O Nobel de Economia deste ano vai muito além de uma polêmica sobre o salário mínimo.| Foto: Antônio More/Arquivo/Gazeta do Povo
Ouça este conteúdo

O poder de mercado dos grandes bancos é relevante para explicar os juros altos na economia brasileira? A eleição de uma mulher como prefeita incentiva jovens moradoras daquele municípios a se registrarem para votar na eleição seguinte? O salário de políticos e burocratas brasileiros influencia a qualidade das políticas públicas? O eleitor brasileiro pune governantes flagrados em casos de corrupção? Políticos que controlam a imprensa local são menos punidos quando flagrados em casos de corrupção?

CARREGANDO :)

Estas são algumas das perguntas respondidas por pesquisadores brasileiros com base nos métodos desenvolvidos pelos vencedores do Nobel de Economia em 2021. As contribuições de Guido Imbens, Joshua Angrist e David Card extrapolam as próprias fronteiras da economia. Os estudos mais importantes do trio vencedor (especialmente de David Card) são sobre o mercado de trabalho, mas as ferramentas desenvolvidas por eles, que justificaram o prêmio segundo a Fundação Nobel, podem ser aplicadas a vários campos das ciências sociais.

Por muito tempo, economistas estudavam relações de causa e efeito criando modelos teóricos para estimar o comportamento geral de uma variável. Esse tipo de método é útil, mas tem algumas limitações claras que podem ser grosseiramente resumidas no famoso clichê: correlação não é causalidade.

Publicidade

Como resolver esse problema? Uma alternativa está nos experimentos controlados, desenhados justamente para investigar relações causais. Me refiro ao modelo aplicado em testes de remédios e vacinas: os participantes são divididos por sorteio entre dois grupos; um recebe tratamento e o outro recebe placebo, e a conclusão vem da comparação entre esses dois grupos.

Ao contrário do que muita gente imagina, esse tipo de experimento controlado é possível em economia. O Nobel de 2019 premiou Duflo, Banerjee e Kremer, economistas que desenvolveram pesquisas deste tipo para estudar políticas de desenvolvimento.

Apesar de possível, este tipo de experimento nem sempre é viável para estudar relações de causa e efeito em ciências sociais. David Card, Guido Imbens e Joshua Angrist ajudaram a desenvolver métodos que permitem simular experimentos a partir de dados não experimentais. Esses “experimentos naturais” são possíveis em condições bastante específicas – estudar quais condições são essas foi parte da contribuição acadêmica que justificou o prêmio de Imbens e Angrist.

Voltando ao primeiro parágrafo, todas as perguntas ali colocadas foram respondidas por artigos de economistas brasileiros que utilizam experimentos naturais – isto é, simulam experimentos com base em dados não experimentais. Em todos os casos, a criatividade dos pesquisadores fez a diferença e permitiu superar limitações metodológicas que impediriam o trabalho noutros tempos. Vale notar que nenhum dos artigos é voltado ao estudo do mercado de trabalho, mas todos utilizam as ferramentas que David Card e coautores aplicaram pioneiramente para estudar o assunto.

Gustavo Joaquim e coautores (2020), por exemplo, repararam que fusões e aquisições de grandes bancos afetam desigualmente os municípios. Em algumas cidades, a competição bancária era radicalmente reduzida pela fusão/aquisição, especialmente quando os principais competidores da região eram os mesmos bancos que se fundiram. O inverso ocorria nas regiões de fraca atuação dos bancos que se fundiram. Onde houve queda maior da competição bancária, verificou-se também uma diminuição relevante da oferta de crédito e um aumento da taxa de juros. Assim, os autores deram contribuição fundamental na literatura sobre a alta taxa de juros brasileira, indicando que a concentração bancária está entre as explicações do problema.

Publicidade

Outro artigo ao qual faço referência no primeiro parágrafo foi escrito por Sérgio Firpo, Renan Pieri e Paulo Arvate, pesquisadores do Insper e FGV. Eles comparam cidades onde uma mulher quase foi eleita como prefeita com cidades onde uma mulher foi eleita prefeita por margem apertada. Desta forma, é possível avaliar com maior precisão se a eleição de uma prefeita tem consequências relevantes para o engajamento político de mulheres jovens. A resposta é positiva: a eleição de uma prefeita incentivou o registro de mais eleitoras na faixa dos 16 a 17 anos, que poderiam optar entre votar ou não.

Apenas para que sirva como referência a interessados, as outras perguntas do primeiro parágrafo são respondidas em artigo do pesquisador Cláudio Ferraz (University of British Columbia e PUC-Rio) e coautores.

A imprensa brasileira noticiou o Nobel de Economia deste ano com um lamentável foco na polêmica sobre o salário mínimo. Como bem explicam Maria Oaquim e Vitor Possebom em excelente texto no site Terraço Econômico, o famoso artigo de David Card e Alan Krueger sobre salário mínimo não é importante apenas pelos resultados encontrados, mas sim pela abordagem utilizada.

Em vez de produzir um modelo geral para o desemprego em cada estado, e avaliar como o salário mínimo afeta essa variável, os autores preferiram analisar um episódio de brusco aumento do salário mínimo no estado americano de Nova Jersey e comparar o desempenho daquele estado com a vizinha Pensilvânia, improvisada como grupo de controle, cujo placebo foi o não aumento do salário mínimo. Esta abordagem abriu caminho para notáveis avanços científicos que foram muito além da literatura sobre salário mínimo ou mesmo mercado de trabalho.

Infelizmente, a imprensa brasileira destacou justamente o que há de mais passageiro no trabalho dos premiados. O legado de Card, Imbens e Angrist não está num resultado, mas numa nova forma de fazer ciência social, infelizmente pouco conhecida pelo grande público, que mesmo depois do Nobel de 2021 continuará mal informado sobre a boa nova.

Publicidade