Foto: Ivan Amorin/Gazeta do Povo/Arquivo| Foto:

Sâmia Bomfim, do PSol, gravou um vídeo sobre a reforma da Previdência. Nesta coluna fiz objeções, convidando ao debate em Os 10 enganos de Sâmia Bomfim sobre a Previdência. Sâmia respondeu ponto por ponto em Os equívocos de Pedro Nery sobre a reforma da Previdência, com críticas e concessões. Dou sequência ao debate.

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Tréplicas são chatas. Exigem demais do leitor, que tem que relacionar três textos diferentes (e nessa ainda um vídeo). Passam a impressão de alguém que tem que estar certo e dar a última palavra.

Prefiro apontar nesse texto concordâncias, discordâncias remanescentes e ajudar o leitor a formar convicção sobre um tema complexo que perpassa as contas públicas, o mercado de trabalho, a macroeconomia, o combate à pobreza, a política tributária. Para o leitor mais à esquerda, indago: o que é uma política fiscal progressista?

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No que concordamos

A proposta para o BPC é ruim.

A elevação do tempo mínimo de contribuição de 15 para 20 anos é temerária, pois esse é o requisito mais difícil a ser alcançado pelos mais pobres – especialmente mulheres.

A capitalização gera preocupante perda de arrecadação. Ela é contradiz o discurso de déficit e eventuais ganhos serão pequenos e de longo prazo, face um problema fiscal urgentíssimo a ser resolvido. Nesta coluna, na campanha, critiquei por isso o plano Weintraub e o plano de Ciro. Não à toa, Bolsonaro, Maia e Guedes admitem retirá-la.

No que discordamos

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Sâmia subestima a despesa previdenciária em relação ao PIB, pois considera apenas a despesa com o INSS. O dado com os regimes próprios, bastante utilizado, é de 13-14% do PIB (quase o dobro dos 7,5% de Sâmia). É o mesmo patamar dos países ricos e já envelhecidos citados por ela.

Sâmia adotada uma contabilidade para o orçamento questionada pelos próprios economistas do PSOL, apontando os juros como a principal despesa, e não a Previdência. Mostramos aqui este problema: dentre os economistas ligados ao PSOL, David Deccache fala em “espantalho”, José Luís Fevereiro em “soluções mitológicas” e Laura Carvalho em gráfico errado que deveria sumir do mapa.

Sâmia entende que o setor produtivo é a favor da reforma, apesar dela “esfriar” o consumo (segundo seu vídeo), porque mesmo setores como construção ou varejo vão “abocanhar aposentadorias por meio de fundos de pensão que seriam criados com a capitalização”. O raciocínio é pouco sofisticado e também falta evidência de que “todas as grandes empresas do mundo lucram mais no mercado financeiro do que pela venda de seus bens e serviços.”  E a capitalização também não cria fundos de pensão.

Como a política fiscal pode ser mais progressista?

Após essas considerações mais aborrecidas, vale a reflexão sobre as visões diferentes colocadas nos textos – especialmente para o leitor mais tendente a concordar com o PSOL.

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A política fiscal tem dois lados: o da arrecadação e o do gasto. Suponha uma regra de bolso simples: a política fiscal deve arrecadar dos mais ricos e gastar com os mais pobres.

Ainda que se concorde com a regra, o processo histórico do sistema tributário e do gasto público resulta em um complexo emaranhado de normas distorcidas porque pensadas em períodos diferentes. Se fossem feitas do zero hoje, poderiam ser muito diversas. As propostas de atualizá-las são normalmente chamadas de reformas.

O gasto público foi por muito tempo concebido para os trabalhadores com carteira assinada. Da saúde à aposentadoria, passando até pelo auxílio-reclusão. Políticas mais universais foram fortalecidas nas últimas décadas, como o SUS, o BPC, o Bolsa Família.

As distorções são muitas. Uma juíza pode se aposentar hoje antes dos 55, mas sua empregada só aos 65 no BPC. A idade da juíza tem status constitucional, a da empregada poderia ser alterada por uma simples MP.

O valor do BPC da empregada é garantido pela Constituição em 1 salário mínimo. O Bolsa Família do seu neto não, e o valor pode ser 20 vezes menor.

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Do lado da receita, a confusão é ainda maior. Entes buscaram maximizar a arrecadação em curto prazo do jeito que desse. Por exemplo, a União poderia ter elevado o imposto de renda nos anos 90, mas assim teria que o dividir com Estados e Municípios. Optou por arrecadar mais com contribuições sociais, tributos indiretos.

O processo histórico da nossa política fiscal torna ela muito diferente do que poderia ser se fosse repensada do zero.

No caso da Previdência, ou da Seguridade, o leitor progressista deveria estar interessado em uma tributação que pese menos sobre os mais pobres e gaste mais com eles. O modelo atual, fruto de sucessivas criações ao longo décadas, atende a esse pressuposto?

O financiamento da Previdência é progressivo?

Questionei Sâmia por apontar o déficit da Previdência como um direito, já que ele é financiado pelo Estado. Em minha visão, o déficit, ao ser financiado por contribuições sociais, incide sobre o mais pobre – inclusive os que não têm acesso à Previdência (jovens e desempregados).

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Sâmia insistiu: as contribuições sociais incidiriam sobre o lucro das empresas (como a CSLL).

Sigo divergindo. Entendo que ainda que empresas recolham, a incidência se dá também nos consumidores. É exatamente por isso que a esquerda, corretamente, aponta que nossa carga tributária é regressiva.

Afinal, tributos sobre consumo são recolhidos pelas empresas. Não quer dizer que o pobre não esteja pagando.

Sâmia propõe uma reforma tributária progressiva, para que os ricos paguem mais e contribuam para o financiamento da deficitária Seguridade.

Mas s é realmente o lucro das empresas que financia a Seguridade, bastaria aumentar essa forma de tributação. Por que se preocupar com imposto sobre fortunas ou dividendos, se a contribuição social já é paga pelos empresários? Não faz sentido.

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Concordando com a necessidade de uma reforma tributária progressiva, outras questões se colocam. Apenas a elevação de tributos sobre os mais ricos resolve? Ou ela alivia em curto prazo o déficit, mas não consegue acompanha-lo em médio e longo prazo? A reforma tributária deve ser usada para reduzir o peso dos tributos nos mais pobres ou para buscar aumentar a arrecadação?

Não concordo com as contas apresentadas por Sâmia, R$ 1,5 trilhões apenas com Imposto de Renda em 10 anos, conforme cálculo da Anfip – um lobby do alto funcionalismo, e nem concordo que a reforma tributária substitua a reforma da Previdência.

Infelizmente, em um país de renda média, somente tributar os ricos não parece resolver o problema do financiamento.

O gasto da Previdência é progressivo?

Contra a crítica sobre privilégios, Sâmia está correta em apontar que existem servidores e servidores. Professores não podem ser considerados privilegiados como juízes. Contudo, a reforma proposta não é meritória ao diferenciar alíquotas exatamente pela renda? O juiz vai pagar mais que o auditor que vai pagar mais que o professor que vai pagar mais que o gari.

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Sâmia considera uma falácia a afirmação de que a Previdência concentra renda. Os trabalhos de Marcelo Medeiros (UnB) e Pedro Souza (Ipea), craques do estudo de desigualdade, vão ao sentido contrário. Este link respalda minha afirmação e este é especialmente interessante sobre os efeitos da previdência do funcionalismo.

O texto de Sâmia se ampara em um competente artigo de Pedro Rossi, Esther Dweck e Arthur Welle. Eles mostram como análises por decis ou quintis de renda podem ser questionáveis diante dos vários níveis de desigualdade no Brasil. Mas o argumento se adequa mais ao Regime Geral (INSS) do que aos regimes próprios dos servidores, cujos efeitos na desigualdade não são refutados pelos autores:

Em torno de 15% das transferências da previdência vai para os 2% mais ricos (renda mensal per capita acima de R$ 6.931), sendo 9% para o 1% mais rico (renda per capita acima de R$ 9.526). Obviamente essa renda não é decorrente do RGPS (Regime Geral da Previdência Social), cujo teto é R$ 5.645, mas dos Regimes Próprios, dos servidores públicos do Executivo civil, Judiciário, Legislativo, militares etc. No entanto, grande parte da reforma da Previdência proposta pelo atual e governo anterior diz respeito ao RGPS.

Se não há privilégio na previdência do funcionalismo, por que não simplesmente igualar as regras com o Regime Geral? Qual seria o problema? Nenhum (se for respeitada a diferença dos tetos de contribuições). Podem-se excetuar categorias especiais, que recebem tratamento diferenciado no mundo todo, como professores e policiais.

No vídeo original, Sâmia não considera ser o déficit da Previdência um problema, pois poderia ser financiado por contribuições da Seguridade, que pertenceriam a Previdência. Questionei tal “pertencimento”, já que essas contribuições financiam Saúde e Assistência. Essas áreas saem perdendo se o déficit aumenta.

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Sâmia sai pela tangente, mas alega ser falacioso que a precariedade dos serviços públicos se deva à dominância previdenciária.

Recursos são escassos. Um real a mais para a Previdência é um real a menos para todo o resto. Dissolver o Teto de Gastos não muda essa realidade, mas apenas transfere o ônus para as famílias.

É possível conciliar o argumento por uma tributação mais justa com o argumento do limite ao gasto público, especialmente o de menor qualidade em termos de crescimento e distribuição de renda.

O tendão de Aquiles do PSOL aqui é sua íntima ligação com o funcionalismo. Se critica diversas elites do País, se apoia em uma. Os servidores são boa parte do 1% mais rico no Brasil.

É emblemática a ação no STF com que o PSOL conseguiu derrubar medida provisória no governo Temer que adiava, durante a crise, o aumento salarial de diversas carreiras federais e elevava a alíquota de contribuição dos que ganham mais do que o teto do INSS.

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O PSOL alegou retrocesso social na medida. A ação prosperou, a medida provisória caiu e pessoas mais pobres pagaram o pato de alguns bilhões de reais.

Não à toa, o Partido foi homenageado em 2017 em fórum da elite dos servidores públicos. Entre outros, representantes do Ministério Público, Legislativo, procuradores da Fazenda, Receita (como a própria Anfip), reconheceram o “engajamento na luta pelo serviço público”.

Com a renovação da bancada federal do partido, de qual Sâmia faz parte, vem a oportunidade para uma defesa de uma política fiscal realmente mais progressista ao invés da defesa de grupos de interesse no 1%. Mais Marielle, menos Anfip.

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