“Uncle Tom and Little Eva”, por Ewin Long.| Foto: Wikimedia Commons

O senhor comprou-me, e eu serei um escravo bom e fiel; dou-lhe todo o trabalho de que for capaz, todo o meu tempo, a minha força. Mas a minha alma, não a darei a um mortal, porque ela pertence a Deus. E os seus mandamentos estão para mim acima de tudo, acima da vida e da morte. E pode ter a certeza, Senhor Legree, que eu não tenho medo nenhum da morte, e recebo-a com alegria quando ela chegar! (Tomás a Simon Legree)

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Capitão do Mato é o epíteto preferido que negros e brancos, politicamente à esquerda, adoram me chamar quando confrontados por meu trabalho em relação ao racismo. Inclusive já tratei disso, em artigo, aqui nesta Gazeta do Povo. Trata-se de uma espécie de racismo que só consegue conceber um negro como um coletivo e pensando de maneira específica – à esquerda, evidentemente. Ver alguém que ousou pensar fora do determinismo criado e mantido à base de teorias que remontam à luta de classes marxista, é um escândalo tão inaceitável para esses autoritários (em sua grande maioria, jovens universitários cheio de pedantismo acadêmico), que eles saem a perseguir, julgar, condenar e pendurar no tronco de sua senzala ideológica – sob o truque retórico de que “não há racismo reverso” –, qualquer um que fuja dessa escravidão do pensamento. Ou seja, comportam-se como o que? Capitães do Mato – ao melhor estilo “xingue-os do que você é”, da frase apócrifa atribuída a Lênin.

Mas essa não é uma exclusividade brasileira; nos Estados Unidos há também um xingamento bastante comum, que esquerdistas costumam utilizar para se referir a negros que não rezam a sua cartilha: Uncle Tom – traduzido aqui, no Brasil, curiosamente, por Pai Tomás. O termo faz menção ao título do livro de Harriet Beecher Stowe, Uncle Tom's Cabin (A cabana do Pai Tomás), romance abolicionista publicado em 1852, e que, segundo dizem muitos de seus críticos, foi fundamental para os fatos que deram origem à Guerra de Secessão e à abolição americana.

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Vale, aqui, uma pequena observação pessoal por conta da alteração de “tio” (uncle) para “pai”. Procurei exaustivamente por um esclarecimento, mas não encontrei. Nem mesmo seu primeiro tradutor célebre, Francisco Ladislau Álvares d'Andrada, que o traduziu e publicou em 1893, explica o porquê da alteração, mas sabe-se que ele já acompanhava versões anteriores. A mim sempre pareceu que o termo Pai Tomás fazia referência a uma entidade conhecida da tradição religiosa afrobrasileira (Umbanda), o Preto Velho, cujos nomes vêm sempre antecedidos por “pai” (Pai João, Pai Francisco etc.). Mas as antigas traduções portuguesas parecem desmentir a minha suspeita.

A obra tampouco faz concessões irrefletidas ao Cristianismo, antes critica a postura titubeante de pastores em relação ao mal moral que acomete aqueles que defendem tal instituição

Harriet Stowe era uma cristã fervorosa, filha do pastor calvinista Lyman Beecher – um abolicionista moderado – e casada com o teólogo Calvin Ellis Stowe, que ajudou na Underground Railroad, a famosa rede de rotas clandestinas de fugas de escravos, das quais participaram figuras importantes como John Brown e Harriet Tubman. Na descrição de nossa grande abolicionista e escritora Nísia Floresta, em seu Opúsculo Humanitário, de 1852, mesmo ano de publicação nos EUA – mostrando o quanto ela estava atualizada da literatura de seu tempo –, Stowe “é o verdadeiro tipo da americana e o mais perfeito modelo que se pode apresentar a todas as mulheres. Educação religiosa e moral, espírito eminentemente cultivado, amor do trabalho, de que deu exuberantes provas desde sua primeira juventude, dirigindo com zelo e perseverança o ensino da mocidade, prática das virtudes domésticas no estado de esposa e de mãe, solidez de uma razão esclarecida, coragem heroica […]”. E, sobre o romance, compara a chaga americana à brasileira, dizendo:

O livro de Mrs. Stowe é um primor de moral, de delicadeza de estilo, de sentimentos sublimes, de preceitos cristãos, simples e habilmente dirigidos por mão feminina, que sabe toda a superioridade que tem a doce eloquente voz da persuasão, demonstrando os crimes em presença de suas vítimas, debaixo das formas mais capazes de inspirar o interesse e a compaixão, sobre o brado da rígida moral que severamente acusa a sociedade de qualquer povo de havê-los praticado. Essa obra pode ser considerada como um moderno Evangelho, em que todos os corações americanos deveriam ir beber as lições do Cristo, transmitidas pelo apóstolo feminino a quem Ele as inspirou. Nós outros brasileiros, que lemos esse livro corando do opróbrio que igualmente pesa sobre a nossa terra, nas reproduções daquelas cenas de horror que tão pateticamente descreve a insigne Stowe, deveríamos fazer nossos filhos decorar algumas de suas páginas mais salientes, a fim de podermos guardar a consoladora esperança de que as gerações futuras farão apagar, nos que lerem um dia a nossa história, a impressão dolorosa dos crimes cometidos pelas gerações presentes sobre a mísera raça africana.

O crítico literário Harold Bloom, que dispensa apresentações, em seu Bloom's Guide sobre a obra, diz que Pai Tomás, “um personagem literário muito admirado por Tolstoi e por Dickens, merece nossa consideração cuidadosa”. E que, para Stowe, “Pai Tomás é o mártir cristão mais verdadeiramente crucificado pelo norte do que pelo sul, pois a Nova Inglaterra aceitou a Lei do Escravo Fugitivo, de 1850; e Simon Legree é a encarnação diabólica daquela horrenda rendição da integridade ianque”.

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Tom é apresentado por Stowe, no capítulo quatro do livro, como “um homem forte e bem constituído, com o peito largo, membros fortes e rosto de ébano luzidio; um rosto de traços nitidamente africanos, caracterizado por uma expressão de bom senso grave e firme, aliado a uma grande ternura e bondade. Havia em todo o seu aspecto uma dignidade e um respeito por si próprio, unidos a uma simplicidade humilde e confiante”. Ou seja, alguém cujas qualidades morais e consciência do próprio valor não podem ser, em absoluto, questionadas; um homem honrado, cuja escravidão havia transformado em mercadoria, mas não pôde lhe destituir de suas qualidades espirituais mais nobres. Também é, por várias vezes, descrito como muito inteligente.

Não era um negro meramente subserviente, frágil e incapaz de se indignar; ao ser, por exemplo, indagado por Augustine St. Clare, um dos donos pelos quais passou, o porquê de sua vontade de ser livre se não era maltratado em sua fazenda, Tom responde, categórico: “O senhor foi muito bom para mim. Mas preferia uma casa pobre e andar pobremente vestido, por mais pobre que fosse, do que ter coisas melhores mas que pertencessem a outro. Não será natural, senhor?”. Ou, ainda, ser capaz de repreendê-lo, dizendo: “O senhor sempre foi bom para mim, não preciso de nada, não é isso. Só há uma coisa em que o meu senhor não é bom. [...] o senhor não é bom para si próprio”. Mesmo a descrição que Stowe faz da África e dos africano, é digna de nota: “É preciso lembrar que os negros vêm da terra mais esplêndida e magnífica que existe no mundo; guardam no fundo da alma uma verdadeira paixão por tudo quanto é belo, rico, grandioso e fantástico”.

A obra tampouco faz concessões irrefletidas ao Cristianismo, antes critica a postura titubeante de pastores em relação ao mal moral que cometem aqueles que defendem tal instituição. John van Tromp, um ex-senhor de escravos que, num ímpeto, “comprou uma vasta propriedade, libertou os escravos, homens, mulheres e crianças, meteu-os numa carruagem e entregou-lhes a terra para eles cultivarem”, diz ao senador Bird: “Pois saiba, senhor, que estive anos sem ir à igreja, porque os sacerdotes diziam do púlpito abaixo que a Bíblia permitia a escravatura. Não podia responder-lhes em grego nem em latim, por isso larguei tudo: Bíblia e sacerdotes. Nunca mais voltei à igreja, até encontrar um sacerdote que fosse contra a escravatura, mesmo com todo o grego e mais o resto. Agora já lá posso voltar”.

Mas como um personagem e um livro com tais descrições puderam se tornar anátemas ao movimento negro posterior? Como uma obra que condenava com tamanha veemência a escravidão pôde ter se tornado um símbolo de leniência e até de covardia? Malcolm X, que costumava usar o termo de forma pejorativa – e foi um dos responsáveis por sua propagação – assevera, em sua palestra Message to the grass roots, proferida em 10 de novembro de 1963, na qual critica a Marcha a Washington comandada por Martin Luther King Jr: “Assim como o senhor de escravos do passado usava Tom, o Negro da Casa, para manter os negros do campo sob controle, o mesmo velho senhor de escravos de hoje tem negros que nada mais são do que os modernos Pai Tomás, os Pai Tomás do século XX, para manter você e eu sob controle […] nos manter passivos e pacíficos e não-violentos. Esse é o Pai Tomás te fazendo não violento”. Malcolm, que era muçulmano, criticava o caráter pacífico do Cristianismo – diga-se de passagem, a mesma acusação dos romanos ante a queda do Império, cabalmente refutada por Santo Agostinho n'A Cidade de Deus –, dizendo que o Corão não ensinava essas coisas: “Nossa religião nos ensina a sermos inteligentes. Seja pacífico, seja cortês, obedeça à lei, respeite a todos; mas se alguém colocar a mão em você, mande-o para o cemitério. Essa é uma boa religião. Na verdade, essa é a religião dos velhos tempos”.

O fato é que o Cristianismo teve um papel absolutamente fundamental na abolição americana. A Underground Railroad era uma rede basicamente formada por cristãos. Como eu disse anteriormente, em meu primeiro artigo para esta coluna, os escravos americanos, convertidos ao protestantismo, viram nas histórias de libertação bíblicas um símbolo poderoso para a sua própria libertação; Harriet Tubman foi chamada de Moisés do seu povo. No período chamado de Era da Reconstrução, que durou de 1863 a 1877, as igrejas tiveram um papel importantíssimo na inserção dos ex-escravos na sociedade americana. Como diz o historiador John Hope Franklin, em seu livro Escravidão e Liberdade – a história do negro americano, a “igreja dos negros” contribuiu muito, oferecendo tanto assistência espiritual e moral, mas, sobretudo, com a educação dos negros. Também o número de membros dessas igrejas, após a abolição, cresceu assombrosamente, aumentando a quantidade de pessoas a compartilharem um espaço, digamos, terapêutico e de comunhão. A título de exemplo, nos diz Franklin: “A Igreja Episcopal Metodista Africana, que tinha somente 2.000 membros 1856, orgulhava-se de ter 75.000 dez anos mais tarde. Em 1876, seu quadro de membros excedia 200.000 e sua influência e suas posses materiais haviam aumentado proporcionalmente”.

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Na educação, a influência das igrejas não foi menos espantosa. Unidas a filantropos como John D. Rockfeller e Andrew Carnegie, em 1900 o número de professores negros ultrapassava a marca de 28 mil; mais de 1,5 milhão de crianças negras frequentavam as escolas e mais de 2 mil negros já haviam completado o ensino superior. Sem contar que, o primeiro negro a receber um diploma de ensino superior, foi um pastor, Alexander Twilight, em 1823. O papel de Booker T. Washington, do qual também já tratei aqui, nesta Gazeta do Povo, não foi menos importante nesse processo.

Mas, mesmo assim a figura de Pai Tomás ainda se tornou uma ofensa, e a maior influência para a deturpação absurda de um personagem tão complexo e rico foi o racismo dos sulistas, que passaram a produzir livros e mais livros – chamados de anti-Tom books – apresentando Tom, na verdade, como um escravo submisso e aparvalhado, servindo a senhores bondosos e puros. No mesmo ano de publicação da obra original, foram publicados oito livros em resposta; e, no total, foram mais de trinta. As peças teatrais, chamadas de Tom Shows, também tiveram enorme responsabilidade pela descaracterização original de Pai Tomás. Na descrição de Liz Sonneborn, biógrafa de Harriet Stowe:

Os Tom Shows foram um fenômeno diferente de tudo que havia, antes ou depois, na cultura popular americana. Somente em 1902, cerca de 1,5 milhão de americanos assistiram a um Tom Show. Dez anos depois, Charles Stowe [filho de Harriet] estimou que havia pelo menos 250 mil produções de A cabana do Pai Tomás encenadas nos Estados Unidos. Dado o número de apresentações de Tom, ao longo do tempo a maioria dos americanos não aprendeu sobre Pai Tomás, a Pequena Eva ou a família Harris lendo o romance de Stowe; eles aprenderam a história […] que viram no palco. E o que eles viram no palco foi, muitas vezes, muito diferente do que Stowe colocou nas páginas. Os Tom Shows, produzidos logo após a publicação de seu livro, costumavam fazer algumas tentativas de permanecerem fieis ao livro de Stowe. Mas, com o passar do tempo, as produções ignoraram cada vez mais o tema antiescravista da autora. A dignidade e nobreza que ela imbuiu em seus personagens afro-americanos, foram perdidas. Em vez disso, eles foram mudados para provocar risos baratos ou lágrimas sem sentido da platéia. Em geral, as partes dos afro-americanos eram representadas por brancos de rostos pintados de negros [black face]. A maioria dos shows se tornaram essencialmente espetáculos de menestréis, entretenimentos com esquetes, música e dança que ridicularizavam os afro-americanos e sua cultura.

Diante disso, o Pai Tomás digno, benevolente mas muito consciente de seu lugar no mundo, foi trocado por esses pastiches racistas que destruíram o valor da obra e afastaram os leitores – eu mesmo, por muito tempo resisti para lê-la. E o jornalista português José Victor Malheiros sintetiza muito bem, numa resenha para o livro, a rejeição da militância negra do séc. XX – que transbordou para a atual:

A razão está antes de mais no seu protagonista, Pai Tomás (“Uncle Tom” é, nos EUA, o mais violento insulto que se pode lançar a um negro), que é não um líder revoltoso, um Spartacus, como quereria o movimento negro americano, mas um mártir, dócil e piedoso, que aceita todos os castigos como penitências e que perdoa a todos os seus inimigos. Tomás é um homem de extrema nobreza, sem uma réstia de servidão, com uma coragem física e uma abnegação suprema, que reconhece a ignomínia da escravatura e que não a aceita de forma alguma, mas que recusa a violência como forma de resistência e que é incapaz de mentir mesmo ao mais vil dos homens – não por medo, mas por respeito a si próprio. Tomás é um santo, quando os negros americanos do século XX buscavam um herói.

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No entanto, é preciso que voltemos a olhar com bons olhos para a obra seminal de Harriet Becheer Stowe, pois nela há muitos ensinamentos que podem servir, ainda hoje, aos jovens e adultos negros que têm se deixado vencer pela nocividade da discriminação e do racismo. É preciso que voltemos a enxergar o poder da fé diante das injustiças e da falta de perspectivas. As críticas ao Cristianismo, tão presentes atualmente nas correntes pan-africanistas do movimento negro, devem ser confrontadas com a realidade, com a verdadeira influência – controversa e eivada de antagonismos, mas real – do Cristianismo não só na cultura americana em geral, mas, sobretudo, na vida dos negros americanos em particular, que puderam fazer de sua fé um esteio de sua perseverança nos difíceis tempos da escravidão e após eles, no enfrentamento das Leis Jim Crow, na perseguição, nas torturas e assassinatos provocados pela Ku Klux Klan – organização que se denomina cristã, mas age totalmente contra os preceitos do evangelho do Cristo –, e contra o racismo em geral. É preciso que não só notemos, mas compreendamos a imensa força que a Igreja Negra teve na cultura americana – e na brasileira –, da música à educação, da política às artes, do entretenimento à ciência. É preciso que observemos as próprias palavras finais do romance, que nos admoestam para o poder salvador que sua autora via no Evangelho:

Se esta raça perseguida é capaz de triunfar de tantos obstáculos, que não faria ela se estivesse sob a proteção da Igreja, segundo o verdadeiro espírito cristão? […] Mas qual é essa influência, poderosa e misteriosa, a que estão submetidos todos os países? De onde procede que, em todas as línguas, se erguem reclamações em favor da liberdade e da igualdade? Ó Igreja de Cristo, compreende o sinal dos tempos! Essa influência não será o Espírito daquele cujo reinado ainda está por vir, e cuja vontade será feita assim na terra como no céus? Quem poderá, então, deter a sua cólera? Não disse Ele que “esse dia há de arder como uma fornalha, e Cristo aparecerá para depor contra aqueles que arrancam o salário ao pobre, oprimem a viúva e o órfão, privam o estrangeiro dos seus direitos; e Ele despedaçará o opressor? Não serão temíveis essas palavras para uma nação que contém em si tão flagrante injustiça?

Esse poder eu também vejo, uma vez que sou cristão. Portanto, caso queiram chamar-me por tão nobre epíteto, estejam à vontade. De minha parte, somente direi: “Pai Tomás, com muita honra”.