Detalhe de “O mercado de escravos”, de Gustave Boulanger.| Foto: Wikimedia Commons
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Lutemos com paixão e sem descanso, pelos objetivos de justiça e de paz, mas tenhamos certeza de que, nesta luta, as nossas mãos permaneçam limpas. Jamais lutemos com falsidade e violência, ódio e malícia, de tal modo que, quando vier o dia em que os muros da segregação tenham sido completamente desmoronados em Montgomery, possamos viver todos como irmãos e irmãs (…). Devemos chegar ao ponto de perceber que o nosso objetivo final é viver ao lado de todos os homens, como irmãos e irmãs, sob a graça de Deus, e não ser os seus inimigos ou qualquer coisa que venha com esse tipo de relação. (Martin Luther King Jr., O nascimento de uma nova nação)

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A luta contra o racismo no Brasil, caso não voltemos a observar a realidade, tende a entrar, definitivamente, por um caminho de esquizofrenia infrutífera e inimputável violência. E dois exemplos recentes são suficientes para reforçar a minha tese.

O primeiro ocorreu com a decisão de um juiz, que absolveu um réu acusado de racismo pelo Ministério Público Federal ao postar, numa rede social, mensagens incitando o ódio contra brancos. A sentença do magistrado se deu favorável ao réu porque, em suas palavras, “racismo reverso não existe”. E complementou – após passear por teses acadêmicas, pela decisão do STF que uniu o crime de racismo à causa LGBTI e por Machado de Assis: “Não existe racismo reverso, dentre outras razões, pelo fato de que nunca houve escravidão reversa, nem imposição de valores culturais e religiosos dos povos africanos e indígenas ao homem branco, tampouco o genocídio da população branca, como ocorre até hoje o genocídio do jovem negro brasileiro. O dominado nada pode impor ao dominante”.

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"Racismo reverso" não é um conceito; mas não deixa de ser uma ideologia – no sentido de servir a propósitos de mobilização social e teorização acadêmica militante

Tais palavras me causaram espécie, pois, de fato, racismo reverso não é um conceito; mas não deixa de ser uma ideologia – no sentido de servir a propósitos de mobilização social e teorização acadêmica militante. É evidente que racismo reverso não existe, mas não porque não possa ser aplicado a pessoas brancas, mas porque só existe um sentido no termo racismo: “teoria que defende a superioridade de um grupo sobre outros, baseada num conceito de raça, preconizando, particularmente, a separação destes dentro de um país (segregação racial) ou mesmo visando o extermínio de uma minoria”, na definição do dicionário on-line Priberam). Ou, ainda, como diz Nicola Abbagnano em seu Dicionário de Filosofia: “Doutrina segundo a qual todas as manifestações histórico-sociais do homem e os seus valores (ou desvalores) dependem da raça; também segundo essa doutrina existe uma raça superior (‘ariana’ ou ‘nórdica’) que se destina a dirigir o gênero humano”.

Ou seja, a noção de racismo como um fato histórico específico, ligado à escravidão colonial, não passa de reinterpretação ideológica do termo de acordo com teorias como a do biopoder propagada por pensadores como Michel Foucault. De acordo com Foucault, em seu curso Em defesa da sociedade, ministrado no Collège de France entre 1975 e 1976, o racismo “é, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros”.

Foucault não nega, com isso, a existência anterior do racismo, mas, desse modo, inaugura um modo de interpretação que absolutiza o conceito na perspectiva meramente sociológica, a fim de servir às teorias anticolonialistas. E, curiosamente, não se discute mais o assunto. Toda e qualquer pessoa – inclusive um juiz, que deveria prezar pela refinada compreensão da realidade – que quiser falar sobre o conceito de raças ou de racismo deve partir da perspectiva sociológica do opressor versus oprimido. Mas não penso que um juiz deva se limitar a isso, dizendo que o racismo contra pessoas brancas é – pasme, caro leitor! – uma “impossibilidade ontológica”, e engrossar o coro ideológico ao dizer que não há racismo reverso porque não houve “escravidão reversa”.

Mas as coisas não são tão simples. Caso cedamos às reinterpretações contemporâneas de conceitos fundamentais para a organização social, e aceitemos as manipulações ideológicas, corremos o risco de, no fim das contas, fomentarmos um tipo de violência que seria permitida aos oprimidos em reação à opressão que sofreram/sofrem. Dessa forma, o jogo de poder se inverte de forma mimética, e injustiças são cometidas em nome da justiça. O nome disso é vingança.

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A série documental Outside Man, do Netflix, apresentada pelo ator britânico Reggie Yates, nos dá um exemplo significativo dessa situação, que está ocorrendo na atualidade. Na África do Sul, brancos descendentes dos boeres – colonos europeus –, que mantiveram um regime de apartheid contra negros por quase 50 anos, agora são discriminados; muitos deles, por conta do desemprego e da “discriminação positiva” – defendida, inclusive, por Nelson Mandela, que dizia combater o domínio branco e o domínio negro – aplicada com o intuito de diminuir as desigualdades socioeconômicas no país, vivem em extrema pobreza. Evidente que o número dessas pessoas é muito inferior ao dos negros que ainda vivem na miséria; porém, atualmente, iniciativas radicais como as de Julius Malema, líder do partido Combatentes da Liberdade Econômica, que deseja a expropriação de terras de brancos sem compensação e, mais do que isso, vem pregando a morte de brancos, estão ganhando destaque – como mostra Yates na série. Ou seja, um sistema de reparação que está, passo a passo, se transformando num sistema de opressão e violência apoiados institucionalmente pelo presidente Cyril Ramaphosa e por seu partido, o CNA, o principal do país. O discurso vingativo de Malema nasceu de uma ideia supostamente virtuosa, mas hoje já é motivo de preocupação, pois encontra pouca resistência moral até entre os opositores.

Voltando ao caso brasileiro, não que o juiz devesse condenar o jovem, esse não é o meu ponto. Considero a acusação também errônea, no entanto, pautada na mesma interpretação ideológica da  Lei 7.716/89. Se a acusação, em vez de racismo, tivesse sido de incitação à violência, de acordo com o artigo 23 da Lei 7.177/83, certamente teríamos outro desfecho. A banalização do racismo provoca equívocos grosseiros e delírios ideológicos como os perpetrados pelo excelentíssimo juiz em sua sentença. É preciso escaparmos das duas coisas.

O racismo é uma doença social, mas não pode servir como teoria ideológica para transferência de poder, nem de arma para vingança e nem de desculpa para nossos próprios erros

E, por falarmos em banalização, o segundo caso é mais simples. A jovem Lorenna Vieira, esposa do DJ Rennan da Penha – que responde em liberdade a um processo por associação ao tráficoacusou o Banco Itaú de racismo por ter sido levada à delegacia após a gerente que a atendia desconfiar que seu documento de identificação era falso e chamar a polícia. A moça fez um escarcéu nas redes sociais, recebeu o apoio de muitas pessoas influentes e disse que ia processar o banco. No entanto, ao sair da delegacia, Lorenna rasgou e queimou o documento, levantando suspeitas da polícia, que, após os laudos periciais produzidos pelo Detran e pelo Instituto Félix Pacheco, divulgou que, de fato, o documento era falso. Agora a moça pode ser indiciada por uso de documento falso. Ou seja, a luta antirracismo foi, mais uma vez, banalizada por interesses individuais. Podemos questionar o procedimento do banco, evidentemente; no entanto, a força de nossos argumentos agora encontrou uma barreira: a realidade dos fatos.

Quem ganha com isso? Ninguém, pois faz com que casos reais passem a ser minimizados por conta de situações como essas. O racismo é um problema sério, uma doença social que precisa ser tratada com discernimento, buscando sua superação com inteligência e espírito de liberdade. Não pode servir como teoria ideológica para transferência de poder (ou biopoder), nem de arma para vingança e nem de desculpa para nossos próprios erros. Como diz o dr. King no sermão em epígrafe: “Lutemos com paixão e sem descanso, pelos objetivos de justiça e de paz, mas tenhamos certeza de que, nesta luta, as nossas mãos permaneçam limpas”.

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