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Slowdive -- devagar e avante. (Crédito: Eric Pamies)
Slowdive -- devagar e avante. (Crédito: Eric Pamies)| Foto:

O Pista 1 acionou mais um de seus marotos correspondentes internacionais. Agora, a guapa Iasa Monique, brasileira mas barcelonesca de tudo, escreve sobre o Primavera Festival 2014, evento que acabou um dia antes de o rei Juan Carlos — o caçador de elefantes — pedir para sair.

Todo festival gigantesco precisa de um recorte. Neste relato, o umbigo de fora de Charles Bradley, um encontro fortuito com Rodrigo Amarante, o show-missa de Caetano Veloso e a apresentação histórica do Slint, que “te pone la piel de gallina”.

No fim, quatro pontos que irão te convencer (ou não): o Primavera é honesto imperdível.

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Esse texto deveria estar online na noite de ontem, eu sei. Mas esse monstro chamado Primavera Sound me fez hibernar por 24 horas depois de chegar em casa na manhã passada: condição essencial para conseguir encarar a semana vindoura com alguma dignidade.

(Crédito: Divulgação)

Lo hice, y aquí estoy. (Crédito: Divulgação)

O Primavera Sound é um desses festivais grandes. Mas grandes mesmo. Foi minha terceira vez. Os caras montam uma estrutura fora do comum. A programação começa um mês antes nos bares da cidade, com um cartaz em que há tanto Sun Ra Arkestra (que aliás são reis: jazz vanguardista, orgulho afroamericano, egiptologia e ciência-ficção perpetuados mesmo depois que o Sun Ra morreu, em 1993) e Kvelertark (metal norueguês muito do simpático) passando por Pixies sem muitos dramas. Assim, uma semana inteira sem pensar em outra coisa. Desde segunda-feira rolavam shows em bares e casas de Barcelona. E nada meia boca, não: a lista de grupos não oficiais ia de The Brian Jonestown Massacre a Paus e Speedy Ortiz, vários deles grátis. A pulseira do passaporte Primavera dá acesso a tudo. Se você tiver pique e se dividir em dois ou três, maravilha: são 350 shows para ver.

O Parc del Fórum é um paraíso apocalíptico de concreto que fica na beira do mar, alguns quilômetros pra lá da Barceloneta. Dois palcos grandes — enormes, pra caber toda a gente que foi só pra ver Arcade Fire — dois pequenos, um auditório para grupos mais delicados e os outros palcos espalhados por ali, entre a água e os painéis de energia solar. São 13 no total. Chega uma hora em que você jura que não volta nunca mais, de tanto andar de um palco pro outro, ultrapassando 22 poças d’água, três pares de escadas, 10 austríacas vestidas de gatinha com flores no cabelo (!) e 7 grupos de irlandeses seminus cujo objetivo de vida é acertar o copo de cerveja na maior quantidade de cabeças possível. Mas logo você chega lá, a guitarra faz o primeiro solo e você já pensa em comprar o próximo passaporte daqui duas semanas, quando o Primavera começa a vender-se sem ter nenhum grupo confirmado, porque você sabe que vai valer a pena.

Por ironia mediterrânea choveu em dois dos quatro dias de Fórum, mas nada que espantasse o público. Esse ano o festival recebeu 190 mil pessoas, 20 mil a mais que o ano passado. E saiu tudo redondinho. Alguns grupos cancelaram, mas dessa vez não perdemos “cabeças de cartaz” como aconteceu com Bjork em 2012 e Fiona Apple, Band of Horses e Rodriguez em 2013.

Dia 1

O primeiro dia no Fórum começou às 16h com Colin Stetson, mas só consegui chegar às 18h40 pra ver Rodrigo Amarante. Ele já tinha vindo a Barcelona há uns meses pra participar no show do Devendra Banhart, na Sala Apolo (foi uma graça!), e mais tarde me contou que essa era a quinta vez dele em Barcelona. Falou todo o tempo em espanhol com o público e não parecia surpreso pela quantidade de gente que largou Real State e veio escutar ele cantar Cavalo quase inteiro. O show foi gracinha, mas foi o típico show da tarde — enlouquecidas mesmo, só as brasileiras ex-Los Hermanos, que também estavam por ali.

eu_amarante

Troquei uma ideia com o Amarante a caminho do show do QOTSA. Ele estava em tour e ia embora no outro dia — por isso recusou meu convite pra um vermut na manhã seguinte.

Depois saí correndo pro Auditório RockdeLux (na parte de fora do Parc del Fórum) pra ver A Winged Victory for the Sullen. Segundo uma revista local, esse seria o momento imperdível do Primavera Sound 2014. O show é uma coisa de louco. Sensível e bem executado, conseguiu manter o público num auditório fechado em plena tarde de sol, mas não por muito tempo: antes do fim do show, metade do auditório já estava vazio outra vez… Dei uma passada rápida pra ver os australianos do Pond tocando “Hobo Rocket”. Ainda que role a competição entre eles e o Tame Impala, se nota que têm DNA parecidinho. “Whatever Happened to the Million Head Collide?” valeu ver ao vivo.

No palco central, Antibalas, que já tinham tocado na noite anterior na Sala Apolo. Valeu ver outra vez e valeria ver sempre. Os caras fazem miséria na percussão e conseguem botar todo mundo nessa ponte entre Fela Kuti e o hip hop e a música latina de NYC. Tocaram o Antibalas, de 2012, com uma pegada funk super dançante. Saí dali direto pra ver Josh Homme e Queens of the Stone Age num dos palcos principais. Continuam nessa de não tocar coisas do primeiro disco. Rolou alguma coisa do Songs for the Deaf (de saída tocaram “No One Knows”), mas mantiveram o foco no …Like Clockwork. Foi bacana, mas nada inesquecível — ao contrário do Charles Bradley, logo na sequência.

Charles Bradley com o umbiguinho de fora. (Crédito: Eric Pamies)

Charles Bradley com o umbiguinho de fora. (Crédito: Eric Pamies)

O cara destruiu. Chegou com o umbigo de fora, cantou com o corpo todo, mostrou que tem energia e voz pra fazer um show de primeira linha. Se apresentou ao mesmo tempo em que Arcade Fire. A consequência foi um público menor, mas muito conectado. Não faltaram jogadinhas de microfone, e a mais sentida foi “Why Is It so Hard”, que de alguma maneira fez sentido com o público europeu. Não rolou “Changes”, o cover do Sabbath. Mas foi o melhor show do dia.

Dia 2

Sexta-feira judiou quem foi cedo e encarou uma chuva nada amigável, mas presenteou geral depois com um arco íris duplo que acabava no mar. Por causa da chuva, o público chegou bem mais tarde e o primeiro show que rolou de verdade foi o Slowdive, às 21h40. Precioso, como dizem aqui. Uma qualidade sonora impecável, tudo bem amarradinho. Teve gente que chorou — não que isso seja raro no Primavera Sound, mas não deixa de ser uma prova de boa performance.

Logo, The War on Drugs e Kurt Vile fizeram um show bem delícia de “Lost in the Dream”, mas prejudicado pela escolha do palco. Se bem que não foi só ele — muitos dos shows no palco Pitchfork apresentaram muito ruído. O som escapava de alguma maneira. Era o palco mais perto do mar, e parecia que você estava usando tampões de ouvido se estivesse um pouco mais para trás.

Slowdive -- devagar e avante. (Crédito: Eric Pamies)

Slowdive — devagar e avante. (Crédito: Eric Pamies)

Bacana mas não me importou muito porque eu queria mesmo era ver a terceira reencarnação do Slint ao vivo, e os caras fizeram miséria. Com só dois discos, e 20 anos depois do EP de 1994, eles fizeram o melhor show de sexta e um dos melhores dessa edição do Primavera Sound. Eu nunca tinha visto um público tão absorvido. E olha que o show deles coincidia com o fim de Pixies e o começo do The National. Encheu de gente e foi um lance quase solene. Ninguém falava, ninguém gritava (às vezes se ouvia um “yeah!”, a que todos os demais concordavam em silêncio), ninguém queria passar de um lado a outro, todo mundo ali, só ouvindo, milhares e milhares de rostinhos em comunhão. A própria banda comentou: “you are so quiet”. Foi impecável, de precisão milimétrica, uma agonia nostálgica presente em cada riff, uma tristeza tão forte na melodia. Slint lavou muitas almas naquela noite. E ainda tocaram “Ron!” Torci e torci pra não acabar, mas vieram com “Good Morning, Captain” e “I Miss You”, no finalzinho. Tive que aceitar o fim, porque tinha sido perfeito.

Vou falar mais nada não. Deixo o link do show inteiro pra quem quiser tentar o transe em casa:

 

Dia 3

Sábado começou ao meio dia, com nove shows no Parque de la Ciutadella, misturados com vermut e petisquinhos. O terceiro dia é difícil. O corpo já começa a fraquejar só de pensar na obrigação moral de estar até o final (foram nove horas dormidas nos últimos três dias, porque havia quinta e sexta e hay que trabajar), mas era só lembrar que ia rolar Caetano e tudo ficou bem. Antes dele, inclusive, ainda consegui ver Courney Barnett (um pouco decepcionante ao vivo) e o comecinho do show dos goianos do Boogarins, que vêm colecionando elogios na Pitchfork. Pra ser sincera, eu não os conhecia até saber que eles participaram no Primavera Gig em Brasília e em Sampa em maio desse ano. Fernando Almeida interpreta como quem sabe o que tá fazendo, nem um pouco intimidado pelo Primavera. Começou esquisitinho. Mas depois mostrou o tamanhão da voz que tem e a delícia da mistura pop psicodélica que ele faz junto com o Benke Ferraz. Boa surpresa.

E aí corri pra Caetano Veloso. Brasileira que sou, queria estar na frente e ver se conseguia dar aquele abraçaço nele. Não rolou, mas fico com o beijinho voador que ele mandou pra nós que sabíamos cantar “Leãozinho”.

Leãozinho admirado. (Créditos: Eric Pamies).

Leãozinho admirado. (Créditos: Eric Pamies).

Ele lotou o RayBan, o terceiro maior palco do Primavera, e, junto com a BandaCê fez um show impecável enquanto o sol baixava lá atrás. Não rolou o álbum completo — ele não tocou “Um Comunista”, por exemplo — mas abriu com “A Bossa Nova é Foda” (cantada por todo mundo ali, brasileiros, catalães ou o que fosse). Também rolou “Baby”, “Triste Bahia” e “Você Não Entende Nada”. Caetano foi divertido, irônico, perfeitamente consciente de onde estava, mesclou certinho uns quase-sambas (“Escapulário”) com músicas desoladoras (“Estou Triste), e quebrou tudo com o “Funk Melódico”. Ah, em um belo momento ele veio com “Tonada de Luna Llena” à capella, interpretada tão, tão lindamente, e o público não sabia como reagir. Meus amigos me olhavam e me mostravam os braços, dizendo “me puso la piel de gallina”, pra dizer que tinham se arrepiado. Os críticos da Pitchfork que estavam na primeira fila se olhavam estupefatos. Gabi Ruiz, que é o fundador do Primavera Sound, veio com essa no Twitter:

caetano twitter

O único comentário triste é que ele podia ter tocado “It’s a Long Way” ao invés de “Nine Out of Ten”. Mas quem sou eu pra reclamar de dios?

Superado o momento Brasil-nostalgia, fui ver Nine Inch Nails no palco principal. Os caras vieram com uma equipe de 60 pessoas, estilo ultraprodução, e metade do espetáculo estava no trabalho de iluminação, que foi sensacional. Fora isso, o esperado: muito mais eletrônico, menos sombrio, bastante menos charmoso do que há 10 anos. Trent Reznor continua bonitão.

Não vi Mogwai, não me matem. Fui ver o hiperativo Ty Segall tocar “Sleeper” antes que o Primavera começasse a se entregar ao “bailoteo” — é tradição terminar com festa eletrônica no palco RayBan, até um par de horas depois de o sol nascer. Mas enquanto Chromeo começava com os hits, ainda consegui correr e ver um pouquinho da loucura (ultra loucura) experimental que faz o Za, um duo barcelonês que tá sempre no Primavera, encabeçou muitas listas de melhores de 2013 e veio tocar o álbum Wanananai. A regra deles é não ter regra. Eles misturam todo tipo de ruído sem uma ordem específica ou uma melodia programada, de um jeito nervoso e divertido, e de algum jeito tudo termina fazendo sentido. As três primeiras músicas foram uma prova de resistência ao público (parecia que teus órgãos saíam do lugar, juro), mas depois virou um liquidificador em festa e fluiu super bonito. É compreensível que você nunca tenha ouvido falar deles, então eu deixo aqui o selinho aprovação e um vídeo:

O Primavera Sound 2014 terminou às 6h30 de domingo, sol laranja aparecendo detrás do concreto, explosões de serpentinas brancas, equipe de produção no palco, milhares de pessoas cantando “You Gotta Fight for your Rights to Party”. Um ou outro artista por ali também, curtindo junto. Nenhuma crítica ia muito além do preço da cerveja (5 euros o copo de meio litro). Ano que vem, 2015, o Primavera Sound vai celebrar 15 anos. Ainda não anunciaram nenhum nome, mas não precisa: lá estaremos.

No fim, explosão. (Crédito> Eric Pamies).

No fim, explosão. (Crédito: Eric Pamies).

Por que raios o Primavera Sound vale a pena?

É acessível:

Fazemos as contas: por 110 euros no começo das vendas (ou 190 no final) você compra o passaporte de três dias. Em reais seriam uns 400 contos, mas tenhamos em conta que um salário normalito aqui vai de uns 1.200 a 1.500 (o mínimo é 641,40). Tudo bem que cada palco (são 13) leva o nome de um patrocinador — são tempos de crise, meu amigo – mas, querendo ou não, no fim do dia você viu ao vivo uma lista dos seus favoritos da Pitchfork por menos de 10% do seu salário do mês.

É garantido

O cuidado com a programação é total. Os ingressos começam a ser vendidos um ano antes do evento, sem nenhum nome confirmado (um ou dois, no máximo), e o primeiro lote não dura 24 horas. O público compra sem nem saber quem vai ver porque sabe que vai valer a pena.

É amigo do público

Se você tem o passaporte, tem direito a entrar em todos os shows, mesmo os que começam antes do Festival. Além disso, com o cartão Primavera Sound, você ganha entrada livre na Sala Apolo (uma das melhores casas noturnas de Barcelona) e descontos em qualquer coisa que o Primavera faça / venda / etc. A sensação é de que o festival dura o ano inteiro.

É uma filosofia de vida (ou quase isso)

Quando o Primavera começou, tudo o que os caras queriam era trazer meia dúzia de bandas indies pra Barcelona. Hoje, geral começa a se preparar um mês antes, discutindo em fórums ou planilhas de Google Docs sobre quais shows merece a pena ir e por que. Barcelona passa todo o mês de maio em stand-by esperando ao mítico fim de semana do PS. Com uma programação desse tamanho, você leva alguns meses até conhecer tudo, e não corre o risco de ter que ver um show que nem curte muito porque não tem outra opção. O festival também é responsável por uma parte gordinha da entrada de verba por turismo no país (44% do público é estrangeiro).

 

 

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