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A gente nem bem publica um texto e ele já sai por aí, sendo amado por uns, odiado por tantos, aqui incompreendido, ali ignorado.
A gente nem bem publica um texto e ele já sai por aí, sendo amado por uns, odiado por tantos, aqui incompreendido, ali ignorado.| Foto: Pixabay

Acabei de publicar um texto novo. Ele está todo sujo de placenta ainda. Não dá nem para saber se o chamo de artigo ou crônica. Talvez ele seja até um hermafrodita, nem uma coisa nem outra e as duas coisas ao mesmo tempo. Talvez tenha nascido do avesso, causando repulsa em que não entende ironia. Sei lá. Só sei que nasceu, o bichinho, concebido num dia triste deste outono úmido e frio.

Mal bati o ponto final e o texto, ainda um bebê de fraldas cheias (arrumei aquela vírgula errada, editor), já está circulando por aí. Explorando becos escuros de ignorância bruta, ruas desertas de puro desinteresse e multidões irracionalmente empolgadas em estádios e coretos. Quando eu era mais jovem e tinha até uma vasta cabeleira (ninguém acredita!), até tentava controlar os malandrinhos. Hoje, porém, sei que o chavão realmente abre portas grandes e que o texto ganha vida própria assim que se torna público.

Olha só. Tá aí. Livre, leve e solto para ser alçado aos pícaros da subliteratura cotidiana ou para ser linchado por justiceiros virtuais sem nada melhor para fazer, o texto às vezes recorre a drogas pesadas, como o clichê. Ele me diz que é obrigado a recorrer a isso (“senão não sobrevivo! é uma selva lá fora!”), mas sei que se trata de uma escolha. E que o texto, sempre imperfeito, às vezes é capaz de tomar caminhos errados.

Com alguma sorte e a eliminação de ambiguidades não intencionais, o texto se recupera depois de um ou dois parágrafos de reabilitação para se encontrar com os leitores. Pela dona Maria ele é amado; pelo seu José, odiado; pelo Gumercindo, acariciado; pela Cremilda, espancado. Às vezes o doutor Inocêncio o convida para entrar em casa e lhe oferece até bolinho de chuva (obrigado, dona Inês!). Às vezes ele é enxotado como cão sarnento, de cujas pústulas vaza o pus de um mau-caratismo imaginário. Passa! Passa!

Aqui e ali, porém, ocorre o que gosto de considerar um milagre: texto e leitor se envolvem numa relação de afeto. De vez em quando o namoro, nascido de uma paixão irracional, não vai para muito além do título. Mas está valendo. Por outro lado, há ocasiões em que texto e leitor se relacionam de uma forma mais profunda. Todos aqueles beijos e movimentos sincronizados e, bom, você sabe. Há leitores que se saciam rápido, rápido demais, e não passam do primeiro parágrafo. Outros, contudo, estão dispostos até a um casamento.

Na condição de autor e pai dessas crias ingratas, fico só olhando. Não tenho absolutamente nenhum controle sobre o que acontece - pancadaria, brindes, gargalhadas, sono - entre texto e leitor na intimidade da caixa craniana. Mas sei que acontece alguma coisa ali. Alguma alquimia. Algum milagre cujo produto é sempre a Graça, embora às vezes não pareça. Embora às vezes o leitor nem se dê conta e saia por aí xingando aquele pedaço de "papel" que o fez pensar pensamentos indesejados.

E, assim, depois de alguns dias de esbórnia, soltinho-soltinho nesse mundão de meu Deus, o texto vai aos poucos perdendo o vigor. A maior parte dos cabelos cai; os fios que restam são frágeis e esbranquiçados. A barriga cresce; os dentes apodrecem. No canto dos olhos surgem sulcos que contêm toda a dor do mundo. As costas se curvam e ele é capaz de perder corrida para uma tartaruga. Abandonado pelo leitor (seu ingrato!), o texto fica sentado no meio-fio, mendigando atenção.

Se tem sorte, um bom samaritano é bem capaz de recolhê-lo da rua da amargura e incluí-lo numa coletânea. Ou no mínimo linká-lo no último parágrafo de uma crônica ainda cheia do viço da juventude, como esta que você tem em mãos. Se tem azar... Bom, neste caso o texto corre o risco de virar um zumbi ressentido que se volta contra o autor, esse crápula que cometeu a irresponsabilidade de colocá-lo no mundo. Acredite, em vinte anos deu para acumular muitos textos-assombrações que me puxam o pé sempre à meia-noite das sextas-feiras 13.

E assim acabo por dar à luz mais um texto. Que, à medida que o ponto final se aproxima, vai já botando as asinhas de fora. Me deixa sair, papai! Me deixa voar! Talvez fosse o caso de acalentá-lo um pouco mais. De ensinar a ele o perigo das ironias e das tautologias. De instruí-lo nos perigos dos clichês. Quando dou por mim, porém, ele já está na porta, ordenando com aquela voz engraçada dos pubescentes: aperta o botão de publicar aí, velho!

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