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Detalhe do painel central do tríptico “O Juízo Final”, de Hieronymus Bosch.
Detalhe do painel central do tríptico “O Juízo Final”, de Hieronymus Bosch.| Foto: Reprodução

“Ivan Fiodórovitch acrescentou, entre parênteses, que é nisso que consiste toda a lei natural, de sorte que, destruindo-se nos homens a fé em sua imortalidade, neles se exaure de imediato não só o amor como também toda e qualquer força para que continue no mundo. E mais: então não haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a antropofagia.” (Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov)

A conversa da semana passada com meus alunos – mencionada meu último artigo – sobre essas complicadas questões de gênero se esticou até essa semana. Isso porque gosto de explorar, com vagar e minuciosamente, o que eles compreendem dos temas, colher suas opiniões, levantar e ouvir os contrapontos e propor caminhos. O assunto é inescapável, uma vez que eles são bombardeados por ele o tempo todo nas redes sociais, vivem isso em seu dia a dia e, como é o cerne da reflexão levantada pelo artigo anterior, pautada pela resposta de Camille Paglia na entrevista citada, essa discussão se tornou central na sociedade contemporânea. Como amo ouvir o que os jovens pensam e ajudá-los a formular melhor seus argumentos, exploro esses temas polêmicos sempre que posso.

A maior resistência que meus alunos – que são os melhores! – tiveram em relação à provocação de Camille Paglia se assenta numa dificuldade comum que eles – e a maioria das pessoas – tem: a capacidade de abstração. Como imaginar um mundo que, após um colapso civilizacional, precisará se reconstruir, e como compreender que, como ela diz, o “masculino”, que hoje é visto retrógrado, ressurgirá e “precisaremos dos homens novamente”. Parece uma afirmação machista para os padrões atuais, mas trata-se somente de constatar que a mesma configuração social que nos trouxe até aqui será, por pura necessidade, novamente evocada – sem qualquer juízo de valor. Eles não conseguem mais pensar fora das categorias que lhes estão postas como normais. Ainda acharam absurdo que eu dissesse que, caso, após tal colapso, restassem poucas pessoas no mundo, a necessidade de repovoá-lo seria automática, por um natural e elementar senso de sobrevivência e de perpetuação da espécie. Uma querida aluna, muito perspicaz e irreverente, disse: “você acha que as pessoas, com tanta coisa pra fazer, vão ficar transando?!” Eu disse: “Sim. Também”. Ela fez uma cara de indignada.

É óbvio que regras morais, digamos, estanques existem; elas são reconhecíveis até por quem deseja transgredi-las – caso contrário não seria transgressão

O segundo ponto é que eles não compreenderam a preocupação da filósofa americana em relação ao que ela chamou de propaganda a respeito dessa multiplicidade de gêneros que a cada dia se impõe. E diz, como escrevi no artigo anterior, que “as cirurgias de resignação sexual não podem mudar o sexo de ninguém e não deveriam ser incentivadas nem mesmo na adolescência; e que tal intervenção, inclusive a aplicação de hormônios para retardar a puberdade, é uma espécie de abuso infantil”. Ela não nega que haja algo para além do homem e da mulher – ela mesma se reconhece, de alguma forma, como uma pessoa que não se enquadra em seu gênero –, e nem menospreza a discussão; mas diz que há um perigoso exagero em como esse tema está sendo abordado e que as pessoas deveriam esperar mais para decidirem sobre mudanças tão radicais. Ou seja, ela está longe de ser, como eu, uma pessoa conservadora. Mas está tentando ser prudente e intelectualmente honesta.

Pois bem. Após uma longa discussão sobre identidades, direitos individuais e coletivos, igualdade e liberdade, tentei explicar-lhes com uma pergunta mais ou menos assim: “existe um marco civilizatório – uma espécie de linha no chão – reconhecível por nós e que não estamos dispostos a ultrapassar sob a pena de causarmos a nossa própria destruição?” E aqui notei um certo titubeio, óbvio na juventude, em relação à ideia de regras morais, digamos, estanques. Mas é também óbvio que elas existem; e é desnecessário esse questionamento, uma vez que as regras morais são reconhecíveis até por quem deseja transgredi-las – caso contrário não seria transgressão.

Como diz o filósofo Eric Weil, em seu excelente Filosofia Moral, “seria ocioso perguntar como o homem chega a essas regras, e seria inútil buscar o começo e a origem da consciência moral. O homem enquanto ser moral, vale dizer, enquanto humano em sentido estrito, se encontra sempre provido de regras; mais ainda, ele é incapaz de se imaginar em um estado de ausência de regras: fora das regras ele não encontra senão o animal em forma mais ou menos humana [...]. Só o homem segue regras, porque só o homem pode não segui-las e, de fato, muito frequentemente não as segue. É enquanto ser violento que ele é moral, enquanto transgressor que ele tem consciência das regras”.

Ou seja, ainda que tenhamos receio de admitir que esse marco civilizatório existe, é difícil negá-lo. E, de novo, com um exemplo foi possível levá-los à reflexão. Perguntei: “vocês acham possível que, um dia, a pedofilia seja considerada uma orientação sexual?” Eles me olharam um tanto assombrados; alguns disseram um veemente “não”, enquanto outros disseram que a possibilidade existe. E, após um certo mistério, pedi que fizéssemos uma consulta no Google por “pedofilia é uma orientação sexual?” E voilà! A primeira resposta, da revista Galileu, é: “A pedofilia é uma condição psicológica, provavelmente incurável, para a qual ainda há poucas alternativas de tratamento. É, em resumo, uma espécie de orientação sexual com preferência etária, que possui, claro, as mais severas implicações éticas” (grifo meu). E essa é só a primeira resposta; há outras tantas, somadas à defesa explícita da normalização da pedofilia. Essas questões já foram trazidas a debate inclusive aqui, nesta Gazeta do Povo. E sob o olhar absolutamente estupefato de meus alunos, eu disse: “Pois é, essa é a preocupação”.

E terminei dizendo que, no fundo, o que a resposta de Camille Paglia parece querer nos dizer é que não temos mais capacidade de assimilar e, caso necessário, impedir os ataques aos valores mínimos que nos fazem existir enquanto civilização, e que esse é um caminho sem volta – ou seja, o colapso. Mas salientei, como sempre faço, que não se trata de concordar ou discordar da filósofa, mas de reconhecer que ela tem um ponto, e que compreendê-lo em profundidade nos permite avaliar, de fato, a validade de seus argumentos, e só aí concordar ou discordar. Mas minha função é fazê-los refletir, e não necessariamente induzi-los a concluir. Foi uma boa discussão.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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