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Pedro Américo, "Paz e Concórdia"(1895). Foto: Wikimedia Commons
Pedro Américo, "Paz e Concórdia"(1895). Foto: Wikimedia Commons| Foto:

Ao amigo prof. Thomas Giulliano

Quando o arco-íris surgia, eu ia correndo na sua direção. Mas o arco-íris estava sempre se distanciando. Igual aos políticos, distantes do povo. Eu cansava e sentava. Depois começava a chorar. Mas o povo não deve cansar. Não deve chorar. Deve lutar para melhorar o Brasil para os nossos filhos não sofrerem o que estamos sofrendo. (Carolina Maria de Jesus)

Dias atrás me perguntaram se a dificuldade que temos em compreender o conservadorismo no Brasil – que atualmente, ao que parece, vem sendo confundido com o reacionarismo político – não se deve à ausência de uma tradição conservadora brasileira. O ressurgimento das ideias conservadoras em nosso país tem se dado via pensadores estrangeiros e se fundamentado – aparentemente – numa tradição americana e anglo-saxã. Autores como Roger Scruton, Theodore Dalrymple, Edmund Burke e Russell Kirk são frequentemente citados – inclusive por mim – como fonte para a apresentação e conceituação do conservadorismo.

No entanto, é importante notar que o conservadorismo brasileiro, do ponto de vista político, existe desde o Império, representado pelo Partido Conservador, fundado em meados de 1836, por Bernardo Pereira de Vasconcelos, e que reuniu figuras como Barão do Rio Branco, Duque de Caxias e Nabuco de Araújo (pai de Joaquim Nabuco, que depois mudou para o Partido Liberal, no qual o filho também se filiou). No entanto, a consciência conservadora no Brasil, de acordo com Paulo Mercadante em seu livro homônimo, existe desde sua formação, pela influência católica e também pelos desafios naturais de adaptação. Nas suas palavras sobre os bandeirantes: “A psicologia daquele pioneirismo afetava-se por essa cautelosa penetração, a princípio exigida pelos fatores da xerografia misteriosa, em seguida, pela necessidade de salvaguardar-se dos ataques de surpresa”. Ou seja, nas palavras de Teodoro Sampaio, ecoadas por Mercadante, a função do conquistador era “moderar a descida, impedir que a marcha se precipite”. Sem contar que há, incontestavelmente, uma tendencia conservadora natural no ser humano.

É evidente que, quando se trata de política, não há um conservadorismo global, pois cada nação tem suas peculiaridades, que devem ser respeitadas a fim de manterem sua unidade. Mas o conservadorismo é, primariamente, uma postura e uma visão de mundo. Como diz Michael Oakeshott em seu livro Conservadorismo (Âiné): “Ser conservador é estar inclinado a pensar e agir de certas maneiras; significa preferir alguns tipos de condutas e algumas circunstâncias de condições humanas a outras; é ter uma tendência a fazer alguns tipos de escolhas”. E complementa:

As características gerais não são difíceis de discernir, embora muitas vezes tenham sido apontadas de forma equivocada. Elas giram em torno da ideia da propensão desse personagem histórico em usar e aproveitar o que se encontra disponível ao invés de ir atrás ou de inventar algo novo; regozijar-se com o presente e não com o passado ou com o que possa vir a acontecer. A reflexão pode suscitar certa gratidão pelo que está disponível, e portanto o reconhecimento de um presente ou uma herança do passado; ainda que não haja idolatria alguma ao que meramente jaz no passado.

Por tais características, é fácil notar, na tradição intelectual conservadora brasileira, muitos nomes importantes, dentre os quais, se destacam – no Império: José Bonifácio de Andrada e Silva, André Rebouças, Joaquim Nabuco, Visconde de Taunay, Visconde do Uruguai e o próprio D. Pedro II; e nos tempos republicanos, temos intelectuais igualmente exemplares como Gilberto Freyre, Paulo Francis, Roberto Campos, Carlos Lacerda e João Camilo de Oliveira Torres. Deste último, gostaria de destacar algumas ideias, a fim de compreendermos a natureza de uma tradição conservadora em nosso país, que pode nos ajudar nesse momento tão crucial. Mas, antes, algumas informações biográficas.

João Camilo de Oliveira Torres nascem em Itabira, Minas Gerais, em 31 de julho de 1915. Formado em Filosofia, foi jornalista, historiador, sociólogo e, sem sombra de dúvida, um dos maiores nomes do conservadorismo brasileiro. Trabalhou no Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários (IAPC) e no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) – e já alertava, no final da década de 1960, que o regime previdenciário brasileiro estava fadado ao colapso. Membro da Academia Mineira de Letras e do Instituto Mineiro de Geografia e História, foi um escritor prolífico, autor de mais de 40 obras, com destaque para aquelas que fazem parte de sua coleção Introdução à história das ideias políticas no Brasil, idealizada em doze volumes, dos quais foram publicados dez. Dentre eles, A democracia coroada, O positivismo no Brasil, Interpretação da realidade brasileira e A ideia revolucionária no Brasil são indispensáveis. Morreu em 31 de janeiro de 1973, deixando um legado fundamental para a compreensão do conservadorismo brasileiro.

João Camilo tem como premissa que o conservadorismo é “antes um ‘estado de espírito’ do que um sistema racionalmente fundado”. E complementa, na mesma linha de Oakeshott, em Os construtores do Império (Ed. Câmara dos Deputados):

Poderíamos definir conservadorismo do seguinte modo: é uma posição política que reconhece que a existência das comunidades está sujeita a determinadas condições e que as mudanças sociais, para serem justas e válidas, não podem quebrar a continuidade entre o passado e o futuro. Podemos dizer que o traço mais característico da psicologia conservadora consiste, exatamente, no fato de que não considera viáveis as transformações e mudanças feitas sem o sentido da continuidade histórica − mais: o conservador acha impraticáveis e condenadas ao suicídio todas as reformas fundadas unicamente na vontade humana, sem respeito às condições preexistentes.

Essa definição é, de fato, universal, e é precisa para separar o que é conservadorismo das suas degenerações, o imobilismo– “uma posição que não aceita qualquer espécie de mudança, que pretende que a situação atual se mantenha sem qualquer modificação” – e o reacionarismo – que “nega o tempo, igualmente e de maneira mais radical do que o imobilista, pois pretende que ele reflua: quer que o rio volte à fonte, que a árvore retorne à condição de semente”. Por outro lado, o conservador tem a alma voltada para a ordem, e sabe que, para que ela se estabeleça e se mantenha, as mudanças são imprescindíveis; ou seja: “somente podemos conservar reformando”. As reformas devem obedecer o fluxo do tempo, e, em, geral, o conservador é reativo em relação a elas; percebendo a demanda, ele age para evitar que uma revolução se estabeleça. Nas palavras de João Camilo, em O elogio do conservadorismo (Arcadia): “no fundo, o conservador não é um homem que quer voltar ao passado – mas que deseja chegar vivo e em boas condições no futuro”.

Ainda há o oposto do conservadorismo, que é o progressismo – e, em sua forma aguda, o revolucionarismo. Os progressistas creem que “a história é sempre um campo em que se realiza, automaticamente, um progresso continuado, e onde, pois, o novo é sempre bom […] Os progressistas e revolucionários nada querem conservar − o antigo é velho e feio − só o moderno presta”.

João Camilo, em A ideia revolucionária no Brasil (Ed. Câmara), traz uma definição bastante detalhada do conceito de revolução, diferindo dos marxistas, que consideram as revoluções como “movimentos e transformações que, de um modo ou de outro, refletem a concepção dialética da história”. Para ele, as revoluções atendem duas condições: “a) a ruptura do processo histórico anterior e b) o emprego maior ou menor da violência”. Em muitos casos, é o imobilismo histórico que as provoca; a falta de percepção das demandas sociais pode suscitar o furor pela mudança radical. Diz João Camilo:

Toda situação histórica, como diz muito bem Toynbee, representa um peculiar desafio da realidade à vontade humana. Esta, então, reage e constrói, por assim dizer, um conjunto de instituições que lhe servem de carapaça protetora e de ‘mediador plástico’ entre o homem e a situação em que se encontra. Essa carapaça protetora, com o tempo, e por uma lei natural, se torna em algo sólido e resistente que estabelece um conjunto rígido de hábitos, existenciais e mentais, que terminam, literalmente, aprisionando o homem à sua situação, de tal modo que se vê, logo, impedido de ver os valores colocados fora do raio de ação e de seu horizonte histórico. O homem torna-se, afinal, prisioneiro de suas próprias obras e não compreende o que está além de sua situação; ele não verifica o aparecimento de novos problemas e de um novo desafio.

A sociedade e os governantes precisam estar atentos a isso. O surgimento de problemas que requerem a ação dos agentes políticos, ou mesmo situações novas, no tecido social, que exigem a posição e/ou adequação da sociedade, devem ser observadas com atenção. O conservador é alguém sensível a tais demandas, e sabe que “as catástrofes são evitadas quando há o reconhecimento, por vezes doloroso, da presença de forças contrárias, frente a frente, ofendendo o gosto natural de todos os homens de somente aceitarem a presença dos que concordam com seus pontos de vista”. Somente a prudência conservadora pode vencer as revoluções, bem como imobilismo e o reacionarismo.

E um último aspecto a ser considerado na obra de João Camilo, a fim de compreendermos e reconhecermos a tradição conservadora em nosso país, passa pela compreensão das ideologias, que são doutrinas baseadas não na observação da realidade concreta, mas em distorções da vontade humana. O imobilismo, o reacionarismo e o progressismo são exemplos. De acordo com João Camilo, as ideologias “nascem de um primado da vontade sobre o conhecimento”, e se propagam por causas psicológica sou sociológicas. Sobre as causas psicológicas, diz ele:

Há motivações psicológicas perfeitamente definidas. Talvez a mais importante das bases psicológicas para a formação de ideologias é a ligada ao ressentimento […] Para resumir, podemos dizer que o ressentido nega o valor daquilo que não pode atingir. O ressentido passa a considerar mau o bom, pequeno o grande, feio o belo, simplesmente por estar fora do alcance de seu poder, como a raposa da fábula que considerou verdes as inatingíveis uvas.

João Camilo emprega as palavras de Max Scheler, que afirma: “o ponto de partida mais importante na formação do ressentimento é o impulso de vingança”. É próprio das ideologias se apoderarem de causas legítimas e transformá-las em ferramentas de ação revolucionária (ou reacionária); elas transformam o inconformismo em ressentimento, e fomentam o impulso vingativo que deseja derrubar o que está estabelecido. Sua finalidade é erigir uma segunda realidade, ideológica, que certamente ruirá e causará danos sociais (às vezes irreparáveis).

Isso nos leva às causas sociológicas. Diz João Camilo:

A importância dos fundamentos sociais na formação e difusão das ideologias não precisa ser assinalada com muita ênfase, pois o marxismo elevou isto à condição de princípio universal, em bases por assim dizer totais e em proporções muito exageradas. O erro essencial do marxismo, no caso, pode ser capitulado em estabelecer uma ligação direta entre a classe social estritamente considerada e a ideologia e de haver transformado isto em princípio único, o que é, obviamente, falso. É, quiçá, perigoso afirmarmos existirem ideologias especificamente burguesas ou proletárias.

A transformação, por exemplo, de determinada parcela da sociedade – as chamadas minorias sociológicas– em párias absolutos, não visa a solução de seus problemas, mas, tão somente, criar um clima de ressentimento perpétuo que possibilite ter sempre à mão um exército de revoltados manipuláveis.

Mas o conservadorismo é a negação das ideologias. Trata-se de “fazer com que as transformações não façam, nunca, o carro saltar fora dos trilhos – mantém a sociedade em seu lugar, acomoda as reformas, serve de freio, de lastro”.

No Brasil atual, onde o clima de convulsão social – por conta dos escândalos de corrupção recentes – já dura alguns anos, só há uma solução viável: a reconstrução de nossa disposição conservadora, de nossa imaginação moral. Que resgate, pacientemente, os valores construídos ao longo dos séculos, que foram soterrados por toneladas de ideologias nos últimos cinquenta anos. Que as ideias de João Camilo possam nos ajudar a recuperemos nossa verdadeira história, cuja beleza, segundo Gilberto Freyre, “construída sobre antagonismos”, formou um país verdadeiramente peculiar. Isso feito, não será difícil sermos, como fomos no passado, uma nação admirada por todas as outras.

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