, o representante máximo desse gnosticismo. Ele se crê portador de uma verdade superior não só à de seus adversários, mas da própria sociedade. Por isso age arbitrariamente, desrespeitando os princípios mais básicos de uma realidade verdadeiramente democrática – que nem sequer se constituiu no Brasil.

Voegelin diz ainda que “a política gnóstica é autodestrutiva na medida em que sua negligência para com a estrutura da realidade leva à guerra contínua” – leia-se, no Brasil, guerra de todos contra todos pela “democracia” e pela “liberdade”. E que “o sistema de guerras em cadeia só pode terminar de duas maneiras. Ou resultará em horríveis destruições físicas e nas concomitantes modificações revolucionárias da ordem social que escapam a qualquer conjetura razoável; ou, com a mudança natural das gerações, conduzirá ao abandono dos sonhos gnósticos antes que aconteça o pior”. A segunda opção ainda me parece muito distante. Pois, então, que Deus nos ajude.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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