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O escritor francês Georges Bernanos, em foto de 1929.
O escritor francês Georges Bernanos, em foto de 1929.| Foto: Albert Harlingue/Domínio público

“Há 400 anos na enorme caldeira deste país a massa humana, constantemente mexida e recebendo sempre novas substâncias, está cozinhando. Está esse processo definitivamente terminado, essa massa de milhões de seres já tomou forma própria, já se tornou uma substância nova? Existe hoje já alguma coisa que possamos denominar a raça brasileira, o brasileiro, a alma brasileira?” (Stefan Zweig, Brasil, país do futuro)

Durante o último mês, enquanto o país estava à beira de um colapso – alguns julgam que ainda esteja – por causa das eleições, dias de tensão e apreensão, eu e os dedicados inscritos do meu Clube do Livro líamos Diário de um pároco de aldeia, obra-prima do escritor francês Georges Bernanos. O livro, em tom meditativo, acompanha a penosa trajetória de um jovem vigário, na condução de sua primeira paróquia na pequena cidade de Ambricourt, no norte da França; enquanto registra despretensiosamente o seu martírio em velhos cadernos escolares, segue lutando contra a grave doença física que o acomete, bem como contra a doença espiritual que acomete toda a população local: “Minha paróquia é devorada pelo tédio, eis a palavra”, ele diz.

Bernanos, homem muito católico e combativo – sobre o qual já escrevi algo nesta Gazeta do Povo –, foi, antes de tudo, um escritor singular. Apelidado de “Dostoiévski francês”, por conta de sua habilidade em penetrar, tal qual o escritor russo, nos mais profundos recônditos da alma humana em obras como Sob o Sol de Satã e Senhor Ouine, Bernanos foi também uma metralhadora giratória contra as imposturas do mundo moderno, um crítico veemente dos descaminhos da técnica – que C.S. Lewis chamará de cientificismo – e um arauto do cristianismo devoto e repleto de mística. Foi combatente na Primeira Guerra Mundial e repórter durante o início da Guerra Civil Espanhola.

No Brasil, o escritor francês, que já era admirado no país por sua obra, encontrou não só amizade entre os grandes intelectuais da época, mas também entre os humildes, o povo simples

No entanto, em 1938, em meio às críticas à falta de pulso dos políticos franceses com o avanço de Hitler e do nazismo, e criticando a selvageria de Franco na Espanha, migra para a América do Sul. Chega ao Rio de Janeiro no início de 1938, mas sua intenção era o Paraguai. Vai à Argentina, depois ao Paraguai, mas o Brasil o chama novamente; ele volta e aqui se estabelece. Morou em Itaipava e Vassouras, no Rio de Janeiro; depois partiu para Minas Gerais, onde morou em Juiz de Fora, Pirapora e Barbacena – no icônico lugar “Cruz das Almas”, onde atualmente fica o Museu Georges Bernanos. Aqui, o escritor francês, que já era admirado no país por sua obra, encontrou não só amizade entre os grandes intelectuais da época, mas também entre os humildes, o povo simples do Brasil. Disse ele, no prefácio de seu panfleto epistolar Carta aos Ingleses:

“Caros amigos, não espero, de forma alguma, que tenham recebido de nós [franceses] seu ideal, como afirmam, de maneira demasiado generosa, certos intelectuais. Nestes três anos, a propósito, conheci poucos de seus intelectuais, e todos eles viveram com os camponeses. Não foram, portanto, seus intelectuais que me fizeram compreender os camponeses, mas os camponeses de seu país que me fizeram compreender seus intelectuais – eis a verdade.”

Nesse prefácio, Bernanos faz uma belíssima homenagem ao Brasil, cheia de paixão por nossa terra e por tudo de bom que encontrou aqui. E afirma, grato: “Para mim, o Brasil não é o hotel suntuoso, quase anônimo, em que deixei minha mala enquanto esperava rever o mar novamente e voltar para casa: é meu lar, é minha casa, mas ainda não acho que tenho o direito de lhes dizer, sinto-me demasiadamente agradecido para merecer que me creiam”. E complementa: “Depois de Munique, eu disse que tinha vindo ao Brasil para ʻfermentar minha vergonhaʼ. Não fermentei minha vergonha, mas encontrei o meu orgulho, e ele me foi devolvido por esse público”. Em sua sensibilidade única, viu um Brasil de cultura embrionária e vigorosa, e vislumbrou qualidades em nós que evidenciam um país muito diferente do que conhecemos na atualidade:

“Seu povo cresce como uma árvore, ou compõe-se como um poema, por uma espécie de necessidade interior, da qual o mundo moderno nada entende, pois, precisamente, não tem necessidade interior, pois se impõe de fora, pois é uma vitória monstruosa e efêmera da atividade desordenada dos homens sobre a Natureza e sobre o homem, uma dissipação, um desafio. Seu povo cresce sem saber – como, a partir de agora, também nós crescemos –, o que é a melhor maneira de se desenvolver regularmente, sem correr o risco de perder suas proporções originais, de ser, cedo ou tarde, uma cabeça de gigante sobre pernas de anão.”

Em Barbacena, Bernanos comprou uma pequena fazenda e se misturou ao povo mineiro como ninguém, e se sentiu livre para pensar, escrever e, sobretudo, falar sem constrangimentos. Disse ele, em carta ao editor Joaquim de Salles: “Comprei duzentas vacas, e ganhei de imediato o direito de não me chamar mais de ‘homem de letras’, mas vaqueiro, o que me parece preferível. Como homem de letras e homem do mundo, eu estava preso em um monte de necessidades supérfluas; como vaqueiro, poderei escrever o que penso”. Sebastién Lapaque, escritor, crítico literário e especialista na obra de Bernanos, escreveu Sob o Sol do Exílio – Georges Bernanos no Brasil, publicado pela É Realizações – editora responsável pela Coleção Georges Bernanos –, um livro que narra, de modo detalhado, o período em que o autor de Nova história de Mouchette passou em terras brasileiras. Diz ele:

“Sob os trópicos, Bernanos viveu a errância como uma virtude evangélica. Teve terraços de paquete e cabanas de vaqueiro, varandas de café e pobres casas sem portas nem janelas, cercadas por araras excêntricas e jacarés cor de lama; momentos de esperança e instantes de abandono; gargalhadas e gritos de raiva; crianças revoltadas e parentes prostrados; desencontros e partidas precipitadas. Livre das mãos de Deus, o cristão Bernanos nunca reclamou dessa grande confusão de sentimentos e humores.”

Mas foi entre seus iguais, os escritores e intelectuais brasileiros, que Bernanos encontrou verdadeira comunhão de espírito. Jorge de Lima, Alceu Amoroso Lima, Virgílio de Mello Franco, Augusto Frederico Schmidt, Álvaro Lins, Hélio Pellegrino, Maria Magdalena Ribeiro de Oliveira e tantas outras personalidades de um Brasil que não existe mais; entre eles o ilustre exilado francês viveu dias de angústia e de glória. Lapaque traduz com carinho esse período em sua obra; mas é outra que contém os testemunhos mais vivos e emocionantes acerca da amizade entre Bernanos e os intelectuais brasileiros. O livro Bernanos no Brasil, organizado no fim da década de 1960 por Hubert Sarrazin, um professor francês radicado no Brasil, traz ensaios íntimos e marcantes daqueles que, ainda jovens, conviveram com Bernanos, cuja presença avassaladora tanto amaram. Diz Sarrazin: “É comovedor assistir aos primeiros encontros do mestre, do homem já célebre que esses jovens espíritos aspiram a conhecer e cuja desconcertante rudeza os fascina desde o início. As emoções de Geraldo França de Lima ou do ʻgrupo mineiroʼ, ou mesmo de Dom Paulus Gordan, quando se aproximavam de Bernanos em Barbacena, nos lembram o entusiasmo inquieto dos jovens atenienses que a pessoa de Sócrates subjugava”.

O Brasil que Bernanos conheceu era vivo, imaginativo e emocionalmente sadio. Era um Brasil parecido com ele. Mas esse Brasil, se existiu realmente, não existe mais, morreu

Jorge de Lima, no primeiro e mais comovente texto, que me levou às lágrimas, diz: “Apenas em vez de me falares, de me falares, de me falares sem parar, és como uma sombra que me escutas as palavras terrenas que tu ouves sem me poder responder, pois tua linguagem na eternidade mudou o vocabulário das almas. Agora posso dizer-te as minhas palavras livres e relapsas, as minhas palavras de louvor ou de exaltação sem ferir o homem exíguo que por três vezes recusou a Legião de Honra e três vezes renunciou a postos de comando e três vezes fugiu das ruínas de Babel”. E completa, de modo emocionante:

Nunca paraste Cruz errante. Nunca houve repouso em Bernanos. França, Espanha, Uruguai, África, Barbacena , Pirapora, le sertao sans bornes à mille kilomètres de Rio, nunca houve repouso em Bernanos, Belo Horizonte, Juiz de Fora, Itaipava, Paracatu, le pays des crocodiles couleur de boue, África, África, Paris, é preciso lutar, é preciso lutar, guerra, guerra contra Hitler, contra Franco, contra o Duce, contra Pétain, tu um estropiado, tu um coxo. É preciso lutar, é preciso lutar contra o suborno, contra as capitulações, contra a espionagem, contra a traição, contra a plutocracia, contra os maus bispos, contra os maus católicos, nunca houve descanso em Bernanos. É preciso lutar, lutar contra os campos de concentração, contra a demissão da França, contra le Maréchal guignol politique, é preciso lutar à direita, à esquerda, à retaguarda, contra o visível, contra Satã, contra o invisível, nunca houve repouso em Bernanos. É preciso lutar contra os guias, tu um coxo, é preciso lutar contra as distâncias, Avenida Rio Branco – Pirapora, tu um coxo. É preciso repor os homens, as coisas e os anjos em seus lugares, sob o sol bem vivo está Satã; mas Hitler e o Duce, perfeitamente defuntos quando vivos, é urgente enterrá-los nos grandes cemitérios sob a lua. Mortos, mortos, sob astros mortos. É preciso lutar contra os homens, contra os paisanos e militares, contra estrangeiros e franceses, contra a mentira, contra a verdade que se envergonha do escândalo, contra a impostura, contra a tirania, contra a ubiquidade do mal, contra a velocidade do erro, tu um coxo. Nunca houve descanso em ti. França, África, África, Brasil, Cruz das Almas, Espanha, há cárceres no mundo, hidrofobias nos homens, angústias nas almas abandonadas, desespero nos corações, mutilações, tudo transferiste a ti.”

E, dele, Alceu Amoroso Lima dirá: “Minhas relações pessoais com Bernanos sempre me colocaram num plano de tensão, de hostilidade, de discussão quando era possível falar, e, ainda mais, discutir com um homem torrencial, que falava sozinho, horas inteiras”.

Bernanos, que era monarquista e travou amizade, também, em Petrópolis, com o remanescente da família imperial brasileira, conheceu um Brasil muito distante de nós, o único Brasil capaz de salvar o Brasil atual – e por isso lembrei-me com tristeza de nossa situação tão desgraçadamente vexatória, do abismo que separa aquele Brasil e este. Bernanos conheceu um Brasil de cultura profunda e consciente, dedicada e pujante; um Brasil do qual ele, um dos maiores escritores da história, dizia ter se emocionado ao “descobrir, pouco a pouco, com o passar dos dias, quanto – a despeito das aparências e, frequentemente, sem o conhecimento de tais aparências – suas elites sociais mais refinadas permaneciam perto de suas origens camponesas, de acordo com mil traços profundos e fascinantes”.

O Brasil que Bernanos conheceu era vivo, imaginativo e emocionalmente sadio. Era um Brasil parecido com ele, que reunia, como disse Maria Magdalena Ribeiro de Oliveira, “a extrema ternura e a extrema veemência”. Mas esse Brasil, se existiu realmente, não existe mais, morreu. E isso é uma pena.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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