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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Os evangélicos e a morte do papa

Artista de rua Stefano Buonante faz imagem do papa Francisco em Nápoles, Itália (Foto: EFE/EPA/CIRO FUSCO)

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“O que não dava paz [a Lutero] era o assunto de Deus, que era a paixão profunda e a força de sua vida e seu total itinerário. [...] O pensamento de Lutero, sua espiritualidade inteira, estavam completamente centrados em Cristo.” (Papa Bento XVI, em 2011)

“Lutero deu um passo decisivo colocando a palavra de Deus nas mãos do povo. A importância das reformas e da Bíblia são dois dos elementos fundamentais nos quais podemos ter um apreço mais profundo ao falar da tradição luterana.” (Papa Francisco, em 2021)

Como o leitor já deve saber – e o artigo da semana passada o confirma não sem mais uma infrutífera celeuma –, sou protestante (evangélico, para os íntimos), e creio que ninguém, ou quase ninguém, se converte ao protestantismo em contraposição ao catolicismo. O ativo proselitismo evangélico não se dá pelo contraste, mas, fundamentalmente, pela proximidade e apelo do discurso, digamos, menos institucional. Ao oferecer, de modo sistemático e natural, o consolo para as agruras dessa vida aqui enquanto o Nosso Senhor não volta, o cristianismo evangélico se tornou atrativo, sobretudo em países com mazelas sociais graves. Não levo em consideração aqui, obviamente, a obra do Espírito Santo, que, para quem crê, é o único responsável por levar uma pessoa a Cristo; mas penso na retórica da evangelização.

O que quero dizer é que pouquíssimas pessoas que se convertem ao protestantismo o fazem por discordâncias teológicas com a Igreja Católica. Os principais pontos de discordância, penso eu, são a intercessão dos santos, a assunção virginal de Maria e, por último e não menos importante, a sucessão apostólica. Ou seja, os evangélicos não creem que uma pessoa que morre seja capaz de interceder, junto a Deus, por quem está vivo; também não creem que Maria, mãe de Jesus, que o concebeu por obra do Espírito Santo, tenha se mantido virgem após o seu nascimento e ascendido aos céus sem passar pela morte; e também não creem que o Papa é o Vigário de Cristo, que sucedeu e deu continuidade ao apostolado de Pedro, a quem Jesus teria dito ser a pedra sobre a qual edificaria Sua igreja. Há outras discordâncias, mas julgo que essas são as principais.

Não se trata mais de uma questão de conhecimento, mas de ignorância. Vigário de Cristo ou não, Francisco foi alvo da sanha de crentes que aderiram a um moralismo supostamente conservador que condena o esquerdismo do papa recém-falecido

Não entrarei, obviamente, nessa discussão aqui. Mas, é forçoso admitir que pouquíssimos evangélicos pensam nisso atualmente; a não ser que tenha passado, como eu, por um discipulado profundo, que aborde esses assuntos em algum momento. Já disse aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo, que a apologética foi um dos temas que mais estudei no início de minha conversão. A defesa da fé e o estudos das chamadas “seitas e heresias” ocuparam boa parte dos meus estudos teológicos iniciais, alguns deles, inclusive, que consideravam até a Igreja Católica uma seita – o que hoje reputo como um completo absurdo.

As divergências teológicas oriundas da Reforma Protestante hoje se resumem, basicamente, a essa noção de acesso direto, sem intermediários, hierarquias ou ritos restritos a Deus. A doutrina luterana do Sacerdócio Universal dos Cristãos, de que, como ele mesmo diz em Da Liberdade Cristã, “cada Cristão é tão exaltado sobre todas as coisas pela fé que, em poder espiritual, ele é absolutamente senhor de todas as coisas, para que nada lhe possa causar estragos”, é um ponto fundamental da teologia e da piedade evangélicas, e teve origem em contraposição à exacerbada (e financeiramente onerosa) mediação da Igreja Católica da época de Lutero – vide o famigerado caso das Indulgências.

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Entretanto, com a morte do papa Francisco, outro tipo de divergência surgiu, a política. Considerado progressista por muitos evangélicos e católicos (até comunista pelos mais radicais), o papa sofreu críticas durante todo o seu pontificado; e, na morte, não poderia ser diferente em se tratando de pessoas absolutamente comprometidas não teológica, mas ideologicamente. Não se trata mais de uma questão de conhecimento, mas de ignorância. Vigário de Cristo ou não, Francisco foi alvo da sanha de crentes que aderiram a um moralismo supostamente conservador que condena o esquerdismo do papa recém-falecido. Uma pena, pois perde-se uma oportunidade de demonstrar solidariedade aos irmãos católicos e ser testemunho da misericórdia e do amor de Deus.

De minha parte, apesar de, no passado, ter sido mais ligado a essas diferenças doutrinárias, sempre li e admirei autores católicos (inclusive já escrevi, por exemplo, sobre Thomas Merton e Henri Nouwen aqui) e sempre tive amigos católicos praticantes. As divergências permanecem no campo teológico, mas não me impedem de admirar e reverenciar a tradição e a teologia católicas como, obviamente, as pessoas de convicção madura devem fazer. As citações em epígrafe, em que os papas Bento XVI – que nutria uma profunda admiração por teólogos protestantes como Karl Bart e Dietrich Bonhoeffer – e Francisco enaltecem Lutero mostra que, após mais de 500 anos, já podemos baixar a guarda e nos concentrarmos naquilo que nos une: a obra maravilhosa de Jesus, o Cristo.

Minhas sinceras condolências aos amigos católicos e que o processo de sucessão seja conduzido pelo Espírito Santo de Deus.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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