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Estátua egípcia de 1.300 anos antes de Cristo.
Estátua egípcia de 1.300 anos antes de Cristo.| Foto: The Metropolitan Museum of Art

Quanta beleza na arte, desde que possamos reter o que vimos. Jamais ficamos, então, deserdados, nem verdadeiramente solitários; jamais sós [...]. Não conheço melhor definição da palavra arte do que esta: “a arte é o homem acrescentando à natureza”; à natureza, à realidade, à verdade, mas com um significado, com uma concepção, com um caráter, que o artista ressalta e aos quais dá expressão, “resgata”, distingue, liberta e ilumina. (Vincent van Gogh)

Muito se especula e muito se escreve a respeito do que pode ser considerado Arte, e é de conhecimento de todos – ou quase todos – que só modernamente o conceito passou da objetividade para a subjetividade, e ganhou tal elasticidade que hoje é possível dizer, sem medo de ser herético, que arte é qualquer coisa que o artista e/ou o crítico digam que é.

Mas nem sempre foi assim. Para Platão, por exemplo, a beleza era não só objetiva, mas fundamentada num mundo superior, espiritual, do qual este nosso era uma cópia. A beleza de cada coisa material era imperfeita e degradada, mas correspondia a uma beleza formal, perfeita, no Mundo das Ideias; a beleza absoluta, portanto, neste mundo era impossível, e só era acessível ao ser humano à medida que este se aproximasse, através da Filosofia, da contemplação dessas Ideias. Já Aristóteles tentou adequar a visão platônica a algo mais, digamos, equilibrado; para o estagirita, os objetos do mundo material eram compostos, intrinsecamente, de matéria e forma, e sua beleza estava neles mesmos.

Curiosamente, Aristóteles falará da beleza em termos de proporção, dizendo – assim como na Ética à Nicômaco em relação ao meio-termo –, em sua Poética, que “a beleza reside na dimensão e na ordem e, por isso, um animal belo não poderá ser nem demasiado pequeno (pois a visão confunde-se quando dura um espaço imperceptível de tempo), nem demasiado grande (a vista não abrange tudo e, assim, escapa à observação de quem vê porque tem enredo e estruturação das ações”. E aqui vale lembrar da Razão (ou Proporção) Áurea, a constante algébrica que estaria presente na natureza e na arte e é responsável por nossa noção de simetria das coisas. Voltarei a isso adiante.

Sem se afastar muito dessas concepções, as discussões sobre a beleza atravessaram praticamente todo o período medieval até levarem um golpe (quase) mortal de Immanuel Kant, no séc. 18. Para o filósofo alemão, os absolutos, as essências eram inacessíveis à nossa razão, sendo possível somente uma apreensão dos fenômenos. Nesse sentido, a beleza objetiva também era impossível. Como nos explica o saudoso Ariano Suassuna, em seu excelente Iniciação à Estética:

Kant […], coerente com sua crítica ao objetivismo, não admite participação nenhuma da inteligência na criação da Beleza: como já dissemos, para ele, a Beleza “agrada universalmente sem conceito”. Ora, no que concerne à Arte, é decorrência fatal dessa afirmação que nenhuma norma pode ser estabelecida para a criação e o julgamento aos objetos artísticos. A norma tem que se derivar do objeto, através de um conceito, da inteligência, e isso entraria em conflito com o princípio, fundamental no pensamento kantiano, de que a Beleza é uma construção do espírito do sujeito, e não uma propriedade do objeto.

E é a partir da concepção kantiana que Roger Scruton voltará à noção de simetria, dizendo, em Beleza, que “é importante reconhecer que a variação cultural não anula a existência de universais que perpassam culturas. Além disso, ela não implica que os universais, caso existam, não poderiam estar arraigados em nossa natureza ou adentrar, num nível muito fundamental, nossos interesses racionais. Simetria e ordem, proporção, encerramento, convenção, harmonia, inovação e incitamento: tudo isso parece dominar permanentemente a psique humana. Ora, é claro que todas essas palavras são vagas e muito ambíguas, e seria possível, até mesmo, objetar que elas mesmas tenderiam a se desfazer ao longo das fronteiras que dividem cada cultura humana”.

Ou seja, ainda que percebamos algo de universal na proporção, esse não deve ser um critério objetivo para a beleza, uma vez que, digamos, a desproporção também tem seu charme. Mas o que ocorreu foi que, de fato, a subjetividade da beleza tornou o juízo estético absolutamente discutível, e, a partir dessa ideia, a arte moderna e contemporânea sofreram transformações irreversíveis.

No início do séc. 20, o cubismo de Pablo Picasso colocava o conceito de beleza em xeque, a arte, a partir daquele momento, seria transgressão; a arte moderna, como diz Ortega y Gasset, caracteriza-se pela desumanização da arte, conceito desenvolvido no livro homônimo. Ele explica – perdoe a longa citação, caríssimo leitor, mas é valiosa:

Se, ao compararmos um quadro à maneira nova com outros de 1860, seguirmos a ordem mais simples, começaremos por confrontar os objetos que em um e outro estão representados, talvez um homem, uma casa, uma montanha. Logo se nota que o artista de 1860 se propôs, antes de mais nada, que os objetos em seu quadro tenham o mesmo ar e aparência que têm fora dele , quando fazem parte da realidade vivida ou humana. É possível que, além disso, o artista de 1860, se proponha muitas outras complicações estéticas; porém o importante é notar que ele começou por assegurar essa parecença. Homem, casa, montanha são, imediatamente, reconhecidos. São nossos velhos amigos habituais. Pelo contrário, no quadro recente nos custa trabalho reconhecê-los. O espectador pensa que talvez o pintor não tenha sabido conseguir a semelhança. Mas também o quadro de 1860 pode estar “mal pintado”, ou seja, que entre os objetos do quadro e esses mesmos objetos fora dele exista alguma distância, uma importante divergência. Não obstante, qualquer que seja a distância, os erros do artista tradicional apontam para o objeto “humano”, são quedas no caminho para ele e equivalem ao “Isto é um galo” com que o Orbaneja cervantino orientava seu público. No quadro recente acontece tudo ao contrário: não é que o pintor erre e que seus desvios do “natural” (natural = humano) não alcancem este, é que apontam para um caminho oposto ao que pode conduzir-nos até o objeto humano. Longe de o pintor ir mais ou menos entorpecidamente à realidade, vê-se que ele foi contra ela. Propôs-se decididamente a deformá-la, romper seu aspecto humano, desumanizá-la. Com as coisas representadas no quadro tradicional poderíamos ilusoriamente conviver. Pela Gioconda se apaixonaram muitos ingleses. Com as coisas representadas no quadro novo é impossível a convivência: ao extirpar seu aspecto de realidade vivida, o pintor cortou a ponte e queimou as naves que poderiam transportar-nos ao nosso mundo habitual.

Ou seja, não basta a subjetividade, a arte moderna é pura transgressão, é uma revolta contra a humanidade. O novo artista, ao que parece, quer derramar sobre seu público uma espécie de tara mefistofélica que subjugue tudo o que é humano. Como arremata Ortega y Gasset: “Não se trata de pintar algo que seja completamente distinto de um homem, ou casa, ou montanha, mas sim de pintar um homem que pareça o menos possível com um homem, uma casa que conserve de tal o estritamente necessário para que assistamos à sua metamorfose, um cone que saiu milagrosamente do que era antes uma montanha, como a serpente sai de sua pele. O prazer estético para o artista novo emana desse triunfo sobre o humano; por isso é preciso concretizar a vitória e apresentar em cada caso a vítima estrangulada […] O expressionismo, o cubismo etc., foram em vária medida tentativas de verificar essa resolução na direção radical da arte . Do pintar as coisas passou-se a pintar as ideias: o artista ficou cego para o mundo exterior e voltou a pupila para as paisagens interiores e subjetivas”.

A provocação de Marcel Duchamp com sua Fonte, em 1907, terminou por destruir tudo aquilo que se pensava por beleza e arte, e inaugurou o verdadeiro reino da subjetividade – porém, uma subjetividade vazia de qualquer significado, de qualquer sentido. Não é mais gosto, é desgosto; não é mais arte, é afronta; não é mais beleza, é belzebu. Hoje as pessoas são capazes de “contemplar” uma pilha de latas de sopa, uma parede branca ou ver um cão à beira da morte numa exposição porque os artistas querem passar uma mensagem política. Desse modo, “o valor da arte é o valor do choque: ela existe para nos conscientizar de nossa complicada situação histórica e recordar-nos de que a única coisa permanente na natureza humana é a mudança incessante”, diz Scruton.

Há um gravíssimo problema nisso, pois um dos elementos mais importantes numa cultura é a arte, e a arte é a expressão dos anseios espirituais de um povo. Como diz Andrei Tarkovski, a arte é um “anseio pelo ideal”, e existe porque o mundo não é perfeito. Desse modo, nos ensina Scruton: “é um investimento em muitas gerações, impondo-nos obrigações enormes que estão longe de ser claramente articuladas – de modo especial, a obrigação de sermos pessoas diferentes e melhores à luz daquilo que os outros poderiam estimar. Os costumes, padrões de conduta, preceitos religiosos e decoros convencionais nos disciplinam nisso, formando assim o núcleo central de toda e qualquer cultura. No entanto, eles necessariamente dirão respeito àquilo que é comum e facilmente assimilável. Como tenho me esforçado para assinalar, o juízo estético é parte integrante dessas formas elementares de coordenação social, podendo conduzir-nos ainda a aplicações potencialmente ‘superiores’ e mais estilizadas”.

A arte é um elemento civilizatório fundamental de uma sociedade, e, ao servir de elemento de desintegração, através da deformação daquilo que consideramos universal em termos de valores (morais e estéticos), o que, na verdade, ela revela é ser o resultado e não a causa dessa desagregação normativa. Uma arte degradada é o resultado de uma sociedade degradada.

Por isso que, na atualidade, urge retomarmos o contato com uma concepção de arte séria e comprometida com os valores universais de beleza e verdade consagrados por gerações; esse é um elemento fundamental para recuperarmos nossa cultura e, consequentemente, nosso país.

Como diz Scruton, “a arte tal qual a conhecemos encontra-se no limiar do transcendental. Ela aponta para além deste mundo de coisas acidentais e desconexas, na direção de uma esfera em que a vida humana é agraciada com uma lógica emocional que torna o sofrimento nobre e faz que o amor valha a pena. Desse modo, ninguém que atente para a beleza carece do conceito de redenção, de uma transcendência derradeira que conduz da desordem mortal a um ‘reino de finalidades’. Numa época em que a fé está em declínio, a arte dá contínuo testemunho da fome espiritual e dos anseios imortais de nossa espécie. É por essa razão que a educação estética é mais importante hoje que em qualquer outro período de nossa história”.

Mas antes de terminar esse artigo, paciente leitor, gostaria, para me adiantar às acusações de eurocentrismo, de dar uma palavra sobre a arte do continente africano.

Essa discussão é antiga, pois, obviamente, a arte ocidental passou a ser o padrão num contexto marcado pelo colonialismo, e tudo aquilo que não era europeu foi considerado bárbaro ou primitivo. Mais recentemente, a arte egípcia ganhou algum destaque no panteão estético ocidental; no entanto, aquela arte produzida no mundo subsaariano, sobretudo na antiguidade, ainda padecia (padece) de muitos preconceitos. Porém, nossa ignorância deve se render aos fatos, e atualmente há uma infinidade de materiais oriundos dessas regiões. Entretanto, classificá-las como arte exige alguma reflexão.

Em certo sentido, os conceitos África e Arte não são precisos. Primeiramente porque a África é um continente imenso e diverso, cuja cultura não pode ser tomada como uma unidade.

Como diz o filósofo ganês Kwame Anthony Appiah, em seu ensaio Why Africa? Why Art?, presente no livro que resultou da exposição Africa: the art of a Continent, no Royal Academy of Arts, de Londres, entre 1995 e 1996: “nem África nem Arte […] tiveram um papel de ideias na criação dos objetos desta espetacular exposição”.

Primeiro porque os “artistas” que criaram tais artefatos não se viam como africanos; esse foi um conceito levado ao continente pelos próprios europeus. Tampouco os objetos – muitos com função eminentemente religiosa ou meramente decorativa – foram criados como obras de arte. Porém, “ao apresentar tais objetos como objetos de arte, os curadores desta exposição convidam-te a olhá-los de uma certa maneira, a avaliá-los da maneira que chamamos de ‘estética’. Isso significa, como bem sabes, que estás convidado a observar sua forma, sua feitura, as ideias que eles evocam, para compreendê-los da maneira que aprendemos ao frequentar museus de arte”.

E isso é perfeitamente possível, caríssimo leitor, pois se nos livrarmos daqueles preconceitos tão arraigados em nós, criados e transmitidos, sobretudo, pelo tão elogiado Iluminismo europeu, por figuras como os filósofos David Hume, Kant e Hegel – apesar de Kant, na Crítica do Juízo, admitir que há padrões diferentes, regionais, e que “um negro deve, necessariamente, sob essas condições empíricas, ter uma ideia normal da beleza […] diferente daquela do branco, e o chinês uma diferente daquela do europeu” – veremos que há tanta beleza, simetria e sacralidade na cabeça de uma rainha nigeriana ou numa cabeça masculina do Sudão (e outros), como nos mais belos modelos gregos.

E também tanta riqueza de detalhes nos utensílios domésticos (jarras, pratos etc.) e armas que, mesmo não tendo sido criados, absolutamente, com propósitos artísticos, são portadores de beleza extraordinária. Vale lembrar que muitas figuras humanas tem aspectos estranhos para nós – com caretas ou disformes – porque sua função era religiosa e não artística. O terror é parte indissociável do sagrado.

Mas, como diz o historiador Henry Louis Gates, Jr, em seu ensaio Europe, African art, and the uncanny, mencionando o filósofo e crítico de arte Alain Locke – sofisticadíssimo e genial, mentor do movimento artístico Renascimento do Harlem –, sobre a assumida influência africana na arte de Pablo Picasso, a melhor maneira de compreendermos a arte subsaariana sem estranhamentos, é “imitando os modernistas europeus que tão claramente foram influenciados pela arte africana […]. O caminho para a África, em outras palavras – para os negros, bem como para os brancos americanos e europeus –, é via Trocadéro [famoso museu de arte antiga que existiu em Paris entre os anos de 1878-1935, onde os artistas europeus tiveram contato com a arte africana e Picasso se inspirou para criar sua arte cubista]”. Distinguindo, obviamente, a originalidade e sacralidade da arte africana da degradação proposital da arte moderna.

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