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– Minha vida é um cemitério de esperanças enterradas. Li essa frase em um livro certa vez e a repito como consolo sempre que me decepciono com alguma coisa.

– Não vejo onde está o consolo nisso – disse Marilla.

– Ora, é porque soa tão bem e tão romântico, como se eu fosse a heroína de um livro, sabe?

[…]

– Eu não vejo como minha cabeça conseguirá inventar coisas tão arrepiantes, Anne. Eu queria que minha imaginação fosse tão boa quanto a sua.

– Ela seria se você a cultivasse – respondeu Anne para animá-la. (Lucy M. Montgomery, Anne de Green Gables)

Acho que já disse algures que o primeiro livro que li na vida foi Dom Casmurro, do imortal Machado de Assis. Não tive uma infância de leitor e, em meu período escolar, eu simplesmente não lia os livros que eram solicitados – por isso perdi a oportunidade de, à época, ter contato com a arqui-famosa Série Vaga-Lume. Mas a história de Capitu e Bentinho me fisgou; eu simplesmente não conseguia parar de ler. Dom Casmurro provocou em mim aquilo que C. S. Lewis diz que ocorreu a ele na leitura de Squirrel Nutkin, de Beatrix Potter: “ministrou o choque”.

Após algumas leituras aleatórias, sobretudo os quatro primeiros sucessos literários de Paulo Coelho – O Diário de um mago, O Alquimista, Brida e As Valquírias –, que li com muito gosto (li O Alquimista, fissurado, em um dia), minha visão sobre a literatura mudou por completo quando tomei contato com um livro que meu saudoso pai, ao perceber meu entusiasmo pela literatura, passou a insistir que eu lesse: O Egípcio, do finlandês Mika Waltari. Um livro volumoso, que meu pai tinha numa edição bastante antiga, de 1955 (hoje uma de minhas maiores heranças), e que eu, jovenzinho, achava antiquado demais para sair à rua. (Vale lembrar que, à época, final da década de 1980, eu já trabalhava com meu pai, que era advogado, como office-boy (profissão extinta), oportunidade que eu tinha para ler, no transporte público, enquanto visitava repartições e clientes, levando ou trazendo documentos). Mas ele insistiu, dizendo: “se você ler três páginas desse livro não conseguirá parar de ler”. Dito e feito. Fui capturado logo na introdução:

Eu Sinuhe, filho de Senmut e de sua mulher Kipa escrevo isto. Não o escrevo para a glória dos deuses da terra de Kan, porque estou cansado de deuses, nem para a glória dos faraós porque estou cansado de seus feitos. Tampouco escrevo por medo ou por qualquer esperança no futuro; escrevo para mim, apenas. O que vi, conheci e perdi durante a minha vida, foi coisa demasiada para que me domine um vão temor e, quanto a algum desejo de imortalidade, estou tão exausto disso quanto dos deuses e dos reis. É apenas por minha causa que escrevo, por tal motivo e essência diferindo eu de todos os escritores passados e vindouros.

A tradução soberba de José Geraldo Vieira engrandece sobremaneira a narrativa. A saga de Sinuhe é uma das coisas mais impressionantes já escritas, e me fez compreender o verdadeiro poder da literatura, e após a leitura dessa obra-prima nunca mais fui o mesmo. Outro livro que mudou a minha vida foi a autobiografia do poeta e monge trapista Thomas Merton, A montanha dos sete patamares, responsável por despertar minha vocação para a docência.

Diante desse breve relato autobiográfico, é fácil perceber, prezado leitor, o quanto a literatura tem sido importante em minha vida; e após dedicar algum tempo ao estudo dessa importante atividade humana, sinto-me feliz por, um dia, ter sido despertado a ela por Machado de Assis e por todo o estímulo vindo de meu amantíssimo pai, Antônio da Cruz, de quem sinto uma saudade do tamanho do mundo. Não é à toa que Platão disse, na República, que Homero havia sido o “educador da Grécia, e que é digno de se tomar por modelo no que toca a administração e a educação humana”, pois o poeta, com suas tragédias e hinos, foi, como diz Werner Jaeger, “mestre da humanidade inteira” por ter demonstrado “a capacidade única do povo grego para chegar ao conhecimento e à formulação daquilo que une e move todos nós”. Não que o poeta épico tenha sido a única ou principal fonte moral do Ocidente, mas, certamente, a formação do imaginário ético e estético ocidental deve muito a ele.

Porém, alguns ainda podem não ver tanto sentido na ideia de que a literatura é boa para todo mundo, e pensarem que trata-se somente de uma questão de gosto. Por isso considero válido tentar responder à pergunta: “para que serve a literatura?”

Umberto Eco, em Sobre a literatura, nos diz que é possível elencar ao menos três funções para a literatura, a saber: 1) “A literatura mantém em exercício, antes de tudo, a língua como patrimônio coletivo”; 2) contribuindo para formar a língua, “cria identidade e comunidade”; e 3) “a leitura de obras literárias nos obriga a um exercício de fidelidade e de respeito na liberdade de interpretação […], pois propõem um discurso com muitos planos de leitura e nos colocam diante das ambiguidades da linguagem e da vida”. Ou seja, podemos dizer que a literatura tem uma função civilizatória, pois “o mundo da literatura é um universo no qual é possível fazer testes para estabelecer se um leitor tem o sentido da realidade ou se é presa de suas próprias alucinações”. Mortimer J. Adler vai além em seu Como ler livros, fazendo uma diferenciação entre leitura ativa e passiva: “Dado que toda leitura consiste em uma atividade, então toda leitura tem de ser ativa. A leitura totalmente passiva é algo impossível – afinal, não conseguimos ler com os olhos paralisados e com a mente adormecida. Por conseguinte, ao compararmos a leitura ativa com a leitura passiva, nosso objetivo será mostrar que a leitura pode ser mais ou menos ativa e, ademais, que quanto mais ativa, tanto melhor”. E e leitura ativa, nesse sentido, “é o processo por meio do qual a mente se eleva por conta própria, isto é, sem mais nada com o que operar a não ser os símbolos contidos no livro. A mente deixa de entender menos e passa a entender mais. As operações técnicas que tornam possível tal elevação são os diversos atos que compõem a arte de ler”.

Tal diferenciação que faz Adler é importante, pois reforça uma distinção entre aqueles que C. S. Lewis, em A experiência de ler – ou Um experimento em crítica literária, chama de bom leitor e mau leitor. O mau leitor – ou iliterato – está entre aqueles que, dentre de suas principais características, “a não ser por obrigação, nunca leem nada que não seja narrativo. Não quero com isto pretender que só leiam ficção. O pior dos leitores é aquele que se fica pelas ‘notícias’ […] Mas entre este leitor e o da classe imediatamente acima – a dos que leem o tipo mais inferior de ficção – não existe uma diferença essencial […] Não têm ouvido. Leem exclusivamente com os olhos. Para eles, as mais hediondas cacofonias e os mais perfeitos exemplos de ritmo e melodia vocálica são perfeitamente iguais. É por aí que descobrimos como algumas pessoas de elevada formação cultural não têm qualquer sensibilidade literária”. Ou ainda são aqueles que “exigem narrativas de ritmo rápido. Tem de estar sempre alguma coisa a ‘acontecer’. As suas formas de condenação favoritas são ‘lento’, ‘muito descritivo’ e por aí afora”. Já sua descrição do bom leitor ou do que busca este na literatura, é diga da longa citação, paciente leitor:

Qual é então o valor - ou qual é mesmo a sua justificação – de ocuparmos os nossos corações com histórias sobre o que nunca aconteceu e aceder, por interposta pessoa, a sentimentos que devíamos tentar evitar em nós próprios? Ou de fixar o nosso olhar interior em coisas que nunca poderão existir, como o paraíso terreal de Dante, Tétis erguendo-se do mar para confortar Aquiles, a Dama Natureza de Chaucer, ou Spenser, ou o navio espectral do Velho Marinheiro? […] O mais próximo que até hoje cheguei de conseguir uma resposta foi ao dizer que buscamos um engrandecimento do nosso ser. Queremos ser mais que o que somos em nós próprios. [...] Queremos ver com outros olhos, fantasiar com outras imaginações, sentir com outros corações, ao mesmo tempo que com os nossos. […] Aqueles de entre nós que toda a vida têm sido verdadeiros leitores raramente se dão conta da enorme extensão do nosso ser que ficamos a dever aos autores. Compreendemo-lo melhor ao falar com um amigo iliterato. Pode ser um poço de bondade e sensatez, mas habita um mundo estreito, onde nos sentiríamos sufocados. O homem que se contenta com ser apenas ele próprio, e por conseguinte em ser menos, vive numa prisão. Para mim, os meus próprios olhos não são suficientes, quero ver através dos olhos de outras pessoas. […] A experiência literária cura a ferida da individualidade, sem lhe minar o privilégio. Há emoções de massa que também curam a ferida, porém, destroem o privilégio. Nestas, os nossos seres isolados fundem-se entre si e recaímos na subindividualidade. Mas, ao ler a grande literatura, torno-me mil seres diferentes, sem deixar de ser eu próprio. Como o céu noturno no poema grego, vejo com uma miríade de olhos, mas sou sempre eu que vejo. Aqui, tal como no ato religioso, no amor, no ato moral e no saber, transcendo-me a mim próprio. E nunca sou mais eu próprio que ao fazê-lo.

Mais uma vez, nessa belíssima descrição de C. S. Lewis, fica evidente o caráter civilizatório da literatura, o quanto ela pode contribuir na formação da nossa imaginação moral e, consequentemente, com nossa vida de razão, pois, como disse Aristóteles em seu Da alma, “a imaginação é algo diverso tanto da percepção sensível como do raciocínio; mas a imaginação não ocorre sem percepção sensível e tampouco sem a imaginação ocorrem suposições”. A literatura é parte fundamental na formação cultural de uma nação, e quanto mais literato é o povo, mais próspera será a sociedade; quanto maior for a comunidade de leitores, maior será a capacidade de discernimento dos indivíduos; e quanto maior for a capacidade de discernimento dos indivíduos, maior será a organização do coletivo. Tal experiência de participação, insisto, é civilizatória.

Há ainda algo importante a dizer sobre os chamados clássicos. Sim, porque há uma diferença entre estes e as obras, digamos, contemporâneas. Um clássico, na acepção de T. S. Eliot em seu ensaio O que é um clássico, “só pode ocorrer quando uma civilização atingiu a maturidade; quando uma língua e uma literatura atingiram a maturidade; e deve ser a obra de um espírito que atingiu a maturidade. É a importância dessa civilização e dessa língua, bem como a abrangência do espírito do poeta individual, que conferem a universalidade […] Uma literatura que atingiu a maturidade, consequentemente, tem uma história atrás de si: uma história que não é meramente uma crônica, uma acumulação de manuscritos e documentos desta espécie e daquela, mas um progresso ordenado, embora inconsciente, de uma língua para realizar as suas próprias potencialidades dentro das suas próprias limitações”. Ao que me parece, com autores como Machado de Assis e Clarice Lispector atingimos esse patamar. Nossa tradição literária é riquíssima, apesar de subvalorizada pelo espírito ultracrítico da contemporaneidade. Escritores como Lima Barreto, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, e poetas como Olavo Bilac Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, são luminares incontestáveis de nossa literatura. Lê-los é uma obrigação intelectual e moral de todo brasileiro.

O escritor italiano Ítalo Calvino diz, em seu volume de ensaios Por que ler os clássicos?, que “os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: ‘estou relendo...’ e nunca ‘estou lendo...’”; ou seja, despertam naqueles que tomam contatos com eles a necessidade de relê-los. Não são obras descartáveis; muito pelo contrário, pois “toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira”, são fontes inesgotáveis de sabedoria e entretenimento. Os clássicos “são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e, atrás de si, os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)”. E arremata Calvino:

A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos. E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran [...]: “Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. ‘Para que lhe servirá?’, perguntaram-lhe. ‘Para aprender esta ária antes de morrer’”.

Que possamos compreender o verdadeiro sentido da literatura e estimular aqueles que estão à nossa volta a se abrirem ao poder transformador dos clássicos.

Ps.: Mortimer J. Adler fornece, ao fim de seu Como ler livros, uma lista com 137 autores e suas principais obras como um guia do que há de mais fundamental para se compreender a cultura ocidental. Não é uma lista exaustiva ou definitiva – não há autores brasileiros, como os citados aqui, neste artigo, nem importantes autores africanos como Wole Soyinka e Ahmadou Kourouma, ou asiáticos como Confúcio e Yukio Mishima –, mas é suficiente para nortear aqueles que quiserem se aventurar pelos clássicos.

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