Adolf Eichmann, um dos nazistas mais procurados do mundo, foi julgado por seus crimes em 1961, em Israel.| Foto: Reprodução/Wikimedia Commons
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[…] não poderão cessar as desgraças próprias das revoluções antes de deixarem os vencedores de exercer represálias sob a forma de combates sangrentos, banimentos e execuções, e de persistirem em vingar-se de seus inimigos. Ao contrário, precisarão dominar-se para estabelecer leis comuns que tanto beneficiem os vencidos como a eles próprios. (Platão , Carta VII)

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Não é a primeira vez que trato desse tema por aqui, caro leitor. No recente N. Steinhardt e a suprema liberdade dos “incanceláveis”; ou em “Uma vida oculta”, de Terrence Malick, ou: a coragem de ser, de 2020; ou mesmo em Siracusa é aqui – para aproveitar citação em epígrafe – de 2018, podes encontrar algumas reflexões que gostaria de, nesse breve artigo, recuperar e inserir algumas observações, motivado por uma afirmação que ouvi mais de uma vez recentemente, de que é possível apoiar o que um governo moralmente corrupto entrega de resultados concretos – sobretudo se esses representam o cumprimento de suas promessas de campanha.

Parece bastante óbvio para todos que não há governos perfeitos, e que todos devem ser avaliados de acordo com aquilo que, de fato, fazem em prol da população que os elegeu. Ou seja, as entregas de um governo parecem ser, num sentido bastante imediato, a melhor maneira de avaliá-lo. Apesar da fragilidade desse argumento – como será fácil demonstrar adiante –, ele continua servindo para legitimar toda sorte de relativizações em nome do pragmatismo político.

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Para Platão, as virtudes da sociedade (pólis) nada mais são do que as virtudes dos indivíduos em sentido ampliado, por isso ele diz, n'A República que “um homem é justo do mesmo modo que a cidade é justa”. Ou seja, sabemos que, para Platão, a ordem da sociedade está intimamente ligada à ordem da alma, por isso é impossível conduzir uma sociedade ao caminho da virtude – e das realizações materiais – se seus governantes são moralmente degradados. E ele o confirma nesse diálogo soberbo com o jovem Alcibíades, no diálogo homônimo:

Sócrates — As cidades, portanto, para serem felizes, não necessitam nem de muros, nem de trirremes, nem de estaleiros, Alcibiades, nem de população e tamanho, mas de virtude.

Alcibíades— É fato.

Sócrates — Se quiseres, por conseguinte, administrar os negócios da cidade com retidão e nobreza, terás de dar virtude aos cidadãos.

Alcibíades— Sem dúvida.

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Sócrates — E poderá alguém dar o que não tem?

Alcibíades— Como fora possível?

Sócrates — Então, primeiro precisarás adquirir virtude, tu ou quem quer que se disponha a governar ou a administrar não só a sua pessoa e seus interesses particulares, como a cidade e as coisas a ela pertinentes.

Alcibíades— Tens razão.

Sócrates — Assim, o que precisas alcançar não é o poder absoluto para fazeres o que bem entenderes contigo ou com a cidade, porém justiça e sabedoria.

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Alcibíades— É muito certo.

Sócrates — Se tu e a cidade procederdes com sabedoria e justiça, fareis obra grata à divindade.

Entretanto, quem não se lembra do famigerado bordão “rouba, mas faz” popularíssimo no país em que quase 50% da população não tem saneamento básico? Pois esta é a tradução perfeita da situação a que chega um povo em nome de suas necessidades mais imediatas, conduzidos por políticos que, em vez de serem um exemplo moral para seus cidadãos, são a fonte de sua degradação moral e normativa, e os conduzem exatamente para esse nível de incivilidade que se permite relativizar a imoralidade em nome de conquistas materiais. Afinal de contas, como considerar justos e virtuosos governantes que tensionam com os poderes estabelecidos a todo instante, provocam divisionismos ideológicos entre seus governados, desobedecem os acordos a fim de obterem dividendos eleitorais, menosprezam a vida em nome de falsas dicotomias, demonizam a imprensa que lhes perseguem as incoerências, atribuem a si próprios e a seus governos o sentido de uma missão divina – tema tratado em meu curso Religião e política, uma relação perigosa, desta Gazeta do Povo – e consideram seus opositores como traidores da pátria? Não se pode aceitar tais elementos, em nome de resultados pragmáticos, sem sucumbir à cumplicidade e à vileza.

Um exemplo nos ajudará a completar nosso argumento. As comparações com o nazismo quase sempre são hiperbólicas, mas nem sempre são inadequadas. Evocar a famigerada Lei de Godwin pode ser um artifício apelativo demais diante dos resultados catastróficos do regime genocida de Adolf Hitler. No entanto, o nazismo não iniciou como terminou; antes uma decadência espiritual se instaurara em todo um povo, que deu ensejo ao surgimento de um tirano. Eric Voegelin, em sua obra Hitler e os alemães, que estuda a gênese de Hitler e do nazismo, diz, com razão, que “o nacional-socialismo é, na verdade, precedido por uma sociedade em que ele chegou ao poder, e a condição espiritual de uma sociedade em que o nacional-socialismo tenha chegado ao poder não é compensada pelo fato de um governo nacional-socialista ter sido militarmente vencido. Ao contrário, essa situação permanece depois da derrota militar, assim como existiu antes”. Em outra obra, Ordem e História – Platão e Aristóteles, ele utiliza como exemplo o sofista Polo, personagem do diálogo platônico Górgias, para dizer que “ele é o tipo de homem que louvará piamente o Estado de direito e condenará o tirano, e que inveja fervorosamente o tirano, e a quem nada agradaria mais do que ser ele mesmo um tirano. Numa sociedade decadente, ele é o representante do grande reservatório de homens comuns que paralisam todos os esforços de ordem e proporcionam conivência popular na ascensão do tirano”. Ou seja, o que alimenta regimes disruptivos, autoritários e totalitários é justamente uma sociedade espiritualmente degradada, que aceita a desordem moral em nome de uma situação ideal de futura paz e cumprimento de objetivos materiais.

A sociedade aceita tal situação utópica porque não mais percebe, como diz Voegelin, que seu presente está “sob Deus”. Ele afirma:

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O tempo da História é representado como indo numa linha do passado para o futuro através de um ponto no presente, e deste ponto de vista entende-se o presente. Assim, os eventos contemporâneos são eventos que ocorrem no ano de 1964; eventos passados ocorreram no ano de 1930. A par dessa concepção linear do presente, que existe nessa forma apenas desde o século XVIII como uma noção inteiramente ideológica, há aquele outro significado do presente, em que este está sempre relacionado com a existência.do homem em sua presença (Präsenz) sob Deus. À medida que – ao existir e atuar no tempo imanente – o homem existe sob Deus, ele tem presença. E o significado do passado e do presente tornar-se-á geralmente interpretável somente quando tiver seu princípio nessa presença. Pois, de outro modo, tudo procederia de maneira irrelevante numa corrente de tempo externa.

Ou seja, a história, tampouco as situações do presente imediato, não devem ser interpretadas pela sociedade somente de maneira imanente, como se o futuro dependesse exclusivamente de nossas ações políticas imanentes, pois “colocar-se sob a presença, sob a presença de Deus e, de acordo com isso, julgar o que se faz como homem e como se forma a ordem da própria existência e a existência da sociedade é, para Platão, um ato de julgamento. Isso significa que o homem está sempre sob julgamento”. Não há como aceitar a imoralidade em nome da realização política imanente, nem sob a alegação, do governante, de estar buscando o bem do povo – que, nesse caso, se resume a seus apoiadores –, muito menos se a alegação for de estar agindo a mando de Deus. Quem quer que sucumba a isso sob a alegação de “eu elogio o que deve ser elogiado e critico o que deve ser criticado”, sem levar em consideração a degradação normativa e a imoralidade no comportamento do governante, fatalmente será cúmplice de males dos quais não poderá livrar-se apenas por estar, como Adolf Eichmann, “cumprindo ordens”.