Poucas políticas públicas são tão unânimes quanto a provisão de água e esgoto para quem não tem acesso. Com mais de 90% da sua massa formada por bactérias, muitas delas associadas a doenças graves, o cocô pode ser fatal. Infecções causadas por esgoto inadequado estão entre as principais causas de morte inevitáveis, sendo muito frequente nos países emergentes.
Além de matar, o contato com cocô não-tratado prejudica o desenvolvimento cognitivo das crianças. Por exemplo: um estudo de Dean Spears e Sneha Lamba, do Banco Mundial, mostra que um bebê com acesso a saneamento básico tem maior probabilidade de reconhecer letras e números já no primeiro ano de vida.
O leitor consegue imaginar muitas coisas mais cruéis do que restringir o potencial de um bebê logo no início da vida por conta de um problema social evitável? Eu tenho dificuldade. A falta de acesso a água limpa (realidade de 35 milhões de brasileiros, segundo o Instituto Trata Brasil) e esgoto tratado (cerca de 100 milhões) deveria estar entre as maiores vergonhas nacionais.
Segunda a Organização Mundial da Saúde, 1 real investido em saneamento gera de 3 a 34 reais em benefícios diversos, como aumento da produtividade e redução drástica da ocorrência de diarreias. Talvez a diarreia soe banal para você, mas é uma das doenças que mais matam no planeta.
O Brasil tem um plano de metas para universalizar o saneamento até 2033. No ritmo atual de investimentos, isso não deve ocorrer antes da década de 2060. Atualmente, o Estado é dono de mais de 90% das empresas que operam no setor, geralmente através de estatais estaduais, como Sabesp e Sanepar.
O modelo baseado em estatais estaduais atrasa a expansão do saneamento no Brasil. Um estudo da CNI indica que, na média entre 2013 e 2015, São Paulo investia anualmente cerca de R$ 1.558,25 para cada habitante em acesso a esgoto. Em Rondônia, o investimento foi de R$ 36,80. Como os estados mais ricos têm estatais mais ricas e maior acesso a saneamento, os locais que menos precisam de investimentos são justamente os que mais recebem.
Esse modelo tem um detalhe ainda pior. Nele, as estatais não precisam se incomodar com planos de longo prazo ou interesse público. Isto porque a legislação em vigor permite que prefeitos contratem estatais de saneamento sem a necessidade de licitação ou qualquer tipo de concorrência pública. Basta utilizar um instrumento chamado “contrato de programa”, que exige pouca contrapartida. Em alguns contratos, a prefeitura pode até exigir novos investimentos, mas não há meio adequado para a fiscalização.
O contrato de programa é um instrumento precário sob o ponto de vista do cidadão. Com frequência, as prefeituras topam mesmo assim, o que acaba sendo politicamente conveniente para municípios que dependem de dinheiro estadual e de favores ao governador.
Num contrato de concessão, por exemplo, há um leilão aberto a todas as empresas. Ganha quem oferecer as melhores condições de preço, qualidade do serviço, limpeza da água e outros critérios técnicos. A maioria das empresas privadas opera por esse tipo de contrato. Quem descumpre o combinado sofre processos milionários e é acompanhado de perto pelo Ministério Público. Não por acaso, o investimento por habitante praticamente dobra nas poucas cidades brasileiras que realmente privatizaram o saneamento.
Há algum tempo, desde 2018, o Congresso discute uma mudança na lei que rege o setor. Ao contrário do que diz parte da imprensa, o projeto não privatiza nenhuma empresa. Em manchetes, a Folha tem chamado o projeto de lei (PL) de “privatização do saneamento”. É mentira.
Na prática, o trecho do texto que causa essa polêmica é o fim dos contratos de programa. Caso o PL seja aprovado, todos os novos contratos serão em regime de concessão, com concorrência, fiscalização e critério. Enquanto o Brasil sofre com um problema do século 19, o Congresso sentou no texto e se recusa a discuti-lo.
Há esforços notáveis em sentido contrário. A presidência da Câmara tem se preocupado com o assunto e, há mais de um ano, insiste na pauta. No Senado, um esforço hercúleo de Tasso Jereissati (PSDB-CE) conseguiu aprovar uma versão desidratada, que ainda permite a renovação dos contratos de programa existentes sem limites para nova aprovação.
Os governadores lideram a oposição à proposta. Nem todos são de esquerda – o goiano Ronaldo Caiado (DEM), por exemplo, é feroz opositor do PL. Alguns deputados do PSDB paulista, como Samuel Moreira, são ligados à Sabesp e não gostam da ideia. A maioria, porém, integra partidos de esquerda. E não são apenas alguns governadores do Nordeste. O PSOL talvez seja o partido mais ativo na oposição ao PL do Saneamento.
“Somos radicalmente contrários a essa privatização do saneamento básico no Brasil. Vamos estabelecer uma resistência frontal”, promete Ivan Valente, líder do PSOL na Câmara. O discurso, é claro, sempre vem embalado em tons de justiça social e rebeldia jovem. Quando Ivan Valente fala em “resistência frontal”, ele deve imaginar que está em Paris, 1943, resistindo contra a ocupação nazista. A realidade se parece mais com uma favela em Maceió, onde um bebê ingere cocô diluído e sofre danos permanentes por isso.
Na França, Alemanha, Japão e em grande parte do mundo, as estatais de saneamento existem, mas concorrem com um número expressivo de empresas privadas. Não há um domínio que supera 90% da oferta, como no Brasil. Também não há contratos de programa e outras brasilidades por lá.
É sintomático que a oposição ao projeto tenha tanto sucesso. O PL do Saneamento anda a passos de tartaruga justamente porque uma ala ideológica do Congresso se aliou às corporações estaduais para proteger seus feudos políticos.
Na prática, o que PT, PSOL e PCdoB defendem é a ausência de licitação e transparência nos contratos de saneamento. Querem que a empresa estatal tenha prioridade em detrimento do serviço público. Nossa esquerda floreia seu discurso com ilusões de resistência, mas muito do que defendem é apenas o atraso puro e simples.
Nota
Após a publicação deste post, a assessoria do deputado Samuel Moreira entrou em contato com a coluna para esclarecer que ele é favorável a um novo marco regulatório do saneamento, desde que os contratos de programa em vigor sejam cumpridos até o fim. Após a data de expiração, os municípios seriam obrigados a licitar a provisão de água e esgoto, como prevê o PL.
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