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Pergunta ao Judiciário: as instituições podem ser usadas para atender interesses pessoais?
| Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Críticas e ofensas aos governantes, políticos, juízes, promotores e ministros fazem parte do processo democrático. Se alguém se sentir ofendido ou prejudicado, existem mecanismos legais, válidos para qualquer cidadão brasileiro, para buscar a devida reparação. Em uma democracia plena, a lei deve ser igual para todos, sem privilégios ou favorecimentos.

Mas será que um presidente da República, presidente da Câmara ou do Senado Federal ou ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) pode usar seus poderes para perseguir, retaliar ou punir alguma pessoa ou instituição que o tenha ofendido como pessoa ou mesmo em nível institucional? Será que os membros do Poder podem decidir a favor de si mesmos? Os mais altos representantes das instituições democráticas devem observar regras de conflito de interesses? Ou o princípio da impessoalidade, que é um dos cinco princípios que rege a administração pública, estabelecidos pela Constituição de 1988, não se aplica para eles? Esse princípio serve justamente para separar o interesse próprio, e até a honra pessoal, do exercício do Poder Público.

O princípio da impessoalidade é uma decorrência lógica do princípio republicano da coisa pública, de que nenhum órgão público, muito menos um Poder da República, pode ser capturado por nenhum grupo de interesse ou pessoa para atender questões corporativistas ou pessoais. A impessoalidade é ainda mais necessária para aquelas pessoas que não ocupam cargos ou funções representativas, ou seja, que não foram eleitas. Afinal, elas não exercem um mandato popular delegado pelo povo. Assim, aqueles que chegaram ao poder por meio de concurso, indicação ou livre nomeação devem observar ainda mais estritamente esse princípio. Na prática, infelizmente, não é isso que tem acontecido no Brasil. E os exemplos são muitos, principalmente no Poder Judiciário.

No ano passado, um ministro do STF prestou queixa contra um homem que o xingou dentro de um clube de lazer em São Paulo. O ministro nem sequer estava no clube no momento em que foi xingado, mas seus seguranças ouviram a ofensa e foram averiguar a situação. Antes de ser conduzido à delegacia pela Polícia Militar, o homem chamou esse ministro de “ladrão” e “advogado do PCC”. A Polícia Civil abriu um inquérito sigiloso para investigar o caso.

Xingar alguém é uma tremenda falta de educação, mas será que a máquina pública deveria ser utilizada para retaliar um cidadão insatisfeito, como ocorreu nesse caso? Alguém que xingou você já foi escoltado pela polícia à uma delegacia? Enquanto a máquina pública é usada para atender interesses pessoais de poderosos da República, o cidadão comum sofre com a falta de proteção. É crime demais e não sobra tempo para a polícia combater todos eles, especialmente quando ela é usada para outras finalidades.

Em um outro episódio, um desembargador e então presidente do Tribunal de Justiça do Piauí se irritou com uma reportagem que denunciou que sua filha, uma servidora do mesmo tribunal, teve o privilégio de poder ser transferida para um cargo no Tribunal de Justiça do Maranhão antes de cumprir os três anos de estágio probatório. Em acordo firmado em 2016 com três jornalistas responsáveis pela matéria, o desembargador recebeu indenização de R$ 16 mil por difamação. A denúncia foi excluída dos sites em que havia sido publicada, com retratação dos veículos que replicaram a informação. Se fosse sobre um cidadão comum, isso teria ocorrido?

Em 2019, o mesmo desembargador foi acusado do crime de grilagem: ele teria comprado um terreno sem documentos e usado sua influência para legalizar a propriedade. Um jornalista fez reportagens e notas sobre o caso em sua coluna num jornal online. Você já pode imaginar o que aconteceu com ele: tomou um processo nas costas. Foi uma confusão atrás da outra entre o desembargador e o jornalista. Em março de 2021, o jornalista foi condenado a três anos de prisão.

Em 2019, a reportagem “O amigo do amigo de meu pai”, da revista Crusoé, foi censurada por um ministro do STF por noticiar, em detalhes, o codinome de outro ministro do Supremo na Odebrecht, um escândalo descoberto pela operação Lava Jato. Em 2016, cinco jornalistas da Gazeta do Povo e o próprio veículo sofreram 40 processos de juízes e promotores que ficaram furiosos com a divulgação de que recebiam remunerações acima do teto.

E não é só com censura à mídia ou perseguição que o princípio da impessoalidade tem sido ferido dentro dos Poderes, especialmente no Judiciário. O alto escalão usou sua autoridade, também, para comprar passagens internacionais para esposas. Entre 2009 e 2012, o STF gastou R$ 1 milhão para bancar viagens internacionais de primeira classe para as esposas de dois ministros e três ex-ministros aposentados. Como isso foi possível? Por decisão do próprio STF, baseada na Resolução 545/2015, de sua própria autoria. A resolução garantia primeira classe em viagens para o exterior tanto para o ministro como para sua esposa “quando indispensável sua presença”.

Semana passada, foi a vez da decisão sobre o aumento dos salários. Os ministros aprovaram adicional para eles mesmos de 18%, para receberem R$ 46,3 mil cada, em vez dos R$ 39,2 mil atuais. O aumento deve se concretizar em quatro parcelas: a primeira em abril de 2023, quando os ministros vão receber R$ 41,1 mil, e a última em julho de 2024, quando eles receberão os R$ 46,3 mil aprovados. No ano que vem, o custo do STF vai crescer para R$ 850 milhões. Mas o problema maior não é esse.

Os rendimentos dos demais juízes estão limitados aos salários do STF. Com o aumento da Suprema Corte, a folha de pagamento dos demais membros do Judiciário no Brasil custará pelo menos R$ 4 bilhões a mais. Como era de se esperar, o efeito será em cascata. Seguindo o STF, o Ministério Público Federal (MPF) decidiu também pedir o aumento de 18%. Inicialmente, a ideia era que os membros do MPF tivessem aumento de 13,5% no ano que vem, que pesaria R$ 91,1 milhões a mais nas costas dos pagadores de impostos. Porém, a decisão do STF fez o MPF querer mais. O custo de aumento de 18% para o MPF ainda não foi calculado.

Vale lembrar que o efeito cascata não para por aqui. O salário máximo que um servidor pode ganhar é o mesmo salário de um ministro do Supremo. Dessa forma, mais servidores terão aumentos absurdos “dentro da lei”, decorrentes do aumento do Supremo. Será um trem da alegria. Ambos os reajustes ainda serão avaliados e aprovados ou não pelo Congresso, mas você acredita que o Congresso terá força para barrar? Com a Lei da Ficha Limpa, se o Judiciário quiser, ele pode tornar qualquer candidato inelegível com uma condenação em segunda instância.

Com todos esses exemplos, fica claro que nem todos aqueles que representam as instituições democráticas no Brasil estão respeitando o princípio da impessoalidade, algo indispensável para cumprirem, de fato, a sua missão. Enquanto o exemplo não vier de cima, dos Três Poderes (Judiciário, Legislativo e Executivo), os brasileiros continuarão assistindo o uso e abuso das instituições para fins privados, partidários e corporativistas. Com tantos episódios de regalias, abuso de poder e regras especiais, nosso país seguirá sendo uma terra de injustiças, e a nossa democracia continuará sob ameaça.

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