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Elon Musk
Elon Musk ao lado do ministro brasileiro das Comunicações, Fabio Faria.| Foto: Reprodução/Twitter/Fabio Faria

“Pode ser que para vocês eu seja um ladrão comum, mas trago sobre meus ombros o destino da raça humana. […] Nosso direito de tomar o lugar de vocês é o direito que o mais forte tem sobre o mais fraco. É a vida... […] A vida é maior que qualquer sistema de moralidade. As exigências da vida são absolutas.”
“Foi bom ter ouvido você” – disse Oyarsa – “pois, ainda que a sua mente seja mais fraca, a sua vontade é menos torta que eu pensava. Não é por você que faria tudo isso.”
(Trecho do diálogo entre o Oyarsa de Malacandra e Weston, em Além do Planeta Silencioso, de C.S. Lewis)

Na última semana, por ocasião da visita do bilionário Elon Musk, dono da Tesla Motors e da SpaceX, que esteve no Brasil para estreitar relações com o governo brasileiro a fim de, dentre outras coisas, levar sua empresa de internet via satélite, a Starlink, para a Amazônia, houve um alvoroço generalizado não só da imprensa brasileira, mas de políticos, do empresariado e de toda sorte de pelegos governistas que passaram o dia louvando a genialidade e ousadia do homem mais rico do mundo.

“A conquista do Homem sobre a Natureza revela-se, no momento da sua consumação, a conquista da Natureza sobre o Homem.”

C.S. Lewis, em A Abolição do Homem

De acusações de que tivesse vindo aqui só para conversar fiado a declarações constrangedoras como a do próprio presidente da República, que o chamou de “Mito da Liberdade”, o que mais me chamou a atenção – pelos motivos que exporei abaixo – foi o encontro inusitado entre a apresentadora e empresária Patrícia Abravanel, filha de Sílvio Santos e esposa do ministro das Comunicações, Fábio Faria (que convidou Musk para vir ao Brasil), que, ao postar uma foto com o bilionário em suas redes sociais, escreveu:

“O Senhor disse a Noé que construísse uma arca na qual sua família e ‘tudo o que vive, de toda a carne’ (Gênesis 6:19) fossem salvos do Dilúvio. Noé foi tido por louco. Estudiosos dizem que nunca havia chovido na terra antes. Mas lá estava Noé, falando de um dilúvio e construindo um barco gigante. Seria Noé um louco ou um visionário habilidoso escolhido por Deus?
“Elon Musk. Gênio por todos seus feitos já realizados. Seu maior sonho é tornar a humanidade interplanetária. Sua nova nave, chamada Starship, projetada para viagem a lua e ao planeta vermelho já está sendo construída. Louco, gênio, sonhador, visionário. Será ele o Noé do nosso tempo?
[grifos meus]

Como esse foi justamente o tema de minha dissertação de mestrado, com o título Ficção Científica contra o Cientificismo, na qual realizei uma análise teológica-filosófica-literária da maravilhosa Trilogia Cósmica, de C.S. Lewis, lembrei-me na hora da advertência do gênio de Oxford e Cambridge, feita na mais importante de suas obras – assim considerada por ele mesmo –, A abolição do Homem, que deu base para o terceiro livro da Trilogia, Aquela Fortaleza Medonha:

“Portanto, no momento mesmo da vitória do Homem sobre a Natureza, encontramos toda a raça humana sujeita a alguns poucos indivíduos, e estes indivíduos sujeitos àquilo que neles mesmos é puramente ‘natural’ – aos seus impulsos irracionais. A Natureza, livre dos valores, controla os Manipuladores e, por intermédio deles, toda a humanidade. A conquista do Homem sobre a Natureza revela-se, no momento da sua consumação, a conquista da Natureza sobre o Homem.”

Fiz uma postagem em minhas redes sociais, com a citação de Lewis e alguns comentários sobre o interesse da apresentadora (e de Musk) na conquista do espaço e no sonho de tornar a humanidade interplanetária. Chamei essa pretensão de “sandice” e de “tentação”. Muitos – cristãos como eu inclusos – me criticaram por tal posicionamento, dizendo, dentre outras coisas, que “se os grandes navegadores tivessem se desencorajado por não cair na blasfêmia, alguns continentes poderiam ʻnão existirʼ até hoje”; ou: “quem lhe convenceu que Deus impôs limites à sua criação???”; ou, ainda: “já pensou se Santos Dumont e tantos outros houvessem respeitado a ʻsoberania divinaʼ?”

Tais respostas são já esperadas em redes sociais, que são espaços pródigos em sentimentalismo e perfeitos para julgamentos sem juízo. E também não posso culpar as pessoas por não terem lido uma linha sequer de C.S. Lewis e nunca terem parado para refletir nesse assunto, que ocupou sua mente genial por diversas ocasiões, sobretudo porque ele percebeu um certo culto à ciência – o famigerado cientificismo – avançar a passos largos. Suas reflexões, profundamente filosóficas, se deram, também, numa circunstância alarmante: os horrores da Segunda Guerra Mundial, época em que o conhecimento humano se voltara não só à destruição do próprio ser humano, mas à sua desumanização – com o Holocausto e a bomba atômica.

O teólogo e biofísico molecular Alister McGrath, em sua biografia do criador de Nárnia, diz que “Lewis temia que os triunfos da ciência pudessem correr mais rápido do que os indispensáveis avanços éticos que forneciam o conhecimento, a disciplina e a virtude de que a ciência precisava”. E vale lembrar que Lewis não era contra a ciência em si mesma, mas contra a sua supervalorização, como se tal perspectiva, baseada no culto à racionalidade desenvolvimentista (e reducionista), pudesse resolver todos os problemas da humanidade. Ele considerou esse pensamento uma espécie de síndrome, de doença espiritual, e a chamou de wellsianity – remetendo ao escritor H.G. Wells, grande escritor e divulgador científico. Em resposta a uma crítica que o biólogo marxista J.B.S. Haldane fez a ele, publicada no livro Sobre Histórias, Lewis diz que sua crítica ao cientificismo se dá com base na crença popular de que “o fim moral supremo é a perpetuação de nossa própria espécie, e que isso deve ser buscado mesmo que, no processo de proteção, nossa espécie deva ser despojada de todas aquelas coisas pelas quais a valorizamos: compaixão, felicidade e liberdade”.

C.S. Lewis não era contra a ciência em si mesma, mas contra a sua supervalorização, como se tal perspectiva, baseada no culto à racionalidade desenvolvimentista (e reducionista), pudesse resolver todos os problemas da humanidade

É tentador pensar que o ser humano será capaz de, num futuro próximo, se perpetuar à própria condição de vida na Terra, alçando-se ao espaço sideral e colonizando outros mundos. Mas, como diz Lewis, em resposta a uma carta de outro escritor de ficção científica, Arthur C. Clarke: “Eu concordo que tecnologia é per se neutra: mas uma raça dedicada a aumentar seu próprio poder pela tecnologia com total indiferença à ética me parece um câncer no Universo. Certamente, se for muito adiante na atual rota, o homem não merece a confiança de receber conhecimento”.

Curiosamente, Lewis não só levanta críticas muito pertinentes ao cientificismo – o que ele faz na Trilogia e em A abolição do homem é, verdadeiramente, um esforço lógico e teológico espetacular –, mas defende o cristianismo dos ataques de materialistas de toda sorte. Em outro ensaio magistral, Religião e foguetes, publicado em A última noite do mundo, Lewis diz, sobre a curiosidade do homem em relação à vida em outros planetas: “Cada nova descoberta, mesmo cada nova teoria, é inicialmente considerada como tendo as consequências teológicas e filosóficas mais abrangentes. É tomada pelos incrédulos como base para um novo ataque ao cristianismo; é frequentemente, e de modo mais embaraçoso, confiscado por cristãos insensatos como base para uma nova defesa”. E, nos convocando à prudência, diz:

“Nós sabemos o que nossa raça faz com estranhos. O homem destrói ou escraviza todas as espécies que pode. O homem civilizado mata, escraviza, engana e corrompe o homem selvagem. Mesmo a natureza inanimada, ele a transforma em poças de areia e montes de escória. Existem pessoas que não o fazem. Mas elas não são do tipo que provavelmente serão nossos pioneiros no espaço. Nosso embaixador para novos mundos será o aventureiro necessitado e ganancioso ou o perito técnico implacável. Eles farão o que sempre fizeram. O que acontecerá se eles encontrarem coisas mais fracas que eles, o homem negro e o índio podem dizer. Se eles encontrarem coisas mais fortes, eles serão devidamente destruídos.”

Assim como Lewis, meu cristianismo sempre me faz lembrar a doutrina da Queda – algo sobre o qual já refleti nesta Gazeta do Povo –, pois ela é o elemento fundamental a que devemos recorrer quando nossas pretensões não parecem estar alinhadas com os princípios que nossa tradição e as Escrituras nos legaram. A Torre de Babel é um bom exemplo disso.

Sim, Deus impôs limites à raça humana, e os grandes navegadores, assim como Santos Dumont, não estavam interessados em salvar ou perpetuar a humanidade, pois isso cabe a Deus, não a Elon Musk ou Patrícia Abravanel.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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