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Se todas as pessoas que se dizem contra a cultura do cancelamento realmente contribuíssem com um debate público melhor, o problema nem sequer existiria. Infelizmente, somos hipócritas, uns mais do que outros. Com um debate público cada vez mais violento, aquele de quem discordamos vira inimigo. E inimigo não tem perdão: merece execração pública e nada mais. Quando os inimigos do nosso amigo repetem a atitude, surge a preocupação oportunista com a cultura do cancelamento.

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Não sei quando começou, mas sei que a desumanização da divergência é valorizada pelo usuário médio das redes sociais. Tenho prestado cada vez mais atenção no tipo de conteúdo capaz de viralizar. Escrever que a neutralidade tributária deveria ser um princípio basilar de qualquer reforma não atrai muita atenção. Mais fácil viralizar escrevendo que alguém é imbecil por ignorar o princípio da neutralidade tributária.

Na sua recente e já famosa carta de demissão, Bari Weiss, ex-editora do New York Times, diz que o Twitter não está no cabeçalho do jornal, mas é o seu verdadeiro editor final. Das pautas ao estilo de redação, tudo é milimetricamente calculado para viralizar em redes movidas a ódio. O jornalismo se preocupa cada vez mais com pessoas. Quando ideias se esgueiram para conquistar um espaço, a abordagem é moldada pelo conflito. Quem discorda e quem concorda é mais importante do que o assunto concretamente discutido.

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Um diagnóstico que apenas diferencie o jornalismo profissional da barbárie que norteia as redes invariavelmente esquece desse detalhe: os jornalistas profissionais são cada vez mais guiados pelo revoltado médio que habita as redes sociais. Afinal, os veículos precisam de assinantes, doadores, compartilhadores e retuitadores, que cada vez mais estabelecem a própria dieta de informação com base na identidade ideológica da fontes.

Um debate público racional e construtivo precisa do exato oposto. Repórteres, colunistas e editores precisam atuar num espaço onde até mesmo o erro é compreendido, para que possam tomar riscos. Até o erro é útil, pois permite que a ideia errada seja confrontada com a verdade. Quando o veículo que você assina publica um texto desagradável, o leitor precisa considerar a importância do desagrado. Ler aquilo que conforta nossos preconceitos ideológicos é o caminho mais curto para a burrice.

Ao juntar o engajamento odioso com a economia de caracteres, o Twitter traz uma particularidade: o uso de palavras fortes é incentivado na rede. Discutir as ideias complexas do outro exige uma thread. Uma thread exige paciência e expõe seu autor à possibilidade de erro, punido com severidade crescente. É melhor condensar tudo em 280 carácteres – especialmente se o oponente estiver noutra tribo ideológica, aquela turma que não merece respeito.

Cada vez mais, tenho pensado que não há saída para o problema que não passe por uma reeducação coletiva sobre o modo de discutir ideias nas redes. Entender a importância da discordância pacífica e do foco nas ideias é o único caminho com destino à racionalidade. Isto só vai acontecer no dia que o público passar a valorizar o produtor de conteúdo que realmente tem conteúdo, e não só um vasto cardápio de xingamentos travestidos de argumentos.

Inversamente, é preciso cancelar os canceladores. Aquele que divulga uma ideia ruim deve ser tolerado e combatido exclusivamente no campo das ideias. O desrespeito pessoal deveria ser reservado àquele que transforma o debate em ringue, ofendendo terceiros e subindo o tom desnecessariamente.

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Mais do que discutir os cancelados, precisamos discutir também os canceladores. E não me refiro apenas a quem participa de campanhas pedindo a cabeça de alguém. O cancelador é aquele que busca cancelar a humanidade alheia, tratando a discordância como falha moral. Quem abusa do tom agressivo em nome de likes precisa ser identificado, repreendido e, em caso de persistência no erro, denunciado como alguém que deixa o país mais burro.

A própria disposição em atacar, ao invés de argumentar, precisa ser identificada e repudiada. Eis uma atitude particular difícil, pois envolve respeitar os defensores de ideias que consideramos ruins. Mas, além de difícil, é uma atitude necessária.

É fácil responder ao esgarçamento da democracia culpando os burrinhos que votaram naquele partido autoritário que odiamos. Difícil é admitir que nós mesmos contribuímos para a ascensão de autoritários quando substituímos a razão pela grosseria.