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Precisamos olhar o verde outra vez e nos surpreender de novo (mas sem sermos cegados) com o azul, o amarelo e o vermelho. Precisamos encontrar o centauro e o dragão, e talvez depois contemplar de repente, como os antigos pastores, os carneiros, os cães, os cavalos – e os lobos. (J. R. R. Tolkien, Sobre histórias de fadas)

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Não há dúvidas de que vivemos uma era de relativismo moral. Os valores que fundaram e mantiveram por tantos séculos civilizações inteiras estão sob intenso ataque em nome do falso espírito igualitário oriundo da Revolução Francesa – sim, ainda hoje. Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, que guilhotinaram dezenas de milhares de pessoas, somados ao maniqueísmo marxista da luta de classes, tomaram conta da política, dos debates acadêmicos, do debate público e das artes, substituindo um suposto obscurantismo por outro, muito mais nocivo e apelativo: a ditadura do ressentimento. Usando como ferramenta o politicamente correto, que bloqueia o debate e reescreve a história por meio de narrativas de confronto, estamos todos submetidos, em maior ou menor grau, aos caprichos de consciências decaídas e autoritárias, imanentistas, e as gerações vindouras correm sérios riscos de não terem qualquer referência moral que as oriente.

É diante desse quadro (quase) dantesco que surge Russell Amos Kirk, o cavaleiro da verdade. Russell Kirk nasceu em 19 de outubro de 1918, em Plymouth, sudoeste de Michigan (EUA), filho de Russell Andrew Kirk, um maquinista de trem, e Marjorie Rachel Kirk, que era garçonete no restaurante de seu pai. Kirk herdou do pai a sabedoria do senso comum, bem como o ceticismo em relação às teorias sociais abstratas; a prodigiosa imaginação foi herança materna, pelas leituras de contos de fadas e outras histórias. Na infância, as constantes viagens com a mãe e a avó à vila de Mecosta (noroeste de Michigan) – fundada por seu bisavô, Amos S. Johnson, em 1879 – preencheram a alma de Kirk com uma imaginação gótica – tanto pela influência da bisavó, adepta das doutrinas espiritualistas do polímata sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772), bem como pela diversidade étnica de Mecosta, formada por descendentes indígenas, imigrantes irlandeses, poloneses, alemães, e até negros livres ou escravos fugitivos. Sua bisavó, Estella Russell Johnson, era dona de uma biblioteca invejável, que o pequeno Kirk adorava frequentar, ouvindo dela a leitura de poemas de W.B. Yeats, contos de Nathaniel Hawthorne e outros autores.

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Russell Kirk foi um homem cuja vida pessoal não pode, em hipótese alguma, ser separada de sua atuação como acadêmico, escritor, filósofo ou historiador. Viveu uma vida integrada; seu lar era uma extensão quase natural de seu universo intelectual e acadêmico, e vice-versa. Nas palavras de Alex Catharino, autor de Russell Kirk, o peregrino na terra desolada (É Realizações), obra introdutória sobre o “mago de Mecosta”, Kirk “rejeitou a glória transitória e a fortuna efêmera, que poderia ter conquistado nos grandes centros acadêmicos ou nos bastidores da política. Em termos materiais, viveu de forma modesta; contudo, foi contemplado com a ‘graça natural da existência’, proporcionada pelo amor dos familiares e pela companhia dos amigos, na tranquilidade da vida comunitária e do convívio com a natureza na pacata vila de Mecosta, em Michigan”.

Kirk foi um intelectual preocupado com os descaminhos da mentalidade moderna, que chamou de “desagregação normativa”

Em 1940 graduou-se em História, na Universidade do Estado do Michigan (MSU); em 1941, recebeu seu M.A. em História na Universidade de Duke, em Durham, Carolina do Norte. Adiou seu doutorado por causa do ingresso dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, para a qual Kirk foi convocado e na qual serviu, de 1942 a 1946, realizando “entediantes trabalhos burocráticos”. Após a baixa no exército, foi contratado como professor de História na MSU. Em 1948 iniciou o doutorado na Universidade St. Andrews, na Escócia, recebendo o título em 1952, com uma tese que serviu de base para o seu livro mais famoso: The Conservative Mind, de 1953. Não obstante sua proeminente carreira acadêmica, Kirk, entusiasta da educação clássica, se desiludiu com o ambiente acadêmico e se demitiu em 1953. Porém, ao contrário do que poderia acontecer com um professor universitário que abandona a carreira acadêmica formal, a liberdade que obteve lhe permitiu deixar um legado prolífico e consistente, composto por “cerca de 3 mil artigos para jornais, 814 artigos acadêmicos, 255 resenhas de livros, 68 prefácios ou introduções para obras de outros autores, 23 livros acadêmicos ou coletâneas de artigos, três romances e 22 contos de terror publicados em diversos periódicos e reunidos em seis livros diferentes”.

O magnum opus de Russell Kirk é um estudo sobre a vida e obra do poeta anglo-americano T.S. Eliot: A era de T.S. Eliot – A Imaginação Moral do século XX (É Realizações). Uma obra volumosa na qual Kirk apresenta a mais completa biografia intelectual do autor de A Terra Desolada; analisa seus poemas, peças de teatro, ensaios, artigos, crítica literária; a influência do cristianismo em sua obra, sua atuação política, bem como seus 17 anos como editor da revista Criterion. Mas não só isso: Russell Kirk interpreta a obra de Eliot sob o prisma de uma de suas maiores preocupações intelectuais: a Imaginação Moral.

Apesar de já ter definido o conceito de imaginação moral em outros artigos, vale a pena fazê-lo de novo, pois está no centro dos interesses de Russell Kirk – e dos meus também. Kirk empresta o conceito de Edmund Burke e o desenvolve; sigamos sua explanação em A era de T.S. Eliot:

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Ora, o que é a imaginação moral? A expressão é de Edmund Burke. Por ela, Burke queria indicar a capacidade de percepção ética que transpõe as barreiras da experiência privada e dos acontecimentos do momento – “especialmente”, como o dicionário a descreve, “as mais altas formas dessa capacidade praticadas na poesia e na arte”. A imaginação moral aspira apreender a justa ordem da alma e a justa ordem da comunidade. Foi o dom e a obsessão de Platão, Virgílio e Dante. Na retórica de Burke, o ser civilizado se distingue do selvagem por possuir imaginação moral, por “todas as ideias decorrentes disso, guarnecidas pelo guarda-roupa da imaginação moral, que vem do coração e que o entendimento ratifica como necessárias para dissimular os defeitos de nossa natureza nua e elevá-la à dignidade de nossa estima”. Inferidas dos séculos de experiência humana, essas ideias de imaginação moral são novamente expressas de uma era para a outra.

Os valores que fundaram e mantiveram por tantos séculos civilizações inteiras estão sob intenso ataque em nome do falso espírito igualitário oriundo da Revolução Francesa

Kirk foi um intelectual preocupado com os descaminhos da mentalidade moderna, que chamou de “desagregação normativa”, um mal que corrói o senso de moralidade e de ordem na sociedade. Ele expressa, em sua obra Enemies of the Permanent Things, que “a doença de degradação normativa corrói a ordem na pessoa e na república”. E completa: “Até que reconheçamos a natureza desta aflição, afundaremos cada vez mais na desordem da alma e na desordem do Estado. A recuperação das normas pode ser iniciada somente quando nós, modernos, compreendermos de que maneira nós caímos para longe das antigas verdades”. Conhecido como o Pai do Conservadorismo Americano, Kirk defende que uma sociedade sadia é aquela que preserva a ordem baseada naqueles mesmos valores que C.S. Lewis chamou, em sua obra A abolição do homem (Martins Fontes), de Tao:

[...] a realidade além de todos os atributos, o abismo que era antes do Próprio Criador. Ele é a Natureza, é a Via, o Caminho. É a Via pela qual o universo prossegue, a Via da qual tudo eternamente emerge, imóvel e tranquilamente, para o espaço e o tempo. É também a Via que todos os homens deveriam trilhar, imitando essa progressão cósmica e supracósmica, amoldando todas as atividades a esse grande modelo. […] É a doutrina do valor objetivo, a convicção de que certas posturas são realmente verdadeiras, e outras realmente falsas a respeito do que é o universo e do que somos nós.

São os valores passados a nós por séculos e séculos de experiência, que criaram uma tradição cujos sucessos nos permitem seguir adiante – imitando os padrões estabelecidos –; e em que os fracassos nos ajudam a corrigir as rotas de nossa caminhada. Parafraseando uma expressão do filósofo neoplatônico Bernardo de Chartes, muito utilizada por Kirk: se hoje vemos mais longe, é porque estamos sobre os ombros de gigantes. A tradição, de acordo com G. K. Chesterton em Ortodoxia (Mundo Cristão), “pode ser definida como uma extensão dos direitos civis. Tradição significa dar votos à mais obscura de todas as classes, os nossos antepassados. É a democracia dos mortos. A tradição se recusa a submeter-se à pequena e arrogante oligarquia dos que simplesmente por acaso estão andando por aí”. Porém, nossa era é pródiga em negar aquela virtude louvada por Aristóteles, a temperança (ou moderação); e, por outro lado, há uma ausência quase total de normas. Nas palavras de Kirk, de novo em Enemies of the Permanent Things: “uma norma significa um padrão duradouro. É uma lei da natureza que ignoramos por nossa conta e risco. É uma regra de conduta humana e uma medida da virtude pública. A norma não significa a média, a mediana ou o medíocre. A norma não é a conduta do homem médio sensitivo. A norma não é simplesmente uma medida do desempenho médio de um grupo. [...] Existe uma norma: embora os homens possam ignorá-la ou esquecê-la, a norma não deixa de existir, nem deixará de influenciá-los”.

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Para Kirk, restabelecer as normas demandaria um longo processo de renovação das “coisas permanentes” das quais falava T.S. Eliot, sobretudo através da literatura, das artes e dos valores fundamentais da sociedade, desagregados pelas ideologias. As normas não são apenas convenções, são padrões duradouros de comportamento e ordem da sociedade, que são rejeitados não sem um grande prejuízo. Diz Kirk: “Se os homens assumem que as normas não são nada mais que fabricações pomposas de seus antepassados, criadas para servir aos interesses de um grupo específico ou uma era, então cada nova geração desafiará os princípios de ordem pessoal e social, e seremos obrigados a aprender a sabedoria através do sofrimento”.

A literatura é uma arma poderosa na formação do imaginário de um povo

Uma característica marcante dos movimentos ideológicos – marxismo, nazismo, fascismo etc. – é a insurreição revolucionária contra a ordem estabelecida, uma rejeição sistemática à voz dos antepassados, na crença de que a sociedade pode ser transformada e aperfeiçoada através de experiências inovadoras, radicais, pretensamente científicas, que supostamente levam ao progresso e ao “mundo melhor”. Porém, o ideólogo revolucionário, em seu fanatismo por novidade (como diz Andrei Pleșu), está em rebelião contra Deus e contra os homens. Esquecendo-se daquele “sentimento de criatura” do qual falava Rudolf Otto em O Sagrado, assume um positivismo inconsequente, destruindo, com isso, nos termos empregados por Eric Voegelin, a tensão do homem em direção ao seu fundamento divino. Tudo isso pode soar meio religioso, caríssimo leitor – e é, pois não podemos prescindir, como não fez a grande tradição filosófica até o início da modernidade, da perspectiva de um fundamento divino de nossa existência, que é a fonte de toda ordem moral; já abordei esse tema em outro artigo, aqui, nesta Gazeta do Povo. Nas palavras de Kirk, o ideólogo “imanentiza os símbolos religiosos”, cujas origens são para ele um “incômodo e uma maldição”.

Mas é exatamente na total dissolução da imaginação moral que Russell Kirk se concentra. Ele, que foi chamado por Gerhart Niemeyer de “O Cavaleiro da Verdade”, compreende a imaginação moral como a virtude que nos informa sobre a dignidade da natureza humana, nos diferenciando, fundamentalmente, de meros primatas; e diz que a grande responsável pela formação do imaginário é a literatura: “até anos bem recentes, os homens tinham como certo que a literatura existe para formar a consciência normativa, para ensinar os seres humanos a sua verdadeira natureza, a sua dignidade, e seu lugar no esquema das coisas. Tal foi o esforço de Sófocles e Aristófanes, de Tucídides e Tácito, de Platão e Cícero, de Hesíodo e Virgílio, Dante e Shakespeare, de Dryden e Pope”. A literatura é uma arma poderosa na formação do imaginário de um povo; quando é alimentada pelos grandes luminares do pensamento, aqueles cujo tempo imprimiu sua marca de prestígio e cuja capacidade de evocar experiências e ditar paradigmas é superior a qualquer outro estímulo – os chamados clássicos –, os indivíduos (e, consequentemente, a sociedade) amadurecem moralmente vigorosos e sadios; parafraseando C.S. Lewis, quanto mais imaginação um leitor ainda inexperiente tiver, mais capaz será de fazer associações por si próprio, e aquela grande literatura certamente o influenciará. Kirk, como diz de si próprio em Sword of imagination (reproduzido por Catharino), “desembainhara a espada literária e tocara a trombeta das letras”, e “o que pôde fazer para despertar a imaginação e a coragem do próximo, ele o fizera, com o melhor de seus talentos limitados. Com isso, “manteve afiada a espada da imaginação para a década seguinte ou, possivelmente, por mais tempo”.

Essa foi a tarefa de vida de Russell Kirk, um intelectual totalmente devotado à recuperação dos valores fundacionais de nossa civilização, que, após alcançar o ápice na filosofia, na arte e na ordem moral por séculos de tradição e aprendizados – uns prazeirosos, outros (muito) dolorosos –, atualmente passa por um de seus maiores desafios: vencer a sanha incansável de ideólogos culturais, sedentos por destruir os valores que nos trouxeram até aqui, a fim de implantar uma utopia igualitária que, conforme a experiência vem nos mostrando, gera caos e morte. É dever de todo aquele que ama o seu país lutar com as armas da imaginação moral contra a degradação normativa, a fim de impedir que sucumbamos, como os Homens Ocos de T. S. Eliot – grande amigo de Kirk:

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Entre o desejo
E o espasmo
Entre a potência
E a existência
Entre a essência
E a descendência
Tomba a Sombra
                                   Porque Teu é o Reino
Porque Teu é
A vida é
Porque Teu é o

Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um suspiro.