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“O nosso movimento é um movimento alternativo, não pertence à direita e nem à esquerda.” (Mano Brown, em entrevista ao podcast Pronto, Falei!, em 2020)
Na complexa reflexão sobre o conceito de cultura que T.S. Eliot faz em seu clássico Notas para uma definição de cultura, há um ponto interessante, em que ele afirma: “O antropólogo pode estudar o sistema social, a economia, as artes e a religião de uma determinada tribo, pode até estudar as suas peculiaridades psicológicas; mas não é simplesmente observando em detalhe todas essas manifestações, e reunindo-as, que ele se aproximará de uma compreensão dessa cultura”. Essa afirmação vai ao encontro daquilo que Eric Voegelin chama de autointerpretação de uma sociedade e sua análise por acadêmicos: “Quem quer que tente interpretar de uma maneira noética e crítica a ordem do homem, da sociedade e da história, verifica que, ao tempo desta tentativa, o campo já está ocupado por outras interpretações. Pois cada sociedade é constituída por uma autointerpretação de sua ordem, e é por isso que cada sociedade conhecida na história produz símbolos – míticos, revelatórios, apocalípticos, gnósticos, teológicos, ideológicos, e assim por diante – pelos quais expressa sua experiência de ordem” (Anamnese).
O leitor sabe de minha admiração e meu envolvimento com a cultura hip hop – já manifesto em artigos aqui, nesta Gazeta do Povo. Procuro sempre enfatizar os aspectos positivos dessa cultura que, em muitos sentidos, moldou o meu caráter e direcionou minhas aspirações. Faço questão de combater o discurso preconceituoso daqueles que confundem o caráter subversivo, contestatório e incisivo do hip hop com apologia à violência ou ao crime – aliás, como se vê na discussão atual, sobre o PL Anti-Oruam (sobre o qual também escrevi). O hip hop é uma expressão cultural de resistência, de autoafirmação negra num país cuja história carrega o peso de quase 350 anos de escravidão; peso esse ainda não suficientemente atenuado, mas transformado numa persistente cultura de subalternização.
Dito isso, penso que também seja necessária a defesa dessa cultura, tão diversificada, ampla e livre, de seu rapto ideológico. Há, no hip hop brasileiro atual, sobretudo entre os rappers e admiradores mais jovens, a ideia de que o hip hop é de esquerda. Ou seja, nem mesmo uma cultura periférica, autônoma, criada e vivida por pessoas imersas na intuição e na sensibilidade criativa do senso comum, escapou do oportunismo político e das disputas alheias à sua origem.
Afirmar, categoricamente, o hip hop como uma cultura de esquerda é fruto não de uma convicção intelectualmente honesta e refletida, mas da total incompreensão do que ser de direita significa
Como digo num artigo anterior desta coluna, “o hip hop se tornou, ao longo do tempo, uma das mais importantes expressões culturais dos séculos 20/21, movimentando bilhões de dólares por ano, criando tendências e transformando vidas. E é quase impossível negar que se trata de uma cultura rica e versátil, que, atualmente, [pelo menos nos EUA, seu berço] domina não só a consciência dos jovens, mas o mainstream cultural e midiático, estando presente em praticamente tudo que se produz no universo audiovisual”. Quase não se ouve esse discurso ideológico específico no hip hop americano – nem mesmo no brasileiro dos primeiros anos –, uma vez que eles abraçaram a perspectiva capitalista, do poder, da ascensão e da autoafirmação que o dinheiro proporciona.
Desde a estética – com as roupas de grife, as joias imponentes (e até exageradas), os carros de luxo e tudo o mais que amam ostentar – até as letras, o hip hop americano é essencialmente voltado ao capitalismo. Snoop Dogg, por exemplo, em seu mais novo álbum, Missionary, mostra isso na letra de Skyscrapers, em que conclama os negros jovens e empreendedores a se apropriarem do capitalismo. Há muitos rappers milionários não só por causa do hip hop, mas de sua atividade empresarial. Dr. Dre, com o fone Beats; Master P, com sua marca de cereal; Jay-Z, que, atualmente, com sua produtora, Roc Nation, comanda o milionário show do intervalo do Super Bowl; e tantos outros são a expressão de sua visão voltada não para a militância ressentida e limitante da esquerda, com seu igualitarismo utópico, mas para a ascensão social que, inclusive, faz mais por suas comunidades do que o governo.
Não estou dizendo que rappers, individualmente, não podem ser de esquerda. Óbvio que podem. E podem inclusive expressar isso em suas letras, como, aqui no Brasil, por exemplo, fazem GOG e Eduardo Taddeu. E sou capaz de admitir que a crítica social contundente do rap tem uma forte conexão, em sentido bastante amplo, com o progressismo. O problema é querer afirmar, categoricamente, como tenho visto, o hip hop como uma cultura de esquerda. Tal afirmação é fruto não de uma convicção intelectualmente honesta e refletida, mas da total incompreensão do que ser de direita significa. É só uma reação baseada na caricatura que a própria esquerda criou a respeito de sua antítese. A esquerda afirma ser a favor dos oprimidos, enquanto acusa a direita de ser a favor dos opressores. Ignoram, por exemplo, que o abolicionismo foi um movimento de direita. Que a Frente Negra Brasileira, até hoje a maior organização de movimento negro da história (depois do abolicionismo), foi uma organização de direita. Ignoram as irmandades católicas negras e todas as iniciativas liberais do século 20, como o Clube Aristocrata e o Teatro Experimental do Negro, por exemplo. Ou seja, ignoram os conceitos e a realidade e se apegam às distorções.
Marcus Garvey, que também influenciou sensivelmente a cultura hip hop com seu panafricanismo – na música Show ʼEm Whatcha Got, do Public Enemy, por exemplo –, era cristão e frontalmente anticomunista. Malcolm X, que era muçulmano, ligado à Nação do Islã (NOI) até 1965, só mostrou um alinhamento ao marxismo (na verdade, uma posição crítica ao capitalismo) após sair da NOI, quando buscava caminhos para sua militância em favor dos negros. E apesar de ter feito afirmações como “não há capitalismo sem racismo” e ter se aproximado de trotskistas pelo apoio desses à sua luta, afirmou também, em carta a Michael S. Handler, em 1965, algo que os militantes de esquerda preferem esconder:
“Não sou antiamericano, contrário às características e aos interesses americanos, sedicioso ou subversivo. Não acredito na propaganda anticapitalista dos comunistas, nem na propaganda anticomunista dos capitalistas [...]. Sou a favor de qualquer um e de qualquer coisa que beneficie a humanidade (os seres humanos) inteira, seja capitalista, comunista ou socialista, porque todos têm suas vantagens e desvantagens [...]. Sou um muçulmano que acredita, do fundo do coração, que só Alá é Deus e que Muhammad ibn Abdullah... é o Último Mensageiro de Alá – mas alguns de meus amigos mais queridos são cristãos, judeus, budistas, hindus, agnósticos e até ateus – alguns são capitalistas, socialistas, conservadores, extremistas... alguns são até ʻPai Tomásʼ – alguns são negros, marrons, vermelhos, amarelos e alguns até brancos. Todos esses ingredientes (características) religiosos, políticos, econômicos, psicológicos e raciais são necessários para formar uma Família Humana e uma Sociedade Humana completa.” (citado por Manning Marable em Malcolm X – Uma vida de reinvenções)
No Brasil, letras como “Cada um por si” e “O Livro da Vida”, do grupo Sistema Negro; “Viajando na Balada”, do SNJ; “Mova-se” e “H. Aço”, do DMN; “Negro Limitado” e “Voz Ativa”, do Racionais, podem, tranquilamente, ser analisadas de uma perspectiva conservadora sem nenhum demérito. Mas e é preciso, primeiro, deixar cair as escamas dos olhos e abrir o entendimento. Não podemos medir ideias alheias pela nossa ignorância.
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Voltando a Eliot e Voegelin, os intelectuais, que influenciaram – quando não, doutrinaram – os rappers e militantes brasileiros, não podem ignorar a autointerpretação das sociedades, consequentemente, de suas culturas. A interpretação acadêmica de uma realidade social não pode partir das teorizações, mas de fatos, de dados da própria realidade. E é preciso ter consciência de que nenhuma interpretação é capaz de abarcar a complexidade da realidade, pois, como diz Eliot:
“Entender a cultura é entender o povo, e isso significa uma compreensão imaginativa. Tal compreensão nunca pode ser completa: ou é abstrata – e a essência escapa – ou então é vivida; e, sendo vivida, o estudioso tenderá a identificar-se tão inteiramente com o povo que estuda que perderá o ponto de vista a partir do qual era compensador e possível estudá-lo. A compreensão envolve uma área mais extensa do que aquela de que se pode ter consciência; não se pode estar dentro e fora ao mesmo tempo. Aquilo que normalmente chamamos de compreensão de outro povo, logicamente, é uma aproximação da compreensão que fica perto do ponto no qual o estudioso começaria a perder alguma essência de sua própria cultura. O homem que, para compreender o mundo interior de uma tribo canibal, tenha aderido à prática do canibalismo provavelmente foi longe demais: nunca mais poderá ser de fato um dos seus, novamente.”
Mano Brown, líder do Racionais MCʼs, que tem, sim, uma aproximação com o PT e com a esquerda, não é ingênuo. Em complemento ao que ele diz na epígrafe, afirmou: “Eu não sou do PT, eu sou da ideia. Não sou filiado ao PT, não recebo nada do PT. Nunca quis e não é pra isso que eu fiz nada. O rap não tá aí pra viver de dinheiro do governo, seja lá quem for; nem do PT. Nem que fosse um governo do Che Guevara, nem que fosse o Malcolm X o presidente, o rap não tá aí pra viver com dinheiro de presidente, dinheiro de governo”. Ou seja, o maior representante do hip hop nacional não quer ser guardinha do hip hop, pois entende que uma cultura não pode ser aprisionada. Estou com ele nessa.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




