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Pílula abortiva
Suprema Corte dos EUA: redes sociais não devem ser responsabilizadas pelas publicações de seus usuários.| Foto: Pixabay

A Suprema Corte dos Estados Unidos manteve o entendimento de que as redes sociais não devem ser responsabilizadas pelas publicações de seus usuários. A decisão foi tomada neste mês de maio e reafirma a Seção 230 dos Estados Unidos, a lei americana que isenta as redes sociais de pagar a conta por conteúdos de terceiros. Como deve ser bom respirar num país em que se respeita a liberdade de expressão e a segurança jurídica! No Brasil, por outro lado, as pessoas que se julgam mais democratas, desenvolvidas e amantes do progresso humano defendem, muitas vezes, que as redes sociais sejam responsabilizadas por publicações de seus usuários.

Se um infeliz faz apologia ao nazismo, comunismo, fascismo, socialismo ou a qualquer outro regime totalitário no Twitter, no Instagram, no Telegram ou no WhatsApp, será que as plataformas devem ser responsabilizadas ou o indivíduo que abusou da sua liberdade de expressão? Ou ambos? No Brasil, pelo visto, se a apologia for em favor do socialismo e do comunismo, parece que ninguém precisa ser responsabilizado. Temos até partidos e políticos que fazem isso. Mas, se houver qualquer outro abuso, tem gente que quer responsabilizar as plataformas, sem levar em consideração os problemas dessa decisão, a chamada lei das consequências não intencionais.

Como ocorre com qualquer política pública, não basta avaliar as intenções buscadas, mas, acima de tudo, os resultados efetivos que serão produzidos.

Segundo essa lei, qualquer ação ou decisão pode ter consequências que não são desejadas ou pretendidas pelo agente. Muitas vezes, as consequências não intencionais podem ser piores do que o benefício pretendido. Assim, como ocorre com qualquer política pública, não basta avaliar as intenções buscadas, mas, acima de tudo, os resultados efetivos que serão produzidos, incluídos os resultados não intencionais de qualquer decisão, ação ou política.

E, ao fazer essa análise, ponderando princípios e valores, a Suprema Corte americana, de forma unânime, por 9 x 0, entendeu que as plataformas não podem ser responsabilizadas por conteúdo de terceiros, salvo se ficar comprovado que as plataformas contribuíram ou instigaram um conteúdo sabidamente ilegal ou violento. Segundo o voto do ministro Clarence Thomas, a mera demora ou atraso na remoção desse conteúdo não é suficiente para comprovar a culpabilidade das plataformas digitais.

Se você for responsabilizado por conteúdos de terceiros postados na sua plataforma, você, certamente, irá criar mecanismos de censura prévia.

No Brasil, se a responsabilização das plataformas por conteúdos de terceiro avançar com o PL da Censura (PL 2630/2020), o que será que vai ocorrer? Evidentemente, as plataformas criarão mecanismos para censurar, previamente, qualquer conteúdo, afirmação ou crítica que possa parecer controversa. E isso terá um impacto muito grande na liberdade de expressão, no direito à informação e, sobretudo, na capacidade da população fazer o controle social dos poderosos governantes e representantes.

Ora, coloque-se no lugar das plataformas. Se você for responsabilizado por conteúdos de terceiros postados na sua plataforma, você, certamente, irá criar mecanismos de censura prévia para evitar qualquer tipo de responsabilização. Ao fazer isso, mesmo não querendo, você irá limitar, reduzir e controlar, direta ou indiretamente, o conteúdo e o alcance do debate público. Será que isso trará mais benefícios do que prejuízos? É muito difícil sustentar isso em uma democracia que pretende ser plena e que já viveu e sentiu os malefícios de um governo autoritário.

Vamos culpar as operadoras de telefonia porque um presidiário usa seus serviços de telecomunicações para praticar crimes de dentro da penitenciária?

É o mesmo que culpar os Correios por entregar um pacote que, sem o conhecimento dos carteiros, tem uma mensagem racista dentro. Vamos aprovar uma lei para os Correios lerem todas as cartas antes da entrega para evitar algum abuso? Ou devemos focar a energia do Estado em punir quem abusou da sua liberdade?

E no caso de ligações com a finalidade de realizar um ato sabidamente ilegal como extorsão ou chantagem? Vamos culpar as operadoras de telefonia porque um presidiário usa seus serviços de telecomunicações para praticar crimes de dentro da penitenciária ou devemos culpar o Estado e seus líderes que são coniventes com a obtenção e uso de telefones celulares dentro das cadeias? Imaginem se houvesse uma lei obrigando as telefônicas a escutarem todas as ligações e derrubarem aquelas que possuem algum tipo de conteúdo sabidamente ilegal.

Enfim, os exemplos são variados. No momento em que você aceita que o controle da informação pode e deve ser realizado previamente para impedir que indivíduos cometam crimes, mesmo sem querer, você aceita a censura prévia e todas as terríveis consequências que isso produziu ao longo da história.

"Vamos continuar o nosso trabalho para salvaguardar a liberdade de expressão online, combater conteúdos nocivos e apoiar empresas e criadores que se beneficiam da internet", afirmou a conselheira-geral do Google, Halimah DeLaine Prado, sobre a decisão da Suprema Corte americana. Esse deve ser sempre o caminho em uma democracia.

Os brasileiros que entendem o perigo do controle do debate público sabem dos riscos que o PL da Censura traz.

A Seção 230 foi aprovada antes mesmo das redes sociais se tornarem comuns no dia a dia dos americanos: em 1996, há 27 anos. Ela faz parte da Lei de Decência nas Comunicações (Communications Decency Act) e estabelece que os provedores de serviços na internet não devem ser tratados como porta-vozes do que é publicado por terceiros. As plataformas também têm certa proteção jurídica debaixo da Seção 230: podem banir conteúdos postados de usuários que infrinjam direitos autorais, violem leis federais ou sejam pornográficos, por exemplo.

Mas enquanto a Constituição americana respeita a liberdade de expressão, no Brasil, algumas coisas surreais acontecem. Em 9 de maio deste ano, o Telegram foi obrigado a enviar uma mensagem de retratação aos seus usuários por ter se posicionado contra o PL da Censura, sendo essa mensagem redigida pelo próprio Poder Judiciário. Foi determinado que o Telegram excluísse a mensagem contrária ao PL em um prazo máximo de uma hora, sob pena de suspensão de 72 horas e uma multa de R$ 500 mil por hora de descumprimento da ordem. Por acaso, uma pessoa jurídica não pode manifestar livremente sua opinião para seus usuários?

Caso aprovado, o PL vai garantir, de vez, a restrição da liberdade de expressão no Brasil, incentivar a desinformação, impedir a livre circulação de dados.

Isso pode significar a criminalização da liberdade de expressão e ameaça aos bastiões da democracia. A mensagem do Telegram, que foi censurada, falava exatamente disso. “A democracia está sob ataque no Brasil. A Câmara dos Deputados deverá votar em breve o PL 2630/2020, que foi alterado recentemente para incluir mais de 20 artigos completamente novos que nunca foram amplamente debatidos. Caso seja aprovado, empresas como o Telegram podem ter que deixar de prestar serviços no Brasil, disse o aplicativo. Uma de suas afirmações é que o PL da Censura “matará a internet moderna se for aprovado com a redação atual”.

Na mensagem, o aplicativo também deu um ótimo argumento contra a responsabilização das redes sociais em relação aos conteúdos de terceiros: que isso iria transferir às plataformas poderes de censura, que deveriam ser restritos ao Poder Judiciário, dentro do devido processo legal e com observância do amplo direito de defesa. “Para evitar multas, as plataformas escolherão remover quaisquer opiniões relacionadas a tópicos controversos, especialmente tópicos que não estão alinhados à visão de qualquer governo atualmente no poder, o que coloca a democracia diretamente em risco”.

Entre liberdade e censura, sempre, devemos ficar ao lado da liberdade.

O cientista político italiano e coordenador do curso de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec) de Belo Horizonte, Adriano Gianturco, alertou que o que estamos vivendo no Brasil é “totalmente surreal” e incomum nos países democráticos. Em entrevista à revista Oeste na semana passada, ele disse que “as pessoas podem chamar como quiserem: de democracia, autoritarismo ou ditadura do Judiciário. A verdade é que estão sendo tomadas uma série de decisões ilegais, ilícitas, inconstitucionais, especialmente contra um lado político”.

Sem dúvidas, não é um momento bom para os amantes da liberdade no Brasil. Temos parlamentares que querem aprovar o PL da Censura (basicamente só a oposição ao governo Lula e a Bancada Evangélica são contra), um presidente no poder cujo partido sempre sonhou com a regulação da mídia, e um Poder Judiciário que parece estar cada vez mais disposto a seguir o caminho contra a liberdade de expressão.

Analisando de perto, não é difícil admitir que a melhor opção é não responsabilizar as redes sociais pelo conteúdo de terceiros. Evidentemente, deve se criar mecanismos para a responsabilização a posteriori de conteúdos abusivos, bem como a retirada rápida de conteúdos determinados pelo Poder Judiciário em um processo que respeite o devido processo legal e a ampla defesa, mas tudo dentro do estado democrático de direito, sem nenhum regime de exceção.

Os brasileiros que entendem o perigo do controle do debate público sabem dos riscos que o PL da Censura traz. Portanto, devem pressionar contra sua aprovação, pois o vírus autoritário de censura já está corroendo a frágil e jovem democracia brasileira: o PL vem apenas para tentar fazer com que ele pareça legítimo. Caso aprovado, o PL vai garantir, de vez, a restrição da liberdade de expressão no Brasil, incentivar a desinformação, impedir a livre circulação de dados e quebrar o modelo de negócios de plataformas como Telegram, Google, Meta (dona do Facebook, WhatsApp e Instagram) e Twitter.

Responsabilizar as plataformas por conteúdos de terceiros incentiva a censura prévia e, consequentemente, reduz a livre circulação de ideias, principalmente de críticas aos poderes constituídos, enfraquecendo o debate público de temas importantes para o cenário nacional, assim como a acessibilidade das pessoas às discussões relevantes para o país. Entre liberdade e censura, sempre, devemos ficar ao lado da liberdade. Quem escolhe a censura para ter mais segurança, amanhã ou depois, ficará como Benjamin Franklin alertou: "Aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança".

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