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Pedido do MPF demonstra “como as liberdades e o Estado de Direito estão em declínio no Brasil”, diz matéria de jornal espanhol
Pedido do MPF demonstra “como as liberdades e o Estado de Direito estão em declínio no Brasil”, diz matéria de jornal espanhol| Foto: Jovem Pan/Divulgação

Em mais um episódio triste para a democracia brasileira – que está cada vez mais distante de uma democracia plena – o Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação civil pública, no fim do mês de junho, para cassar três concessões de rádio da Jovem Pan. A liberdade de imprensa, princípio básico em qualquer democracia, é um direito fundamental assegurado pelo artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal. Porém, para algumas autoridades, essa liberdade depende cada vez mais da opinião de quem exerce o poder.

É como se a Constituição não mais existisse e os direitos e garantias fundamentais fossem outorgados pelas autoridades desde que você concorde com elas. Ao menos, esse parece ser o recado que elas estão passando agora para os jornalistas e a população em geral. Essa história não começou hoje, e, pelo visto, a Jovem Pan não será o último alvo. Mas princípios e valores não podem ser aplicados somente para uns em detrimento dos demais.

Muitas pessoas acham que o que solapa a democracia é um golpe repentino e feito de uma só vez. Porém, a perda de direitos e a escalada do autoritarismo também pode ser gradual.

E nem precisamos falar da época do regime militar. Já no Brasil “redemocratizado”, no dia 11 de abril de 2019, a revista Crusoé publicou a reportagem “O amigo do amigo de meu pai”, sobre a menção a um dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e então presidente da Corte na Operação Lava Jato. A reportagem foi censurada por outro ministro do STF, que agora também atua pela regulamentação das redes sociais – que pode resultar no aumento da censura.

De lá para cá, outros casos que podemos chamar de, no mínimo, estranhos, continuam acontecendo. Um exemplo foi a censura do dia 2 de outubro de 2022. Em pleno primeiro turno das eleições, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ministro do STF censurou uma reportagem do Antagonista sobre o fato do líder do PCC (Primeiro Comando da Capital), Marcola, ter dito que preferia Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para presidente. O PCC é a maior organização criminosa do país. A multa diária para o descumprimento da decisão de tirar a reportagem do ar foi de R$ 100 mil. Até hoje, não se sabe se a censura serviu para proteger a reputação do PCC ou do Partido dos Trabalhadores.

O erro da Jovem Pan, pelo visto, foi ser um espaço aberto de debate para temas controversos – algo que é, inclusive, essencial para o avanço da democracia.

Muitas pessoas acham que o que solapa a democracia é um golpe repentino e feito de uma só vez. Porém, a perda de direitos e a escalada do autoritarismo também pode ser gradual. Nos países democráticos, é comum o cidadão abrir o jornal e ler notícias sobre violência. Isso é tão comum que as pessoas até costumam saber quais são as cidades mais perigosas ou os bairros onde é mais provável que sofram um assalto. Porém, não é assim na Venezuela. Em 2010, ainda sob Hugo Chávez, os jornais venezuelanos foram censurados apenas por noticiar casos de violência. A realidade precisava ser mascarada e não podia mais ser livremente reportada.

Como não era interessante para a propaganda do governo bolivariano de Chávez a representação de um país violento sob seu comando, a Justiça venezuelana proibiu a publicação de imagens com cenas de violência nos jornais de todo o país. Claro que a justificativa foi um motivo positivo, virtuoso e “para o bem” da população. A promotora Gabriela Ramírez, por exemplo, defendeu a censura dizendo que ela iria "proteger" crianças e adolescentes. “É simplesmente grotesco que estas imagens sejam usadas em meio à campanha (para as eleições), que (a violência) seja usada como bandeira política”, disse ela, de acordo com o G1. A violência crescente era um dos piores marcos do governo Chávez, que a tratava como um problema de exclusão social – e tentava  combatê-la com programas sociais, mas fracassava dia após dia.

A censura começa com uma maquiagem bonita, com uma justificativa virtuosa, mas, pouco a pouco, vai se tornando cada vez pior e escancarada.

Esse não foi o único caso de censura à mídia venezuelana. Houve um caso ainda pior antes. Em 2007, Chávez fechou o canal de televisão venezuelano RCTV, a Radio Caracas Televisión, uma das emissoras mais importantes da América Latina. Desde 1999, a RCTV era crítica ao governo de Chávez. Em 2002, foi o “começo de seu fim”, como bem lembrou a Gazeta do Povo na semana passada. Naquele ano, a RCTV foi acusada de participar de uma tentativa de golpe para tirar Chávez do poder. Depois de anos combatendo a emissora, Chávez anunciou em 2006 que “a concessão vai acabar porque a Venezuela deve ser respeitada”.

Anos depois, o que sobrou da mídia venezuelana? Em janeiro de 2021, a ditadura da Venezuela, desta vez sob o comando de Nicolás Maduro, tirou do ar o canal VPItv, que costumava ser o único a ainda transmitir atos e entrevistas da oposição, conforme noticiado pela Folha de S. Paulo. Na mesma época, o site independente Tal Cual teve sua página suspensa “indefinidamente”. Eles não foram os únicos a enfrentar esse tipo de censura na Venezuela. É possível notar um padrão: a censura começa com uma maquiagem bonita, com uma justificativa virtuosa, mas, pouco a pouco, vai se tornando cada vez pior e escancarada.

Sem dúvidas, não é isso que queremos no nosso país. A democracia precisa prevalecer e, para isso, precisamos garantir todos os princípios e valores que a tornam possível: liberdade de expressão e de imprensa, liberdade religiosa, liberdade civil, liberdade política, liberdade econômica, propriedade privada, economia de mercado, Poder Judiciário independente, separação entre os poderes e Estado de Direito.

A cassação da Jovem Pan, de igual modo, teve uma bela e virtuosa justificativa. O MPF acusou a emissora de rádio de “alinhamento à campanha de desinformação que se instalou no país ao longo de 2022 até o início deste ano, com veiculação sistemática, em sua programação, de conteúdos que atentaram contra o regime democrático”. O erro da Jovem Pan, pelo visto, foi ser um espaço aberto de debate para temas controversos – algo que é, inclusive, essencial para o avanço da democracia e para fazer melhorias do sistema político. Discutir as eventuais falhas da nossa democracia é o melhor meio para aperfeiçoar o nosso sistema.

Qual a régua para definir o que pode e o que não pode ser dito (já que a Constituição parece não ter mais importância)?

É interessante notar que o Partido dos Trabalhadores ativamente espalhou fake news contra seus opositores desde que começou, mas nunca teve seu direito de atuação cassado. Em 2014, por exemplo, Lula disse, durante a campanha de Dilma Rousseff, que os tucanos “parece que estão agredindo a gente (os nordestinos) como os nazistas na Segunda Guerra Mundial”. As táticas de difamação do PT ficaram conhecidas mundo afora. Ainda em 2014, o jornal britânico Financial Times noticiou a acusação de nazismo de Lula contra o PSDB e também a máquina de desinformação petista contra Marina Silva, que na época concorria à Presidência pelo PSB. O Financial Times inclusive deu voz à hoje ministra do Meio Ambiente de Lula.

“Uma coisa terrível que eles (PT) disseram era que eu sou homofóbica e que uma pessoa gay tentou se aproximar de mim e meus seguranças bateram com tanta força que ele morreu”, contou Marina ao veículo internacional. “Marina Silva acusa o PT de Dilma Rousseff de usar servidores públicos para espalhar mentiras pelas redes sociais e contatos comunitários, como o alerta de que a candidata que é evangélica iria proibir videogames”, escreveu o Financial Times.

Críticas pontuais ao processo eleitoral não podem, por si só, serem qualificadas como ataques à democracia.

Se um partido político, que, inclusive, participou dos dois maiores esquemas de corrupção do Brasil (um deles foi o segundo maior do mundo), não perde sua liberdade ou direito de atuação por espalhar fake news contra seus opositores ativamente, por que uma emissora de rádio, com comentaristas de diferentes opiniões e jornalistas profissionais deveria ser cassada? Qual a régua para definir o que pode e o que não pode ser dito (já que a Constituição parece não ter mais importância)?

Advogado constitucionalista, professor e especialista em liberdade de expressão e direito digital, André Marsiglia analisou o processo do MPF contra a Jovem Pan. Esta foi sua conclusão: “Examinei o pedido de cancelamento de outorga feito pelo MPF e não há como entendê-lo técnico, correto ou razoável juridicamente. Ele se baseia, em essência, na opinião de comentaristas da emissora”. O especialista segue a explicação adiante. “Tenho insistido que opinião não pode ser classificada como desinformação. Opinião é uma leitura subjetiva do fato, não pode ser confundida com o ato de informar um fato. Se não possui intenção de informar, não pode ser desinformativa”, completou ele.

Os cidadãos devem poder criticar e os veículos de comunicação devem poder existir, sem qualquer ataque à sua liberdade de imprensa e de expressão.

Marsiglia também acrescentou que cancelar o direito de transmissão da Jovem Pan  “insinua que a emissora existe tão somente com a finalidade de desinformar, que não tem em momento algum intenção jornalística ou informativa, uma acusação que por si só causa ao setor e ao jornalismo algum tipo de receio futuro”.

E não é só a cassação da Jovem Pan que o MPF está pedindo. As autoridades também desejam que a emissora seja condenada a pagar quase R$ 14 milhões em indenização por “danos morais coletivos”. “O MPF pleiteia que a Justiça Federal obrigue a Jovem Pan a veicular, ao menos 15 vezes por dia entre as 6h e as 21h durante quatro meses, mensagens com informações oficiais sobre a confiabilidade do processo eleitoral”, disse o órgão.

A cassação da Jovem Pan não pode ser mais um capítulo que nos distancia das democracias plenas.

Na melhor das hipóteses, isso iria provocar ainda mais desconfiança da audiência da emissora em relação às autoridades e ao sistema político brasileiro. “O cancelamento de uma outorga de radiodifusão é uma medida extrema e grave, sem precedentes em nosso Estado Democrático de Direito” disse a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), em relação ao processo que a Jovem Pan enfrenta. “A liberdade de programação das emissoras é fundamental para o livre exercício do jornalismo e para a existência do pluralismo de opinião, que devem ser semprepreservados”, completou a Abert. Foi uma manifestação sábia sobre o assunto.

O trabalho da Jovem Pan, ao se analisar o impacto todo, mais contribui para o aprimoramento da democracia do que para seu enfraquecimento. Críticas pontuais ao processo eleitoral não podem, por si só, serem qualificadas como ataques à democracia. Faz parte do processo democrático debater, avaliar e, até mesmo, criticar pontos do processo democrático de escolha de nossos representantes que podem enfraquecer o controle social, a participação popular e que podem dificultar a entrada de novos representantes.

Exemplos disso são críticas pontuais ao financiamento público de campanhas, a eventual falta de mecanismos de auditoria ou de verificação manual de votos, a censura de temas durante o processo eleitoral e, até mesmo, os critérios de definição dos coeficientes eleitorais. Faz parte da democracia discutir eventuais fraquezas e inconsistências do sistema político ou do processo eleitoral – debate fundamental para melhorar o sistema e a vida dos cidadãos.

A democracia não pode existir pela metade, exatamente por isso foi cunhado o termo "democracia plena", que deveria ser aplicada pelo Brasil. O Brasil não pode tolerar abusos como os cometidos na Venezuela. O povo brasileiro merece ter acesso à informação, os jornalistas devem ter direito de informar, os comentaristas devem ter o direito de opinar. Os cidadãos devem poder criticar e os veículos de comunicação devem poder existir, sem qualquer ataque à sua liberdade de imprensa e de expressão.

A cassação da Jovem Pan não pode ser mais um capítulo que nos distancia das democracias plenas. O direito à liberdade de imprensa dos veículos de comunicação é, na verdade, a forma de preservar a sua liberdade de informação e de acesso a diferentes opiniões. Só em uma ditadura existe a verdade oficial. Os brasileiros jamais deixarão o Brasil voltar a ser uma ditadura. Ditadura nunca mais!

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