
A arte de um povo, por ressaltar o ethos desse povo, tem por isso, e só por isso, um caráter social: por ela se transmite e se plasma uma forma específica de revelação do universal, não sendo os condicionamentos sociais, econômicos e históricos – mas a experiência humana como totalidade. (Ângelo Monteiro)
O tão debatido conceito de cultura já foi tratado por mim num artigo, aqui, nesta Gazeta do Povo. Minha intenção, na ocasião, foi mostrar como a cultura – ou um resgate cultural – é a única maneira de ajudar o Brasil a superar suas grandes e aparentemente perenes dificuldades. Fiz questão de ressaltar que há, sim, uma distinção entre cultura clássica (ou alta cultura) e popular, não como uma forma de absolutos qualitativos, mas como uma hierarquia entre seus modos (ou motivações) de produção e de seus efeitos na sociedade.
Roger Scruton, em seu livro Modern Culture, faz três distinções do conceito de cultura – comum, moderna e alta –, e cita o filósofo alemão Johann Gottfried von Herder para dizer que a cultura é o “sangue vital de um povo, o fluxo de energia moral que mantém a sociedade intacta”. A cultura comum é o sinal de coesão interna de uma sociedade, é a sua identidade, e a cultura popular está fundada na arte popular de entretenimento. Já a alta cultura “é uma tradição na qual os objetos produzidos para a contemplação estética renovam, através de seu poder alusivo, a experiência de pertencimento”.
Dito isso, quero, neste artigo, defender – de modo não conclusivo, obviamente – que o hip hop, com todas as suas contradições, foi elevado à categoria de alta cultura por um programa excepcional, produzido pelo Netflix, que tem o poder não só de nos entreter, como também nos emocionar e produzir em nós, sobretudo, uma experiência moralizadora que só é possível através do amadurecimento de suas características e de sua identidade: Ritmo + Flow, uma série-reality – com dez episódios, todos disponíveis – que visa a encontrar a próxima super-estrela do hip hop mundial. Mas ela faz mais: nos conecta com a vida de dezenas de jovens extremamente talentosos – alguns geniais – cujas terríveis condições de vida não os levaram ao fracasso das drogas ou do crime, mas lhes deu um impulso criativo e uma fortaleza (já escrevi um artigo sobre essa importantíssima virtude cardeal) dignas de verdadeiros heróis. Esses jovens, através do seu exemplo e talento, podem transformar a vida de outros milhões de jovens ao redor do mundo.
Para aqueles de meus leitores que não estão familiarizados com o termo, o hip hop – junção de dança (break), música (rap) e pintura de rua (grafiti) – é, de acordo com o Emmett Price III, no livro Hip Hop Culture:
Um produto da diáspora africana e combina música, dança, arte gráfica, oratória e moda com uma estética crescente que se apoia fortemente em objetos e mídias materiais. É um meio e um método de expressão que prospera em comentários sociais, críticas políticas, análises econômicas, exegese religiosa e conscientização das ruas, enquanto combate questões de longa data como preconceito racial, perseguição cultural e disparidades sociais, econômicas e políticas. Nas últimas três décadas, a cultura Hip Hop cresceu para representar comunidades urbanas, rurais, suburbanas e globais de todas as idades, gêneros, religiões, classes econômicas e raças (sic). De um fenômeno local que atende às necessidades e desejos dos jovens pobres da cidade, o Hip Hop se tornou uma instituição internacional multibilionária que praticamente mudou a natureza das indústrias da música e do entretenimento.
A definição do professor Emmett é precisa, pois, para além de toda questão cultural, o hip hop se tornou um negócio gerador de fortunas absolutamente expressivas no mercado de entretenimento – como podes conferir, caro leitor, na excelente série-documentário – também do Netflix – The Defiant Ones, que conta a parceria entre o rapper Dr. Dre e o empresário Jimmy Iovine, dois gênios da produção musical, na criação e venda da empresa Beats – dos megaconhecidos fones de ouvido – para a Apple, por três bilhões de dólares. Mas também, de acordo com o professor da Universidade de Columbia e profissional de mídia S. Craig Watkins, em seu livro Hip Hop Matters – Politics, Pop Culture, and the Struggle for the Soul of a Movement, o hip hop é “uma fonte vital de criatividade e empreendimento para a juventude”. E acrescenta: “O hip hop é consumido como um fenômeno pop e com a credibilidade das ruas – e é capaz, muitos acreditam, de transformar vidas jovens”.
Nascida na periferia de Nova York, mais precisamente no apocalíptico Bronx das décadas de 1960/70, onde gangues violentíssimas disputavam a atenção com os milhares de incêndios propositais em busca do dinheiro do seguro para suprir a pobreza extrema, a cultura hip hop não surgiu, segundo dizem, como algo especificamente de protesto. Suas primeiras motivações foram o apaziguamento das gangues, que foi conseguido numa lendária reunião na qual os líderes de todas as gangues entraram num acordo por uma trégua; isso ocorreu após a morte de um membro de uma das gangues que, curiosamente, era considerado por todos e tinha a função de ser um mediador de conflitos. Após a trégua, as gangues começaram a frequentar as festas promovidas por Kool Herc – considerado o pai do hip hop –, Grandmaster Flash – o aperfeiçoador – e Afrika Bambaataa – o ex-líder de gangue e aglutinador cultural. Essa interessante história pode ser conferida no excepcional documentário Rubble Kings e na série-documental Hip Hop Evolution, que está na terceira temporada no Netflix. Das disputas de mixagens com dois toca-discos, dança e rimas – que serviam, no início, despretensiosamente, para entreter as festas – surgiu uma das culturas mais sólidas da América. Há quem diga que o rap tenha nascido no séc. 15, através de um poeta inglês chamado John Skelton, cujas rimas em verso tônico, trazidas por imigrantes ingleses e escoceses, teriam influenciado os escravos; entretanto, para além das disputas por originalidade, o rap se consolidou como uma música que mostra, com uma grande variedade de estilos, não só a capacidade criativa da juventude, mas um tipo particular de crítica social bastante poderoso. Artistas de hip hop estão no Rock and Roll Hall of Fame, e músicas como Rappers Delight, de Sugarhill Gang, The Message, de Grandmaster Flash and Furious Five, Dear Mama, de 2Pac, e os álbuns Fear of a Black Planet, de Public Enemy e Feet High and Rising, do De La Soul, figuram nos registros da Biblioteca do Congresso Nacional.
Voltando ao reality Ritmo + Flow, cujos jurados são os astros do gênero T.I. Harris (3 Grammy) Cardi B (1 Grammy e 2 Guinness World Records) e um dos mais geniais artistas da atualidade, Chance The Rapper (3 Grammy) – e que ainda conta, entre seus produtores, com John Legend – o que vemos é uma produção excepcional! Oferecendo um prêmio de 250 mil dólares sem compromissos contratuais, a série penetra, de maneira bastante emocional e delicada, na vida de trinta jovens, escolhidos a dedo em audições que ocorreram em Nova York, Los Angeles, Atlanta e Chicago, e vai nos revelando, a cada história, a cada episódio, a cada eliminação, o quanto a vocação, no sentido mais espiritual do termo (há um vídeo meu sobre o tema), pode gerar um espaço para a criatividade e para a perseverança mesmo diante das mais difíceis situações. Conhecemos, por exemplo a história de King Viibe, de 23 anos, que perdeu dois irmãos para violência de gangues, e a irmã para violência doméstica, e tenta, através do rap, superar suas enormes perdas; também o talentosíssimo Troyman, de 27 anos, cuja mãe morreu de overdose e o deixou responsável por dois irmãos menores. Caleb Colossus, de 23 anos, que, diante de todas as dificuldades por investir em sua carreira – a preocupação de sua mãe e com um emprego – produz um clipe de rap maravilhoso, chamado Michelangelo, cheio de referências ao artista e cientista da Renascença. A triste história de Jakob Campbell, um garoto branco de 20 anos, de Chicago, cujo pai, alcoólatra e drogado, espancava a mãe; hoje ela só tem aos dois filhos, trabalha em três empregos e eles moram, com muita dificuldade, num único cômodo. D Smoke, 33 anos, um professor de espanhol e produção musical no ensino médio, em Inglewood (CA), uma cidade cheia de gangues e violência. Seu testemunho é interessantíssimo, pois ele diz que seu pai ficou preso desde que ele nasceu até os seus nove anos, e que sua mãe, cantora, recusou uma oferta para trabalhar, como backing vocal, para ninguém menos que Stevie Wonder por causa dos filhos. Mesmo assim, diz que o pai foi bem recebido em seu retorno para casa e que foi a sua presença que o tirou das ruas e do envolvimento com gangues; que foi seu pai que, não querendo para os filhos a mesma vida que teve, os estimulou a estudar música e fazer faculdade. O pai de Ali Tomineek, de 22 anos, diz, numa cena em que conversa com o filho: “meu sonho é que meus filhos tenham uma vida melhor que a minha. Quando você tinha nove meses, dormimos no carro, pois eu tinha três prestações atrasadas e dez dólares; mas não desistimos”. A linda e talentosa Londynn B, de 23 anos, que é homossexual e cria a filha com uma parceira. Ou, ainda, Felisha George, que, ao ser eliminada, disse: “não tenho derrotas, só tenho aprendizados”. A final é digna de premiações como Grammy e Oscar. Em dez horas, com a ajuda de produtores famosos, os quatro finalistas criam apresentações icônicas, que ficarão na memória de todos os que assistirem. O nível alcançado por esses jovens é impressionante.
É evidente que, em termos de letra, o rap (com sua profusão de palavrões e xingamentos) só pode ser chamado de poesia com muitas ressalvas – com raras exceções, como o precursor Grandmaster Caz (que tirava inspiração de Barry Manilow e Simon & Garfunkel para fazer suas rimas) e o lendário Gil Scott-Heron, cuja letra The revolution is not televised se tornou uma marca do movimento negro dos anos 1970. No entanto, a criatividade e a concentração atingidos, nos curtos períodos que os jovens artistas de Ritmo+ Flow tiveram para compor e montar apresentações durante a competição, demonstram a capacidade singular daqueles que vão passando de fases e chegam até a grande final.
Por isso, reafirmo: ainda que o rap, por ser um estilo de música que dialoga muito (às vezes se envolve simbioticamente) com a criminalidade, a violência e o uso de drogas, e seja cercado de enormes controvérsias, a experiência de elevação espiritual conseguida com a série Ritmo + Flow é de tal ordem de grandeza, que coloca o gênero, para mim, por sua história, seu desenvolvimento, amadurecimento, capacidade criação e – sobretudo – de transformação de vidas, na mais pura expressão da alta cultura.
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